LUÍS CABRAL
Prender Spínola
Prender Spínola
Do trabalho fundador de Amílcar Cabral ao seu assassinato, da desconfiança inicial de Sekou Touré à oposição de Leopold Senghor, do apoio militar de Marrocos ao fornecimento de mísseis Strela pela União Soviética, do contra-ataque de Spínola aos planos para capturar o general na selva, da formação de quadros na China à proclamação unilateral da independência - eis facetas da história do PAIGC. Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral, filho de um professor de origem cabo-verdiana e de mãe portuguesa, trabalhou como contabilista na Casa Gouveia antes de participar na luta armada. Foi nomeado secretário geral adjunto do PAIGC em 1973 e eleito presidente do Conselho de Estado. Nega que Amílcar Cabral quisesse tornar-se secretário geral da Guiné no quadro de um plano gizado por Spínola, com o apoio de Senghor.
Amílcar Cabral, foi o grande impulsionador da criação do PAIGC. Aristides Pereira, chefe da estação telegráfica de Bissau, controlava as comunicações telefónicas. Os rebeldes tinham partido do incidente de Pidjiguiti, em Bissau. Ao primeiros quadros foram treinados na China. O armamento inicial era proveniente de Marrocos e de países do Leste, como a Checoslováquia.
Eu e o Amílcar éramos apenas filhos do mesmo pai, embora as nossas relações fossem mais íntimas do que as que nós tínhamos com os nossos irmãos do mesmo pai e da mesma mãe. Quando o nosso pai morreu, em 1951, o Amílcar ficou com a responsabilidade de toda a família. Ele estava a estudar em Portugal, no Alentejo. Nessa altura, enviou-me um telegrama, que dizia: «Ciente dolorosa fatalidade, unidos lutaremos.» E o mais interessante é que unidade e luta passou a ser a divisa do partido. Contaram-me depois que o Amílcar, quando recebeu a notícia da morte do nosso pai, se fechou durante três dias no quarto, para reflectir. Em 1952, ele veio para a Guiné, depois de ter tido já bastante dificuldade para receber o visto que na altura era necessário. Foi um amigo dele, bem colocado em Portugal, que acabou por lhe conseguir o visto. O Amílcar já estava ligado politicamente à luta anticolonial. Afinal de contas, o movimento começou em Portugal, na antiga Casa dos Estudantes do Império, através do Movimento Anti-Colonial (MAC), que depois se desdobrou pelos vários movimentos de libertação. Quando" ele chegou à Guiné, começou logo a organizar a luta. É curioso referir que, inicialmente, ele não queria que eu participasse. Não me dizia isso directamente, mas sim à mulher dele, Helena: «Não vou meter o Luís nisto, porque ele fica de reserva, para dar assistência à família. » Mas, por volta de 1955, quando o Amilcar saiu da Guiné, de novo para Portugal, já eu estava ligado a estas coisas.
Em 1956, fundámos o PAI - Partido Africano para a Independência e União dos Povos da Guiné e Cabo Verde. Foi numa reunião em Bissau, no dia 19 de Setembro, em que participaram Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin e eu. O Amílcar quis criar um grupo cultural que servisse de cobertura ao movimento nacionalista. Alguns de nós defendemos que, nesse grupo, não deveria aparecer o nome de Amílcar Cabral, para não alertar a PIDE. Mas como entretanto alguns começaram a dizer que o Amílcar Cabral não se queria expor, e que só outros é que corriam riscos, ele decidiu dar o nome dele e o grupo não foi autorizado. A partir daí, o Amílcar começou a ser mais vigiado. Começámos a luta clandestina e ele continuou a viver em Portugal, embora tenha ido várias vezes à Guiné. Numa dessas estadas, o governador, capitão de mar-e-guerra Melo Alvim, chamou-o e teve com ele uma conversa interessante. Começou por lhe perguntar: «Então, você é que é o chefe dos mau-mau cá da terra?» O Amílcar respondeu: «Não, senhor governador. Os mau-mau são da África Oriental, não são daqui.» O governador não desarmou: «Sabe uma coisa? Não me lixe! Seja um homem da actualidade. Viva a sua época.» Aquilo foi, para o Amílcar, o primeiro encorajamento que recebeu de um português tão importante como era o governador da Guiné. Só que, mais tarde, os rumores sobre a actividade de Amílcar Cabral aumentaram e o governador avisou-o: «O melhor que tem a fazer é sair daqui, senão sou obrigado a expulsá-lo. E, se eu o expulsar, nunca mais pode voltar à Guiné.» Amílcar veio para Portugal, onde continuou a desenvolver o seu trabalho como engenheiro agrónomo. Trabalhou ainda em Angola, nas fazendas Tentativa e CADA, onde conseguiu recuperar uma grande produção de café, que estava condenada. Juntamente com o seu trabalho como agrónomo, nunca deixou de desenvolver actividade política.
Na Guiné, o partido ia crescendo, embora contasse apenas com algumas dezenas de pessoas. Naquele tempo, um indivíduo já se considerava conspirador e revolucionário só por ouvir a Rádio Moscovo, ou a Rádio Brazzaville. Do ponto de vista ideológico, o nosso partido definia-se como nacionalista africano. Sobre isto, o Amílcar costumava dizer: «A ideologia não se come.» Esta era a grande diferença entre ele e muitos dos outros. Nessa época, os apoios internacionais eram quase inexistentes. Existia um grupo de amigos em França, e pouco mais. Os contactos internacionais começaram, realmente, a partir da nossa instalação em Conakry, em 1960. Mas logo no início tivemos sérias dificuldades com os países que depois nos vieram a ajudar - os países socialistas. É que na Guiné-Conakry estavam já instalados outros grupos: o Movimento para a Libertação da Guiné (MLG) e a Frente de Luta para a Independência da Guiné (FLING), que estavam contra nós e tinham o apoio das embaixadas dos países de Leste, que os consideravam representantes do povo e a nós representantes da pequena-burguesia. Em 3 de Agosto de 1959 deu-se um acontecimento que constituiu um ponto de referência na nossa luta: a greve dos marinheiros e estivadores do cais de Pidjiguiti, em Bissau, que terminou com o massacre de cerca de cinquenta trabalhadores. O PAI apenas estabeleceu alguns contactos. Era fundamentalmente um problema restrito aos trabalhadores do cais. O que eles exigiam, simplesmente, era melhores salários. E a razão era a de que não ganhavam nem para comprar arroz. Ganhavam quinze escudos por mês. A situação era desesperada, uma vez que a vida estava cada vez mais cara. Os homens que se fixavam na cidade e abandonavam os campos necessitavam de dinheiro. Assim, com a greve dos marinheiros e estivadores, o porto paralisou. Vieram os soldados e a polícia e acabaram por atirar. Eu nessa altura morava na marginal e assisti a tudo. Vi gente no cais atirando contra os marinheiros, que não tiveram outra solução senão atirar-se ao mar ou fugir nos barcos. E eles continuavam no cais, atirando - tropa, polícia e até civis, também armados. Nessa altura aconteceu a prisão de Carlos Correia, que foi depois primeiro-ministro da Guiné, e que trabalhava comigo na Casa Gouveia. Ele estava apenas a assistir a tudo aquilo, quando foi empurrado por um polícia. Como reagiu, acabou por ser detido.
Nós tínhamos nessa altura o controlo das conversas telefónicas entre Bissau e Lisboa. O Aristides Pereira era o chefe da estação telegráfica. Quando havia conversas entre personalidades que nos interessavam, ele controlava-as pessoalmente. Foi assim que ele ouviu a conversa entre o director da PIDE de Bissau e o director da PIDE em Lisboa. Este procurou saber o nome de um africano, já com idade razoável, que se tivesse destacado no dia da greve. O homem de Bissau foi procurando e acabou por chegar ao Carlos Correia, que tinha alguns estudos, trabalhava na CUF e que teve o tal incidente com a polícia. Decidiram prendê-lo. Nós já tínhamos as nossas redes. Uma das pessoas que esteve muito ligada ao início da luta foi uma farmacêutica portuguesa, Sofia Pomba Guerra, que me mandou avisar que o Carlos Correia ia ser preso. Saí de Bissau à procura dele. Encontrei-o e fi-lo sair da cidade nessa mesma noite. No dia seguinte, às oito da manhã, a PIDE foi à Casa Gouveia prendê-lo, mas ele já lá não estava. O massacre de Pidjiguiti alertou as nossas consciências, porque a situação social, em Bissau, era complexa. Havia um grande número de indivíduos africanos que se sentiam numa situação mais ou menos privilegiada, em relação à grande massa da população da Guiné. Mesmo no meio dos originários de Cabo Verde não era muito fácil fazer a mobilização, porque muitos indivíduos já tinham uma posição mais ou menos favorável. Penso que havia uma certa contradição ao nível dessa pequena-burguesia africana. Os cabo-verdianos vinham de Cabo Verde com um nível cultural superior ao dos indivíduos da Guiné e ocupavam cargos na função pública e na administração. Os guineenses - naquele tempo não havia liceu em Bissau - viam os outros chegar e ocupar os lugares. A esse nível, eu penso que, mesmo nessa altura, já existia uma certa fricção. Mas, ao nível do movimento de libertação, isso não tinha significado. O partido foi fundado por guineenses e por cabo-verdianos e embora quer eu quer o Amílcar, quer outros, sejamos de origem cabo-verdiana, isso não impediu que a grande massa do povo tivesse aderido à nossa luta. Basta ver que, mesmo assassinando o Amílcar, foi possível manter toda a estrutura da direcção do partido. E houve um apoio em massa a Aristides Pereira, para o cargo de secretário-geral, liderando eu todo o processo da sua candidatura. E ele nem nasceu na Guiné. O Amílcar teve conhecimento imediato dos acontecimentos de Pidjiguiti, em Agosto de 1959. Nós fizemos seguir um comunicado para ele, o que não foi difícil, porque o Fernando Fortes era director dos serviços postais. Metia a nossa correspondência depois de os sacos estarem oficialmente fechados. Assim, no dia a seguir ao massacre de Pidjiguiti, rádios como a BBC e a Voz da América leram o nosso comunicado. A PIDE já tinha indícios de que havia um movimento clandestino. Em 1960, o meu irmão foi a Tunes, ligado ao Movimento Anti-Colonial (MAC), que depois deu origem à Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). Decorria a II Conferência Pan-Africana e ele apresentou-se com um nome falso, Abel Djassi. Foi essa a nossa primeira presença no movimento pan-africano. De Tunes, o Amílcar seguiu para Londres, onde deu a primeira conferência de imprensa de um nacionalista oriundo das colónias portuguesas. Depois passou em Dakar, exactamente no mesmo dia em que lá cheguei, fugido de Bissau. A minha fuga ocorreu ainda em I960, quando foi inaugurada a sede da Associação Comercial de Bissau, com a presença de alguns administradores da CUE. Um desses administradores telefonou para Lisboa, pedindo que recrutassem um guarda-livros, porque eu ia ser preso pela PIDE. Tinham conseguido que a minha prisão fosse adiada, para que eu fechasse o ano comercial. O Aristides Pereira ouviu a conversa. A minha fuga foi, de imediato, preparada. Contei com a ajuda de um português antifascista, Fausto Teixeira, que estava deportado na Guiné, e que me levou de carro, durante a noite, até à fronteira com o Senegal.
O início da luta aberta e da denúncia internacional, com a conferência de imprensa de Londres, coincidiu com a instalação da PIDE em Bissau. Foi também quando o Amílcar escreveu o primeiro memorando ao governo português, onde alertava para a necessidade de resolver o problema colonial, prontificando-se a estudar em conjunto as diferentes etapas do processo. Como não houve qualquer resposta, um ou dois anos depois iniciámos a acção directa. Não foi nada de muito grave: começámos por deitar árvores sobre a estrada para impedir a passagem de veículos, destruir pequenas pontes de madeira, sem grande valor. Foi uma fase de transição, no fim da qual o Amílcar escreveu uma carta aberta ao governo português, em 13 de Outubro de 1961, em que lançava o aviso: «Nada poderá suster o PAIGC no cumprimento da sua missão histórica.» Como também esse aviso não surtiu qualquer efeito, restou-nos a luta armada. O PAIGC começou a sua instalação em Conakry, ao mesmo tempo que os primeiros quadros do partido seguiam para Pequim, onde receberam instrução militar. Entretanto, os dirigentes que estavam na Guiné tiveram que sair, como foi o caso do Aristides Pereira que, inicialmente, era para ficar mais tempo, como pretendia o Amílcar. Só que ele não conseguiu aguentar e saiu mesmo. Ao mesmo tempo, houve uma vaga de prisões em Bissau. O Fernando Fortes foi um dos presos. Alguns quadros tinham ficado em Bissau porque o Rafael Barbosa tinha um grupo que defendia também a independência, com alguns elementos em Conakry, e foi necessário fazer uma aproximação. Negociámos a integração desse grupo no PAIGC, ainda PAI, constituindo uma frente.
O Rafael Barbosa passou a ser o secretário do interior, depois de um encontro que tivemos em Dakar. Quando ele regressou a Bissau, onde começou a viver clandestinamente, tinha a responsabilidade de dirigir toda a acção do partido no interior, até ao dia em que foi preso. Quando foi preso pela PIDE, apanharam a relação dos quadros clandestinos do partido que estavam em Bissau, incluindo alguns, como o Domingos Ramos, que já tinham feito a sua preparação na China. O início da nossa instalação na Guiné-Conakry também não foi fácil. Já funcionavam em Conakry alguns grupos que tinham mais ou menos o apoio do partido de Sekou Touré, o Partido Democrático da Guiné (PDG). Para nós, era complicado combater esse apoio, porque eles ligavam-se aos comités de bairro, uma estrutura que, num partido populista como era o PDG, tinha bastante força. Ali, apresentavam-se como pessoas que não sabiam nada de política, porque o governo português nunca tinha permitido fazer política. E iam mais longe: pediam que lhes indicassem o que deviam fazer. Quando o PAIGC chegou em força a Conakry, e também o MPLA e os outros movimentos de libertação, à excepção da Frelimo, com muitos quadros que trabalhavam como médicos, professores, etc., os outros indivíduos ligaram-se ainda mais aos comités de bairro. O Amílcar foi procurar apoio junto dos altos dirigentes da República da Guiné, mas nunca desprezou a acção dos outros indivíduos. Eu próprio, muitas vezes, não compreendia o comportamento do Amílcar e dizia-lhe: «Esses indivíduos não valem nada. Nem são capazes de ganhar a sua vida. » Mas ele sempre tomou a sério todo e qualquer indivíduo. Chegava a assistir a reuniões a que eu achava que ele não devia assistir, mas ele insistia, procurava explicar as nossas ideias, o que nos fez ganhar cada vez mais gente.
Nós tivemos, na República da Guiné, um grande apoiante, o presidente da Assembleia Nacional e um dos fundadores do PDG, Diallo Sayfoulaiye. Um dia, em conversa com Amilcar Cabral, que estava um pouco desanimado, ele citou-lhe uma frase da filosofia fula: «Nunca se atiram pedradas a mangueiras que não tenham mangas maduras.» Não nos esquecemos desta lição. Os primeiros quadros foram formados na China. Foi para lá que partiram os militantes que receberam preparação militar. O primeiro grupo era composto por Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Rui Djassi, Vitorino Costa, Constantino Teixeira, Hilário Gomes, Pedro Ramos e Manuel Saturnino Costa. Juntaram-se a eles, um pouco mais tarde, Chico Mendes e Nino Vieira. Deste grupo saíram os principais comandantes da guerrilha e, alguns deles, foram mesmo altos dirigentes do partido. Eles foram depois espalhados pelas várias zonas da Guiné, para dirigirem a guerrilha. E aconteceu, por exemplo, quando o Nino Vieira se instalou no Sul, que já lá andavam alguns dos indivíduos que eram contra nós, em Conakry. Mas, depois de os «homens grandes» ouvirem a mensagem de Amílcar, transmitida por Nino Vieira, foram eles próprios que prenderam os outros. «O caminho é este! O caminho de Amílcar Cabral», garantiam eles. A verdade é que muitos deles ainda se lembravam do Amílcar, que tinha percorrido toda a Guiné, anos antes, a fazer o recenseamento agrícola. Muitos recordavam-se do engenheiro. E esta ligação era tão forte, que muitas crianças que nasceram naqueles anos tiveram o nome de Engenheiro.
As primeiras armas vieram de Marrocos, mas eram de origens diversas. Vinham dos países de Leste, como a Checoslováquia. Foi no final de 1962. Chegavam metralhadoras, lança-granadas, obuses. A primeira pessoa que decidiu dar-nos armas para a nossa luta foi o rei de Marrocos, Mohamed V. Ele tinha lutado contra os Franceses, até à independência e, por isso, estabeleceu como um dos pontos principais da sua política a descolonização de África. Em Marrocos, tivemos sempre autorização para fazer entrar o nosso material, o que não aconteceu, durante muito tempo, na República da Guiné-Conakry. O apoio da República da Guiné ao PAIGC foi ganho todos os dias, com a nossa insistência. Quando começaram a chegar as armas, a Guiné não autorizava a entrada no seu território. Nessa altura, eu era o homem encarregado do abastecimento, da logística das Forças Armadas e recorria a tudo para conseguir levar as armas a Conakry e de Conakry até à Guiné. Usámos expedientes como, por exemplo, transformar sofás para levar metralhadoras lá dentro. Depois, apercebi-me de que o homem só tinha a capacidade de calcular o peso até uma determinada altura e, a partir daquela altura, tanto fazia que fossem quinhentos quilos, como três mil. Quando chegavam as armas a Rabat, seguíamos, sem escolta militar, para a garagem das nossas instalações naquela cidade, e era ali que fazíamos as embalagens clandestinas para entrarem em Conakry. O transporte era sempre de barco. Lembro-me de uma vez que o Abílio Duarte foi a Rabat para acompanhar até Conakry um carregamento de granadas, que seguiam disfarçadas em caixas de medicamentos. Colocávamos granadas até determinada altura das caixas, pondo mais à superfície os medicamentos. Como tinham o rótulo de «FRÁGIL», seguiram no camarote do Abílio, que passou todo o tempo de sentinela, porque o seu companheiro de camarote fumava. As granadas também eram muitas vezes transportadas em caixas de tinta Gestetner. Tiravam-se os tubos, transportados em sacos, e colocávamos as granadas dentro das caixas. Os detonadores e tudo o que era explosivo eram transportados em pacotes de cigarros LM, a marca que Amílcar fumava. Tiravam-se os maços de cigarros e colocavam-se os detonadores. E foi assim que fomos levando o material para Conakry, até ao dia em que fomos descobertos e presos. Tudo aconteceu por causa de latas de sardinhas, que tinham balas. Nas minhas camuflagens, em Rabat, costumava embalar balas em caixas de sardinhas portuguesas. Mas esqueci-me das carências que havia em Conakry, onde havia falta de tudo. Quiseram roubar as sardinhas no porto e saíram as balas. Todos os membros do PAIGC que estavam em Conakry foram presos. Entre eles, Aristides Pereira, Vasco Cabral, Pedro Ramos e eu próprio. Como nós prevíamos sempre essa hipótese, sempre que estavam para chegar barcos com armas para nós, fazíamos sair o Amilcar. Dessa vez, ele estava em Rabat. Os angolanos que estavam em Conakry connosco saíram logo para avisar o Amílcar, que iniciou logo diversos contactos no sentido de mobilizar a opinião africana a nosso favor, sem entrar em conflito com a República da Guiné. Estivemos presos cerca de um mês. As autoridades de Conakry queriam que o Amílcar regressasse, como condição para sermos postos em liberdade. Mas eu respondi que, se havia razões para estarmos presos, seriam mais fortes ainda para Amílcar Cabral ser preso.*-
União Soviética, China, Checoslováquia, Marrocos, Argélia, Cuba - eis o leque de apoios de que o PAIGC usufruiu na luta armada contra a autoridade portuguesa. A situação dentro do partido clarificou-se no I Congresso, em 1964, que decidiu da prisão de alguns chefes da guerrilha e da morte de outros. Senghor achava que o PAIGC era um instrumento de Sekou Touré, mas depois a ajuda do Senegal foi importante. Mais tarde, contra o esforço estratégico de Spínola, que passou pela invasão de Conakry, surgiram os mísseis Strela.
A nossa primeira acção armada realizou-se em Janeiro de 1963, contra o quartel português de Tite, no Sul. O Amílcar foi sempre contra o começo da luta através de acções junto da fronteira. Defendeu que devíamos esperar, ter o material no interior do país para iniciar as acções, a partir do interior. Se começássemos pelas zonas de fronteira, as tropas coloniais teriam força suficiente para nos fecharem a passagem e não poderíamos avançar. Tínhamos de começar as acções no interior, depois de nos instalarmos. Foi em Tite e em Morés, uma no Centro-Sul e outra no Centro-Norte, que iniciámos a luta armada. A partir daqui, os apoios foram aumentando. Depois de Marrocos, foi a Checoslováquia. Aliás, o apoio da Checoslováquia foi quase simultâneo porque, se as primeiras armas nos foram dadas por Marrocos, as segundas recebeu-as Marrocos da Checoslováquia. A nível de formação de quadros, além da China, fomos apoiados por Marrocos, pela Checoslováquia e, um pouco mais tarde, pela Argélia, logo que este país conquistou a independência. Cuba também nos ajudou muito, numa fase posterior. O apoio da União Soviética foi o mais importante, embora não se tivesse manifestado logo no início. Mas sempre soubemos que países como a Checoslováquia nos ajudavam com o acordo prévio da União Soviética.
A primeira etapa foi a luta clandestina. Às vezes, quando falava com o Amílcar, dizia-lhe: «Nós fizemos tão pouco em Bissau.» Ele respondia sempre: «Se não fosse aquele bocadinho que se fez em Bissau, não tinha sido possível fazer a parte grande.» Depois foi a acção directa e, finalmente, a acção armada, a partir de 1963. Depois do início da acção armada, foi a definição das áreas, que veio a dar origem ao I Congresso do PAIGC, em 1964. Vivemos então um período difícil. Os homens foram preparados para uma certa luta e depois, cada um, quando se viu sozinho na sua área, fez aquilo que lhe pareceu melhor. Aconteceram coisas terríveis nalguns locais do Sul da Guiné, até assassinato de pessoas. Foram cometidos crimes monstruosos nesse período. Mas o I Congresso, realizado em Cassaca, em Fevereiro de 1964, pôs termo a esta situação. Muitos chefes da guerrilha foram presos e alguns foram mortos, depois de serem considerados culpados por aquela situação. O I Congresso marcou uma viragem na luta do PAIGC. Nessa altura, já havia na Guiné áreas controladas por nós. As áreas principais eram o Centro-Norte, na região de Morés, o Leste e o Centro-Sul, e o Sul propriamente dito, onde estava o Nino Vieira. O Rui Djassi comandava o Centro-Sul, o Domingos Ramos o Leste e o Osvaldo Vieira o Centro-Norte, que era a zona mais difícil de abastecer, porque não tínhamos o apoio do Senegal. Não nos deixavam passar nada. Nem medicamentos. Havia um controlo muito rigoroso. Éramos vítimas das más relações entre a República da Guiné e o Senegal. O presidente Senghor considerava que nós éramos o partido do Sekou Touré e nós batalhávamos para o convencer que não.
Depois de ter garantido a acção no Sul, o meu irmão mandou-me para o Norte, porque um dos principais objectivos era conseguir a ajuda do Senegal, o que consegui. Mais tarde, entre 1965 e 1966, Senghor deu-nos autorização para passar com mercadorias. Mas nós passávamos as armas. Também aqui tivemos de dar voltas à imaginação. Utilizámos os tambores de gasóleo para meter armas lá dentro. Os tambores eram abertos, a parte fechada ficava para cima, onde nos sentávamos. Tudo começou assim, mas depois também se estabeleceu uma cumplicidade entre nós e os funcionários senegaleses da fronteira. Falei várias vezes com Senghor, mas o meu trabalho foi feito essencialmente com os governadores de regiões junto à nossa fronteira. Eles é que iam dar, depois, as informações a Dakar. O primeiro contacto foi mesmo desastroso - houve um recontro entre os nossos combatentes e a polícia senegalesa, de que resultou um morto senegalês. Foi uma situação gravíssima. Senghor quis logo falar com o Amílcar. Enviou recados por diversas embaixadas, de que queria vê-lo imediatamente. O Amílcar já conhecia Senghor, tinham sido apresentados em Paris pelo Mário Pinto de Andrade. Nessa altura, Senghor disse-lhe: «Eu sou contra a luta armada.» O meu irmão respondeu-lhe: «Eu também, mas ela já existe e não temos outra solução senão ajudá-la. » O segundo encontro foi então o de Dakar, quando Senghor chamou Amílcar para explicar a situação da morte do polícia senegalês. Senghor estava muito zangado e foi duro com o Amílcar. Ele ouviu-o, e respondeu: «Senhor presidente, se eu e os meus companheiros soubéssemos que um dia um presidente africano me receberia com pedras na mão, era quase certo que não nos teríamos lançado nesta tarefa da libertação do nosso povo.» Senghor mandou-o sentar e tratou-o, pela primeira vez, por tu. A partir daí começou a haver colaboração, que não foi fácil. Houve mesmo pressão da França a favor de Portugal.
O apoio do Senegal foi decisivo para a nossa luta. Os principais centros urbanos estavam no Norte, nomeadamente Bissau. Para fazer uma acção, por exemplo, numa região do Oeste, os homens tinham que andar centenas de quilómetros, carregados com o material, muitas vezes sem comida, sem nada. E tínhamos, na mesma, conflitos com o Senegal porque os homens, quando atravessavam um campo de mandioca, comiam tudo. Claro que o agricultor protestava e tínhamos problemas. Quando apareceram os governadores militares senegaleses, começámos a ter aliados, embora, de início, houvesse muitas reservas. Mas quando começaram a contactar connosco, ganhámos aliados. Começámos a poder transportar material de guerra, embora escoltado por militares do Senegal. Estávamos em 1966. A partir daqui, a luta alastrou a toda a Guiné. Tínhamos bases instaladas e também unidades móveis. Criámos os corpos do exército. Armámos as milícias. Os corpos do exército estavam bem armados e era deles a responsabilidade das grandes operações. A evolução da guerrilha foi muito grande. Em 1974, quando terminou a guerra, o PAIGC tinha cerca de dez mil homens armados, entre exército e milícias. Nunca tivemos cubanos como operacionais. Eles eram instrutores e começaram a chegar a partir do momento em que estávamos a usar a artilharia - entre 1967 e 1968. Eram quase todos instrutores de artilharia. Mas primeiro chegaram os médicos cubanos. Também tivemos médicos franceses e belgas, que trabalharam quase sempre na fronteira, numa base a dezassete quilómetros da fronteira. Fizeram verdadeiros milagres. A célebre prisão do capitão Peralta foi um acidente. Ele nem sequer era combatente, era inspector. Ia lá ver como as coisas estavam a decorrer. Só que teimou em entrar numa altura em que lhe disseram para não ir. A área era muito descoberta e ele corria o risco de ser visto por um helicóptero. Teve azar! Passou mesmo um helicóptero, ele ia apenas com uma pequena escolta e acabou por ser apanhado. Nas matas, é muito difícil. O nosso povo, nos campos de arroz, tinha um truque para não ser visto pelos helicópteros ou pelos aviões: cortavam ramos de árvore e tapavam-se, como se fosse um guarda-chuva, quando ouviam o barulho dos motores.
O maior esforço de guerra português foi feito depois da chegada do general Spínola e foi principalmente apoiado na aviação. A aviação era, de facto, superior a todas as forças que estavam ali. Nunca conseguimos que os nossos homens enfrentassem os helicópteros, mesmo depois de terem as antiaéreas. O helicóptero assustava, tinha um impacte terrível. Por isso é que a guerra parou, depois de termos os Strela. Os mísseis Strela chegaram pouco tempo depois da morte do Amlcar (Janeiro de 1973) e foram fruto da última missão que ele realizou. Deslocou-se à União Soviética e conseguiu negociar o envio dos mísseis. Fomos, como se sabe, os primeiros a utilizá-los. O Amílcar, com o seu relacionamento pessoal, conseguiu sempre interessar pessoalmente os funcionários soviéticos pela nossa luta. Por exemplo, sabia que um coleccionava selos e, quando viajava pelos países de África, arranjava sempre selos para esse funcionário. Outro gostava de estatuetas africanas, e ele não se esquecia. Isso motivava as pessoas. Foi assim que um desses amigos nos avisou que havia os Strela e que havia grandes hipóteses de os conseguirmos. O Amílcar foi então a Moscovo negociar essa entrega. Quando a delegação do comité soviético de solidariedade afro-asiática foi ao funeral do Amílcar, anunciaram-nos que tinha sido dada autorização para essa entrega e que devíamos organizar um primeiro grupo para receber instrução. Esse grupo foi dirigido pelo Manecas dos Santos. O impacte dos mísseis nas tropas portuguesas foi terrível. Todos os planos do general Spínola se baseavam na superioridade da aviação e, quando começaram a ver cair os aviões, descobriram que não tinham planos. Agora eram atacados à luz do dia. Estavam só habituados aos nossos ataques nocturnos e, quando começaram a cair os primeiros aviões, deixaram de aparecer. Esta foi uma fase decisiva.Quando se deu o ataque eu não estava em Conakry e o Amílcar também não, mas apenas por coincidência. Começaram a circular informações em Conakry que apontavam para uma tentativa de derrube de Sekou Touré. Ele chegou mesmo a chamar o Amílcar e a dizer-lhe que sabia que estava a ser preparada uma tentativa de golpe, a partir de Bissau, e pediu-lhe para tentar saber qualquer coisa. A família do Amílcar estava lá quando foi a invasão. Aliás, foi disparado um tiro de bazuca contra a casa dele e a viúva ficou sempre a sofrer dos ouvidos, por causa do barulho da explosão. Durante muito tempo, conservámos o buraco na casa. Os guardas da casa do Amílcar responderam imediatamente e os atacantes recuaram. De facto, quem resistiu ao ataque fomos nós. Sekou Touré reconheceu isso em vários discursos. Quem tirou os comandos da central eléctrica foram os nossos homens, comandados pelo Constantino Teixeira, que foi mais tarde ministro do Interior da Guiné-Bissau. Só no dia seguinte, de manhã, é que o Exército guineense respondeu. O chefe de Estado-Maior do Exército guineense foi preso com vários outros oficiais, por cumplicidade com a tentativa de golpe. Um dos comandantes dos nossos barcos estava no seu barco, no porto de Conakry, quando viu, ao largo, comandos a matar gente num outro barco. Conseguiu fugir e foi avisar o Estado-Maior das Forças Armadas. Alertou a sentinela e seguiu logo para as nossas instalações, para avisar também. Quando a sentinela subiu para fazer o aviso, o Estado-Maior estava reunido com os comandos invasores. Mandaram chamar o nosso comandante, Irénio Nascimento Lopes que, no entanto, não ficou à espera quando percebeu. Havia um grande complot interno. Alguns dos oficiais portugueses foram mesmo recebidos por membros do Governo e andaram a passear de Mercedes pelas ruas de Conakry.
Não acredita que Spínola gostasse de Amílcar Cabral. Pensa que a única tentativa séria de negociação da paz com os portugueses foi o infrutífero encontro de Londres, em Março de 1974. Afirma que os assassinos de Amílcar Cabral tinham apoio da PIDE. Depois da morte dele, o PAIGC lançou operações para mostrar força. E em Setembro de 1973 proclamou unilateralmente a independência. Foi planeada a prisão de Spínola. Luís Cabral assume a morte dos três majores enviados por Spínola para negociar. E diz que havia militantes do PAIGC a serem treinados na União Soviética para pilotarem aviões MiG.
Hoje penso que a única coisa séria que houve quanto a negociações foi o encontro tido em Março de 1974, em Londres, de que não resultou nada, porque entretanto deu-se o 25 de Abril. Como se sabe, estivemos sempre abertos a todo e qualquer contacto, com cessar-fogo, sem cessar-fogo, com condições, sem condições. Por isso, espanto-me muito quando leio que o general Spínola quis contactos com o Amílcar, porque sempre gostou dele. Garanto-lhe que o Amílcar nunca soube disso. Por exemplo: é uma loucura pensar que um indivíduo da categoria do Amílcar, que foi capaz de fazer toda aquela luta, pudesse acabar como secretário-geral do governo colonial na Guiné. É um absurdo completo. De facto, Spínola ainda hoje não compreende que um homem como o Amílcar, quando se dedicava a uma coisa destas, não ficava a meio. O Amílcar quis sempre discutir com o governo português. Mas com Spínola nunca houve qualquer contacto, nem directo, nem indirecto. O que nós sabíamos é que havia perspectivas. Senghor falou com o Amílcar na perspectiva de um encontro e o meu irmão disse-lhe que, de facto, todo o encontro com o governo português seria bom. Tudo o que se fizesse no sentido de o governo português aceitar encontrar-se com os nacionalistas seria útil, mas o Senghor, como chefe de Estado, com o prestígio que tinha, devia era encontrar-se com o chefe de Estado português. No entanto, depois soubemos que ele teve um encontro com Spínola. E soubemos porquê? Como estávamos muito bem relacionados, contaram-nos logo como se estava a preparar tudo para o encontro, no maior segredo. Ligaram-nos e ficámos a saber que tinha havido o encontro.
As cartas que apareceram num livro do comandante Alpoim Calvão foram assinadas por mim e tratou-se de uma história muito simples. Um comerciante da fronteira norte, Mário Soares, depois denunciado como agente da PIDE, escreveu uma carta ao Amílcar a dizer que tinha uma comunicação importante a fazer, mas que só podia ser feita fora da Guiné, e propôs Londres, onde tinha uma filha a estudar. O Amílcar recebeu a carta e mandou-ma, porque eu é que estava ligado a Bissau. Respondi à carta e aceitei esse encontro. Mandámos a Londres o Vítor Saúde Maria, que estava ligado às relações exteriores. E quando o Vítor lá foi, encontrou-se com a filha do Mário Soares. Mas ele não apareceu. E foi essa a história das cartas e dos telegramas. Como ele, estando ali na fronteira do Senegal e sabendo que a cem metros estávamos nós, em Caledá, e que tínhamos bases a um quilómetro ou dois de Pirada, sabendo isso tudo, ele pediu que o encontro fosse em Londres, nós pensámos que era uma coisa que ele queria fazer contra a vontade do Spínola, às escondidas. Não queria que o governador colonial tivesse conhecimento. E escrevemos a carta a dizer que mandávamos alguém, nunca seria o Amílcar nem eu, mas foi o Vítor Saúde Maria. Nunca houve mais nada, a história resumiu-se a isso. Houve também, na altura, uns indivíduos ligados ao exército português que marcaram um encontro em Roma e mandámos lá o José Araújo. Nunca soube dos resultados desse encontro. Com os problemas todos que eu tinha, essas coisas só me interessavam até certo ponto. Quando não davam sequência, acabavam. Com Londres, passou-se a mesma coisa. O representante português não queria falar de Cabo Verde, só queria falar da Guiné. Ora nós já tínhamos um Estado, reconhecido por mais de oitenta países, e o Vítor Saúde Maria já era o ministro dos Negócios Estrangeiros desse Estado. Se não tivesse havido o 25 de Abril, talvez tivesse havido uma sequência. Eles sabiam que a guerra ia continuar. Nós tínhamos todas as condições para crer que a guerra ia avançar a nosso favor.
Os homens que assassinaram o Amilcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau, das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E então indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kati, Aristides Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas para isso os guineenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o PAIGC estivesse em Cabo Verde, porque isso seria dar o arquipélago aos soviéticos, para base no Atlântico. Foi todo esse trabalho que os homens fizeram em Conakry. Eles usaram vários quadros do partido, até chegarem a elementos que os denunciaram e eles foram presos. Foram presos, depois do assassinato do Amílcar Cabral. Entretanto, essa abertura do Governo português foi ao encontro dos indivíduos que tinham problemas com a direcção do partido - um comandante da marinha que tinha vendido o motor de um barco e que tinha vendido não sei o quê, outro que fez contactos com o tal Mário Soares de Pirada, que era o João Tomás Cabral - era uma série de indivíduos em falta. O Amílcar quis fazê-los vir todos a Conakry para conversar com eles e recuperá-los. Era sempre o objectivo dele.
Eram esses indivíduos, que vendiam coisas do partido, dos armazéns, que criaram uma vida paralela em Conakry - até com mulheres e casa - sem terem salário, porque nenhum de nós tinha salário. Toda essa gente acabou por criar uma vida paralela, que não se podia aguentar se não fizessem os desvios das coisas que faziam. Esses indivíduos acabaram por ver a grande saída. Foi por isso que, quando assassinaram o Amílcar e prenderam o Aristides Pereira, tentaram sair para Bissau mas foram interceptados por um barco soviético, a pedido do Sekou Touré. Foram feitas várias tentativas para destruir o partido, até chegar ao ataque a Conakry, operação de um comando especial orientado directamente pelo general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o Governo e destruir a direcção do PAIGC. Depois do fracasso desse ataque a Conakry, a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por dentro. Foi isso que nos levou a crer que, numa lógica de guerra, de procurar destruir o inimigo, o general Spínola teve a sua participação nisso. Nessa lógica, admito que sim, mas não tenho provas concretas disso. Ele, de facto, nunca procurou o encontro com o Amílcar, nunca procurou compreender a luta do PAIGC, a razão histórica dessa luta no quadro geral da libertação de África.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral foram quase todos fuzilados. Esses homens foram mandados pela PIDE, eles disseram isso. Aristides Barbosa foi interrogado e chegou a dizer isso - não só pela PIDE como por autoridades da República da Guiné. Sekou Touré também não gostava muito do Amílcar. Fez sempre bastante resistência para nos ajudar. Antes de nos instalarmos em Conakry, eles tinham o controlo sobre compatriotas nossos que se submetiam totalmente a ele. Admito mesmo que ele tivesse tido ambições de uma Grande Guiné. Ele chegou a afirmar isso em Bissau, já depois da independência, o que constituiu um dos momentos mais difíceis na minha vida de chefe de Estado. O Amílcar era um dos dirigentes africanos mais capazes e isso coincidiu com a queda do prestígio do Sekou Touré. Para mim, ele não foi capaz de conduzir o país para o progresso. Agarrou-se a uns certos cidadãos e começou a defender o poder pelo poder. Isso fez com que eliminasse muitos quadros, e se fizesse rodear cada vez mais da mediocridade, como acontece sempre nestes casos. Já depois do assassinato do Amílcar, o presidente Boumediene, da Argélia, contou-me que, quando tinha estado em Conakry, quando seguia no carro com Sekou Touré, do aeroporto até ao palácio, perguntou-lhe pelo Cabral. Sekou Touré disse-lhe: «Está muito mal com os companheiros, está um bocado isolado... » Isso não era verdade. Depois, basta recordar o discurso que ele fez ainda junto do caixão do Amílcar, criticando o partido e a sua acção. Como irmão do Amílcar, se alguma coisa me deu coragem foi ouvir essas palavras. Nós tínhamos que fazer tudo para provar que era mentira, aguentar o partido, levar as coisas para a frente, ir até à independência.
Naquela altura, o problema era aguentar o partido, organizar o II Congresso, eleger o novo secretário-geral. Nós escolhemos o Aristides Pereira, que era o mais próximo do Amílcar, e fizemos uma campanha que cobriu todo o território da Guiné. Fiz reuniões no Norte, no Sul, no Leste, na fronteira, no interior, em todo o lado. Quisemos ouvir a opinião do povo, dizer-lhes todas as palavras de ordem dos conspiradores e ouvir a opinião das pessoas. Fizemos o II Congresso e mesmo aí houve uma tentativa de sabotagem do Sekou Touré. Nós, no Norte, estávamos muito apreensivos, porque os homens que participaram no assassinato do Amílcar tinham saído quase todos do Sul e alguns do Leste. Então, resolvemos garantir a segurança do II Congresso. Ocupámo-nos nós, os do Norte, da segurança do congresso. Mandámos um batalhão de homens, comandados pelo Lúcio Soares, o Julião Lopes, o Manuel dos Santos (Manecas), o Bono Keita e outros para garantir a segurança. Então o Sekou Touré soube desses homens, que iam do Norte para o Leste, e escreveu uma carta ao governador de Boké, dizendo que avisasse o Nino para, por sua vez, avisar o Aristides, que não fosse à reunião do II Congresso porque corria perigo. Que tinham vindo homens do Norte para assassiná-lo. Então, o Nino foi mostrar a carta ao Aristides Pereira e ele, depois, mostrou-ma a mim. A frase do Aristides foi esta: «Que é que este gajo quer?» Foi um período extremamente difícil, em que nós nos apercebemos que o Sekou Touré queria entrar, que ele não tinha confiança nem em mim nem no Chico Mendes, os dois membros da direcção política do Norte. Fomos nós que estabelecemos as relações com o Senghor, abrimos a frente norte, que era decisiva. Bissau, a capital, está na frente norte, os maiores centros urbanos estão todos na frente norte, e a zona mais distante de Conakry era a nossa retaguarda principal.
A decisão de declarar a independência foi do Amílcar, tudo isso foi escrito pelo Amílcar. Ele anunciou tudo, mesmo ao nível das Nações Unidas. O convite à delegação das Nações Unidas ainda foi feito por ele, mas como documento fundamental na proclamação do Estado. O que nós queríamos era que as Nações Unidas reconhecessem a existência do Estado, dum Estado independente como parcela dum território ocupado por forças estrangeiras. Mudar a nossa condição de colónia com parte do território libertado para a condição de Estado soberano com parte do. território ocupado. Foi isso que foi feito com a declaração da independência. O meu irmão morreu em janeiro e eu tive de tomar as coisas em mãos, mostrar a força do partido, mesmo depois do desaparecimento dele. Naquele período que se seguiu ao assassinato dele, os helicópteros sobrevoavam com altifalantes: «A guerra já acabou!», «O homem que arranjava as armas já morreu!» Aproveitaram para fazer propaganda, aproveitaram o acontecimento. Garantiam mesmo: «A guerra acabou!» Em resposta, lançámos grandes operações militares para mostrar a força do partido - tanto no Norte, contra o quartel de Guidage, como no Sul, contra o quartel de Guilege. Este último foi abandonado, mas nós não tirámos todo o proveito que era possível tirar disso. Esse plano foi feito pelo Amílcar, um ano antes de ser assassinado, e implicava atacar o quartel de Guilege, manter emboscadas na estrada de Guilege-Gadamael, que era o porto, e depois atacar as tropas quando abandonassem Guilege a caminho de Gadamael e, finalmente, concentrar as forças e atacar Gadamael. O comando português que lá estava esperava isso, o plano era tão lógico que eles esperavam isso.
O ataque a Gadamael acabou por não ser tão eficaz, porque, quando as nossas tropas entraram em Guilege, aquilo estava abastecido de tal maneira que a malta se sentou ali, bebendo cerveja. Parámos e de tal maneira que o cozinheiro do Nino entrou em estado de coma de tanto beber. Quando veio a si, disse: «As tropas não me mataram quando estavam em Guilege, mas depois de saírem já me iam matando. » Foi um período já de fazer operações para mostrar que o assassinato do Amílcar não tinha parado a luta. Houve então o ataque a Guidage, no Norte, que está descrito detalhadamente pelo Salgueiro Maia no seu livro. Foi assim mesmo que aconteceu. Quando abandonámos aquelas posições, não sabíamos que o estado das tropas portuguesas era aquele. A malta aguentou-se durante um certo tempo. No Norte, as munições não eram muitas e começaram a escassear. A alimentação também começou a ter alguns problemas e então nós, quando chegámos a um certo ponto, resolvemos abandonar. Não sabia que as coisas estavam já nesse pé. A ideia foi essa, a de mostrar a força do partido. Não tínhamos muito dinheiro e também investimos muito na Conferência Internacional da juventude - uma iniciativa enorme, com teatro, com música, com tudo, para mostrar a força do partido.
Depois fizemos o II Congresso, que elegeu o Aristides Pereira como secretário-geral, com todas as medidas já mencionadas, no Leste, na área de Madina do Boé. As forças portuguesas tiveram conhecimento da data prevista para o congresso. A formação do Estado devia ser feita no Sul, tudo estava já preparado no Sul para a declaração do Estado, tudo. Todas as instalações estavam feitas. No dia em que se sabia que começaram a entrar membros do partido, através da fronteira sul, destruíram a jangada da fronteira. Bombardearam a jangada, bombardearam aquela área toda. Nós estávamos já em Boké, a caminho do Sul, quando chegaram essas informações. Então desviámos para leste e mandámos logo um grupo para o Leste. E preparámos tudo, no Leste, para no dia seguinte fazer o Congresso. Toda a noite mexemos para isso e houve um momento interessantíssimo: a nossa garantia eram as antiaéreas e o Nino foi encarregado de fazer a defesa antiaérea do congresso. Depois dos ensaios todos das cerimónias, durante a noite, levar as pessoas a ler as coisas como deve ser, depois de todo o preparativo, fui-me deitar eram para aí duas ou três da manhã. O Constantino Teixeira e o Nino Vieira bateram à porta da barraca e disseram que tínhamos que fazer o congresso naquela noite, porque tinham trazido as rampas de lançamento, mas não tinham trazido os foguetes. Respondi-lhes que deviam assumir as suas responsabilidades, porque com toda a imprensa estrangeira que estava ali connosco, as coisas deveriam ser feitas com toda a dignidade, como estava previsto. No dia 24 de Setembro de 1973, às oito e meia da manhã, começámos as cerimónias. Os responsáveis pela segurança agitavam-se e pediam que se fizesse tudo depressa, mas cumprimos o calendário previsto. Estas coisas, ou se fazem com dignidade, ou não se fazem. Não estavam muitos jornalistas estrangeiros. Por exemplo, os jornalistas senegaleses não puderam vir. Mandaram pedir que se lhes enviasse as cassetes gravadas para poderem pôr no ar ainda nesse dia. Assim, naquele mesmo dia, à noite, as emissoras anunciaram a proclamação do Estado. Fomos reconhecidos imediatamente por cerca de oitenta países. Outros, como a Suécia, não nos reconheceram logo para poder continuar a ter uma certa influência junto do Governo português. Fomos reconhecidos por quase todos os países do Terceiro Mundo.
Spínola disse coisas com as quais não posso concordar. Eu respeito-o muito, ele fez o seu papel e fê-lo bem. Fez a guerra. Quando chegou à Guiné foi para intensificar a guerra, não foi para procurar a paz. Ele nunca nos tomou a sério. Quando mandou os oficiais lá para a operação do chão dos manjacos, que queriam negociar a rendição de tropas nossas, mostrou que não nos conhecia. Esses oficiais acabaram por ser mortos. A zona oeste do país era a mais distante de Conakry, aquela que tinha maiores dificuldades de abastecimento. Então, eles tiveram essa informação e souberam mobilizar os homens a leste, através de elementos da população que frequentavam os dois lados. Eles começaram a fazer a aproximação, depois começaram a aceitar que lhes levassem coisas para lá e começaram eles a mandar coisas. Então, o comandante da região, André Gomes, soube da situação e resolveu fazer o jogo. Puseram-nos ao corrente da situação e fizeram o jogo. Aceitaram todas as prendas, todas as coisas, deram tudo, recebiam os homens desarmados e iam desarmados e combinaram o dia da rendição das nossas tropas. Isso ficou combinado na última reunião na estrada de Cacheu-Canchungo, com o general Spínola. Nessa altura, nós mandámos para lá o nosso principal responsável da segurança no Norte, Luís Correia. Havia vários combatentes que não estavam a gostar daqueles contactos. Quando o Luís chegou lá, os interlocutores dos oficiais portugueses disseram: «Nós temos que dizer a eles que tu já chegaste, porque eles vão saber de certeza. Portanto, se não formos nós a dizer, vão pensar que há qualquer coisa.» E então, foram lá dizer que era preciso tomar mais cuidado, mais prudência, tinha chegado o homem da segurança do Norte.Quando se encontraram com o general Spínola, nessa estrada, disseram-lhe que esse responsável de segurança tinha vindo ali à região do Canchungo, para fazer uma cerimónia ali ao deus da área, que é o Irã de Cobiana, o grande deus da floresta. Mas ele, para fazer essa cerimónia precisava de aguardente de cana. Era preciso arranjar-lha o mais depressa possível que ele, fazendo a cerimónia, ia-se embora. Então, o general Spínola mandou comprar aguardente de cana e deu-a à malta para a cerimónia. Havia um aspecto de desprezo pelos nossos ideais, de tal maneira que pensavam ser possível com uma garrafa de whisky, até mesmo com umas contas e uns brincos, desviar aqueles homens dos seus ideais de libertação e de independência. Esses oficiais portugueses acabaram por ser mortos porque foram lá para assistir à rendição das nossas tropas. Foi feita uma emboscada e foram mortos. Isso não estava nos nossos planos. O plano era prender o general Spínola. Depois, a malta convenceu-se que o general Spínola não vinha. Como naquela área não tínhamos abastecimentos regulares, nem coisas para conservar esses oficiais, estávamos quilhados. Ou apanhávamos o general Spínola ou então não saía ninguém daqui. De outra vez, houve uns nossos que foram a Bissau, mandados por nós, como se se tivessem entregado. Pensavam que, como era hábito, o general os iria levar de helicóptero para ver melhor as aldeias da Guiné. Eles pensaram obrigar o helicóptero a descer, quando sobrevoasse uma região próxima de uma área controlada por nós. Mas essa missão não se concretizou. Nunca planeámos qualquer acção para matar o general Spínola. Nós sabíamos que, se ele fosse morto, seria substituído por outro. A nossa luta passava pelo desgaste das tropas coloniais, a par do avanço da nossa mobilização. A nossa luta foi sempre avançando, sempre avançando. A retaguarda é que criou os elementos fracos. Queriam viver em Conakry, onde tínhamos armazéns cheios. Como lá havia carência de tudo, começavam a desviar coisas para o mercado negro, para arranjar mulheres e arranjar casas. Foi essa retaguarda que forjou toda a conspiração contra o partido e contra o Amílcar. Nunca houve qualquer cisão no nosso partido. Amílcar escreveu: «O nosso partido é um corpo vivo, em crescimento. Temos de ser capazes de lhe dar a roupa que corresponde a cada etapa desse crescimento. » Um sociólogo americano, Ronald Chilcote, disse uma coisa muito bonita sobre o Amílcar: «Ele faz a luta como faz agricultura. Primeiro, os fertilizantes, depois as sementes, a poda. » E era verdade. Tínhamos já um grupo de militantes que estavam a ser treinados para pilotos na União Soviética. Foram para lá ainda em vida do Amílcar. Era para pilotarem aviões MiG. Seriam a base da força aérea da Guiné independente. 1)
Amílcar Cabral, foi o grande impulsionador da criação do PAIGC. Aristides Pereira, chefe da estação telegráfica de Bissau, controlava as comunicações telefónicas. Os rebeldes tinham partido do incidente de Pidjiguiti, em Bissau. Ao primeiros quadros foram treinados na China. O armamento inicial era proveniente de Marrocos e de países do Leste, como a Checoslováquia.
Eu e o Amílcar éramos apenas filhos do mesmo pai, embora as nossas relações fossem mais íntimas do que as que nós tínhamos com os nossos irmãos do mesmo pai e da mesma mãe. Quando o nosso pai morreu, em 1951, o Amílcar ficou com a responsabilidade de toda a família. Ele estava a estudar em Portugal, no Alentejo. Nessa altura, enviou-me um telegrama, que dizia: «Ciente dolorosa fatalidade, unidos lutaremos.» E o mais interessante é que unidade e luta passou a ser a divisa do partido. Contaram-me depois que o Amílcar, quando recebeu a notícia da morte do nosso pai, se fechou durante três dias no quarto, para reflectir. Em 1952, ele veio para a Guiné, depois de ter tido já bastante dificuldade para receber o visto que na altura era necessário. Foi um amigo dele, bem colocado em Portugal, que acabou por lhe conseguir o visto. O Amílcar já estava ligado politicamente à luta anticolonial. Afinal de contas, o movimento começou em Portugal, na antiga Casa dos Estudantes do Império, através do Movimento Anti-Colonial (MAC), que depois se desdobrou pelos vários movimentos de libertação. Quando" ele chegou à Guiné, começou logo a organizar a luta. É curioso referir que, inicialmente, ele não queria que eu participasse. Não me dizia isso directamente, mas sim à mulher dele, Helena: «Não vou meter o Luís nisto, porque ele fica de reserva, para dar assistência à família. » Mas, por volta de 1955, quando o Amilcar saiu da Guiné, de novo para Portugal, já eu estava ligado a estas coisas.
Em 1956, fundámos o PAI - Partido Africano para a Independência e União dos Povos da Guiné e Cabo Verde. Foi numa reunião em Bissau, no dia 19 de Setembro, em que participaram Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin e eu. O Amílcar quis criar um grupo cultural que servisse de cobertura ao movimento nacionalista. Alguns de nós defendemos que, nesse grupo, não deveria aparecer o nome de Amílcar Cabral, para não alertar a PIDE. Mas como entretanto alguns começaram a dizer que o Amílcar Cabral não se queria expor, e que só outros é que corriam riscos, ele decidiu dar o nome dele e o grupo não foi autorizado. A partir daí, o Amílcar começou a ser mais vigiado. Começámos a luta clandestina e ele continuou a viver em Portugal, embora tenha ido várias vezes à Guiné. Numa dessas estadas, o governador, capitão de mar-e-guerra Melo Alvim, chamou-o e teve com ele uma conversa interessante. Começou por lhe perguntar: «Então, você é que é o chefe dos mau-mau cá da terra?» O Amílcar respondeu: «Não, senhor governador. Os mau-mau são da África Oriental, não são daqui.» O governador não desarmou: «Sabe uma coisa? Não me lixe! Seja um homem da actualidade. Viva a sua época.» Aquilo foi, para o Amílcar, o primeiro encorajamento que recebeu de um português tão importante como era o governador da Guiné. Só que, mais tarde, os rumores sobre a actividade de Amílcar Cabral aumentaram e o governador avisou-o: «O melhor que tem a fazer é sair daqui, senão sou obrigado a expulsá-lo. E, se eu o expulsar, nunca mais pode voltar à Guiné.» Amílcar veio para Portugal, onde continuou a desenvolver o seu trabalho como engenheiro agrónomo. Trabalhou ainda em Angola, nas fazendas Tentativa e CADA, onde conseguiu recuperar uma grande produção de café, que estava condenada. Juntamente com o seu trabalho como agrónomo, nunca deixou de desenvolver actividade política.
Na Guiné, o partido ia crescendo, embora contasse apenas com algumas dezenas de pessoas. Naquele tempo, um indivíduo já se considerava conspirador e revolucionário só por ouvir a Rádio Moscovo, ou a Rádio Brazzaville. Do ponto de vista ideológico, o nosso partido definia-se como nacionalista africano. Sobre isto, o Amílcar costumava dizer: «A ideologia não se come.» Esta era a grande diferença entre ele e muitos dos outros. Nessa época, os apoios internacionais eram quase inexistentes. Existia um grupo de amigos em França, e pouco mais. Os contactos internacionais começaram, realmente, a partir da nossa instalação em Conakry, em 1960. Mas logo no início tivemos sérias dificuldades com os países que depois nos vieram a ajudar - os países socialistas. É que na Guiné-Conakry estavam já instalados outros grupos: o Movimento para a Libertação da Guiné (MLG) e a Frente de Luta para a Independência da Guiné (FLING), que estavam contra nós e tinham o apoio das embaixadas dos países de Leste, que os consideravam representantes do povo e a nós representantes da pequena-burguesia. Em 3 de Agosto de 1959 deu-se um acontecimento que constituiu um ponto de referência na nossa luta: a greve dos marinheiros e estivadores do cais de Pidjiguiti, em Bissau, que terminou com o massacre de cerca de cinquenta trabalhadores. O PAI apenas estabeleceu alguns contactos. Era fundamentalmente um problema restrito aos trabalhadores do cais. O que eles exigiam, simplesmente, era melhores salários. E a razão era a de que não ganhavam nem para comprar arroz. Ganhavam quinze escudos por mês. A situação era desesperada, uma vez que a vida estava cada vez mais cara. Os homens que se fixavam na cidade e abandonavam os campos necessitavam de dinheiro. Assim, com a greve dos marinheiros e estivadores, o porto paralisou. Vieram os soldados e a polícia e acabaram por atirar. Eu nessa altura morava na marginal e assisti a tudo. Vi gente no cais atirando contra os marinheiros, que não tiveram outra solução senão atirar-se ao mar ou fugir nos barcos. E eles continuavam no cais, atirando - tropa, polícia e até civis, também armados. Nessa altura aconteceu a prisão de Carlos Correia, que foi depois primeiro-ministro da Guiné, e que trabalhava comigo na Casa Gouveia. Ele estava apenas a assistir a tudo aquilo, quando foi empurrado por um polícia. Como reagiu, acabou por ser detido.
Nós tínhamos nessa altura o controlo das conversas telefónicas entre Bissau e Lisboa. O Aristides Pereira era o chefe da estação telegráfica. Quando havia conversas entre personalidades que nos interessavam, ele controlava-as pessoalmente. Foi assim que ele ouviu a conversa entre o director da PIDE de Bissau e o director da PIDE em Lisboa. Este procurou saber o nome de um africano, já com idade razoável, que se tivesse destacado no dia da greve. O homem de Bissau foi procurando e acabou por chegar ao Carlos Correia, que tinha alguns estudos, trabalhava na CUF e que teve o tal incidente com a polícia. Decidiram prendê-lo. Nós já tínhamos as nossas redes. Uma das pessoas que esteve muito ligada ao início da luta foi uma farmacêutica portuguesa, Sofia Pomba Guerra, que me mandou avisar que o Carlos Correia ia ser preso. Saí de Bissau à procura dele. Encontrei-o e fi-lo sair da cidade nessa mesma noite. No dia seguinte, às oito da manhã, a PIDE foi à Casa Gouveia prendê-lo, mas ele já lá não estava. O massacre de Pidjiguiti alertou as nossas consciências, porque a situação social, em Bissau, era complexa. Havia um grande número de indivíduos africanos que se sentiam numa situação mais ou menos privilegiada, em relação à grande massa da população da Guiné. Mesmo no meio dos originários de Cabo Verde não era muito fácil fazer a mobilização, porque muitos indivíduos já tinham uma posição mais ou menos favorável. Penso que havia uma certa contradição ao nível dessa pequena-burguesia africana. Os cabo-verdianos vinham de Cabo Verde com um nível cultural superior ao dos indivíduos da Guiné e ocupavam cargos na função pública e na administração. Os guineenses - naquele tempo não havia liceu em Bissau - viam os outros chegar e ocupar os lugares. A esse nível, eu penso que, mesmo nessa altura, já existia uma certa fricção. Mas, ao nível do movimento de libertação, isso não tinha significado. O partido foi fundado por guineenses e por cabo-verdianos e embora quer eu quer o Amílcar, quer outros, sejamos de origem cabo-verdiana, isso não impediu que a grande massa do povo tivesse aderido à nossa luta. Basta ver que, mesmo assassinando o Amílcar, foi possível manter toda a estrutura da direcção do partido. E houve um apoio em massa a Aristides Pereira, para o cargo de secretário-geral, liderando eu todo o processo da sua candidatura. E ele nem nasceu na Guiné. O Amílcar teve conhecimento imediato dos acontecimentos de Pidjiguiti, em Agosto de 1959. Nós fizemos seguir um comunicado para ele, o que não foi difícil, porque o Fernando Fortes era director dos serviços postais. Metia a nossa correspondência depois de os sacos estarem oficialmente fechados. Assim, no dia a seguir ao massacre de Pidjiguiti, rádios como a BBC e a Voz da América leram o nosso comunicado. A PIDE já tinha indícios de que havia um movimento clandestino. Em 1960, o meu irmão foi a Tunes, ligado ao Movimento Anti-Colonial (MAC), que depois deu origem à Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). Decorria a II Conferência Pan-Africana e ele apresentou-se com um nome falso, Abel Djassi. Foi essa a nossa primeira presença no movimento pan-africano. De Tunes, o Amílcar seguiu para Londres, onde deu a primeira conferência de imprensa de um nacionalista oriundo das colónias portuguesas. Depois passou em Dakar, exactamente no mesmo dia em que lá cheguei, fugido de Bissau. A minha fuga ocorreu ainda em I960, quando foi inaugurada a sede da Associação Comercial de Bissau, com a presença de alguns administradores da CUE. Um desses administradores telefonou para Lisboa, pedindo que recrutassem um guarda-livros, porque eu ia ser preso pela PIDE. Tinham conseguido que a minha prisão fosse adiada, para que eu fechasse o ano comercial. O Aristides Pereira ouviu a conversa. A minha fuga foi, de imediato, preparada. Contei com a ajuda de um português antifascista, Fausto Teixeira, que estava deportado na Guiné, e que me levou de carro, durante a noite, até à fronteira com o Senegal.
O início da luta aberta e da denúncia internacional, com a conferência de imprensa de Londres, coincidiu com a instalação da PIDE em Bissau. Foi também quando o Amílcar escreveu o primeiro memorando ao governo português, onde alertava para a necessidade de resolver o problema colonial, prontificando-se a estudar em conjunto as diferentes etapas do processo. Como não houve qualquer resposta, um ou dois anos depois iniciámos a acção directa. Não foi nada de muito grave: começámos por deitar árvores sobre a estrada para impedir a passagem de veículos, destruir pequenas pontes de madeira, sem grande valor. Foi uma fase de transição, no fim da qual o Amílcar escreveu uma carta aberta ao governo português, em 13 de Outubro de 1961, em que lançava o aviso: «Nada poderá suster o PAIGC no cumprimento da sua missão histórica.» Como também esse aviso não surtiu qualquer efeito, restou-nos a luta armada. O PAIGC começou a sua instalação em Conakry, ao mesmo tempo que os primeiros quadros do partido seguiam para Pequim, onde receberam instrução militar. Entretanto, os dirigentes que estavam na Guiné tiveram que sair, como foi o caso do Aristides Pereira que, inicialmente, era para ficar mais tempo, como pretendia o Amílcar. Só que ele não conseguiu aguentar e saiu mesmo. Ao mesmo tempo, houve uma vaga de prisões em Bissau. O Fernando Fortes foi um dos presos. Alguns quadros tinham ficado em Bissau porque o Rafael Barbosa tinha um grupo que defendia também a independência, com alguns elementos em Conakry, e foi necessário fazer uma aproximação. Negociámos a integração desse grupo no PAIGC, ainda PAI, constituindo uma frente.
O Rafael Barbosa passou a ser o secretário do interior, depois de um encontro que tivemos em Dakar. Quando ele regressou a Bissau, onde começou a viver clandestinamente, tinha a responsabilidade de dirigir toda a acção do partido no interior, até ao dia em que foi preso. Quando foi preso pela PIDE, apanharam a relação dos quadros clandestinos do partido que estavam em Bissau, incluindo alguns, como o Domingos Ramos, que já tinham feito a sua preparação na China. O início da nossa instalação na Guiné-Conakry também não foi fácil. Já funcionavam em Conakry alguns grupos que tinham mais ou menos o apoio do partido de Sekou Touré, o Partido Democrático da Guiné (PDG). Para nós, era complicado combater esse apoio, porque eles ligavam-se aos comités de bairro, uma estrutura que, num partido populista como era o PDG, tinha bastante força. Ali, apresentavam-se como pessoas que não sabiam nada de política, porque o governo português nunca tinha permitido fazer política. E iam mais longe: pediam que lhes indicassem o que deviam fazer. Quando o PAIGC chegou em força a Conakry, e também o MPLA e os outros movimentos de libertação, à excepção da Frelimo, com muitos quadros que trabalhavam como médicos, professores, etc., os outros indivíduos ligaram-se ainda mais aos comités de bairro. O Amílcar foi procurar apoio junto dos altos dirigentes da República da Guiné, mas nunca desprezou a acção dos outros indivíduos. Eu próprio, muitas vezes, não compreendia o comportamento do Amílcar e dizia-lhe: «Esses indivíduos não valem nada. Nem são capazes de ganhar a sua vida. » Mas ele sempre tomou a sério todo e qualquer indivíduo. Chegava a assistir a reuniões a que eu achava que ele não devia assistir, mas ele insistia, procurava explicar as nossas ideias, o que nos fez ganhar cada vez mais gente.
Nós tivemos, na República da Guiné, um grande apoiante, o presidente da Assembleia Nacional e um dos fundadores do PDG, Diallo Sayfoulaiye. Um dia, em conversa com Amilcar Cabral, que estava um pouco desanimado, ele citou-lhe uma frase da filosofia fula: «Nunca se atiram pedradas a mangueiras que não tenham mangas maduras.» Não nos esquecemos desta lição. Os primeiros quadros foram formados na China. Foi para lá que partiram os militantes que receberam preparação militar. O primeiro grupo era composto por Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Rui Djassi, Vitorino Costa, Constantino Teixeira, Hilário Gomes, Pedro Ramos e Manuel Saturnino Costa. Juntaram-se a eles, um pouco mais tarde, Chico Mendes e Nino Vieira. Deste grupo saíram os principais comandantes da guerrilha e, alguns deles, foram mesmo altos dirigentes do partido. Eles foram depois espalhados pelas várias zonas da Guiné, para dirigirem a guerrilha. E aconteceu, por exemplo, quando o Nino Vieira se instalou no Sul, que já lá andavam alguns dos indivíduos que eram contra nós, em Conakry. Mas, depois de os «homens grandes» ouvirem a mensagem de Amílcar, transmitida por Nino Vieira, foram eles próprios que prenderam os outros. «O caminho é este! O caminho de Amílcar Cabral», garantiam eles. A verdade é que muitos deles ainda se lembravam do Amílcar, que tinha percorrido toda a Guiné, anos antes, a fazer o recenseamento agrícola. Muitos recordavam-se do engenheiro. E esta ligação era tão forte, que muitas crianças que nasceram naqueles anos tiveram o nome de Engenheiro.
As primeiras armas vieram de Marrocos, mas eram de origens diversas. Vinham dos países de Leste, como a Checoslováquia. Foi no final de 1962. Chegavam metralhadoras, lança-granadas, obuses. A primeira pessoa que decidiu dar-nos armas para a nossa luta foi o rei de Marrocos, Mohamed V. Ele tinha lutado contra os Franceses, até à independência e, por isso, estabeleceu como um dos pontos principais da sua política a descolonização de África. Em Marrocos, tivemos sempre autorização para fazer entrar o nosso material, o que não aconteceu, durante muito tempo, na República da Guiné-Conakry. O apoio da República da Guiné ao PAIGC foi ganho todos os dias, com a nossa insistência. Quando começaram a chegar as armas, a Guiné não autorizava a entrada no seu território. Nessa altura, eu era o homem encarregado do abastecimento, da logística das Forças Armadas e recorria a tudo para conseguir levar as armas a Conakry e de Conakry até à Guiné. Usámos expedientes como, por exemplo, transformar sofás para levar metralhadoras lá dentro. Depois, apercebi-me de que o homem só tinha a capacidade de calcular o peso até uma determinada altura e, a partir daquela altura, tanto fazia que fossem quinhentos quilos, como três mil. Quando chegavam as armas a Rabat, seguíamos, sem escolta militar, para a garagem das nossas instalações naquela cidade, e era ali que fazíamos as embalagens clandestinas para entrarem em Conakry. O transporte era sempre de barco. Lembro-me de uma vez que o Abílio Duarte foi a Rabat para acompanhar até Conakry um carregamento de granadas, que seguiam disfarçadas em caixas de medicamentos. Colocávamos granadas até determinada altura das caixas, pondo mais à superfície os medicamentos. Como tinham o rótulo de «FRÁGIL», seguiram no camarote do Abílio, que passou todo o tempo de sentinela, porque o seu companheiro de camarote fumava. As granadas também eram muitas vezes transportadas em caixas de tinta Gestetner. Tiravam-se os tubos, transportados em sacos, e colocávamos as granadas dentro das caixas. Os detonadores e tudo o que era explosivo eram transportados em pacotes de cigarros LM, a marca que Amílcar fumava. Tiravam-se os maços de cigarros e colocavam-se os detonadores. E foi assim que fomos levando o material para Conakry, até ao dia em que fomos descobertos e presos. Tudo aconteceu por causa de latas de sardinhas, que tinham balas. Nas minhas camuflagens, em Rabat, costumava embalar balas em caixas de sardinhas portuguesas. Mas esqueci-me das carências que havia em Conakry, onde havia falta de tudo. Quiseram roubar as sardinhas no porto e saíram as balas. Todos os membros do PAIGC que estavam em Conakry foram presos. Entre eles, Aristides Pereira, Vasco Cabral, Pedro Ramos e eu próprio. Como nós prevíamos sempre essa hipótese, sempre que estavam para chegar barcos com armas para nós, fazíamos sair o Amilcar. Dessa vez, ele estava em Rabat. Os angolanos que estavam em Conakry connosco saíram logo para avisar o Amílcar, que iniciou logo diversos contactos no sentido de mobilizar a opinião africana a nosso favor, sem entrar em conflito com a República da Guiné. Estivemos presos cerca de um mês. As autoridades de Conakry queriam que o Amílcar regressasse, como condição para sermos postos em liberdade. Mas eu respondi que, se havia razões para estarmos presos, seriam mais fortes ainda para Amílcar Cabral ser preso.*-
União Soviética, China, Checoslováquia, Marrocos, Argélia, Cuba - eis o leque de apoios de que o PAIGC usufruiu na luta armada contra a autoridade portuguesa. A situação dentro do partido clarificou-se no I Congresso, em 1964, que decidiu da prisão de alguns chefes da guerrilha e da morte de outros. Senghor achava que o PAIGC era um instrumento de Sekou Touré, mas depois a ajuda do Senegal foi importante. Mais tarde, contra o esforço estratégico de Spínola, que passou pela invasão de Conakry, surgiram os mísseis Strela.
A nossa primeira acção armada realizou-se em Janeiro de 1963, contra o quartel português de Tite, no Sul. O Amílcar foi sempre contra o começo da luta através de acções junto da fronteira. Defendeu que devíamos esperar, ter o material no interior do país para iniciar as acções, a partir do interior. Se começássemos pelas zonas de fronteira, as tropas coloniais teriam força suficiente para nos fecharem a passagem e não poderíamos avançar. Tínhamos de começar as acções no interior, depois de nos instalarmos. Foi em Tite e em Morés, uma no Centro-Sul e outra no Centro-Norte, que iniciámos a luta armada. A partir daqui, os apoios foram aumentando. Depois de Marrocos, foi a Checoslováquia. Aliás, o apoio da Checoslováquia foi quase simultâneo porque, se as primeiras armas nos foram dadas por Marrocos, as segundas recebeu-as Marrocos da Checoslováquia. A nível de formação de quadros, além da China, fomos apoiados por Marrocos, pela Checoslováquia e, um pouco mais tarde, pela Argélia, logo que este país conquistou a independência. Cuba também nos ajudou muito, numa fase posterior. O apoio da União Soviética foi o mais importante, embora não se tivesse manifestado logo no início. Mas sempre soubemos que países como a Checoslováquia nos ajudavam com o acordo prévio da União Soviética.
A primeira etapa foi a luta clandestina. Às vezes, quando falava com o Amílcar, dizia-lhe: «Nós fizemos tão pouco em Bissau.» Ele respondia sempre: «Se não fosse aquele bocadinho que se fez em Bissau, não tinha sido possível fazer a parte grande.» Depois foi a acção directa e, finalmente, a acção armada, a partir de 1963. Depois do início da acção armada, foi a definição das áreas, que veio a dar origem ao I Congresso do PAIGC, em 1964. Vivemos então um período difícil. Os homens foram preparados para uma certa luta e depois, cada um, quando se viu sozinho na sua área, fez aquilo que lhe pareceu melhor. Aconteceram coisas terríveis nalguns locais do Sul da Guiné, até assassinato de pessoas. Foram cometidos crimes monstruosos nesse período. Mas o I Congresso, realizado em Cassaca, em Fevereiro de 1964, pôs termo a esta situação. Muitos chefes da guerrilha foram presos e alguns foram mortos, depois de serem considerados culpados por aquela situação. O I Congresso marcou uma viragem na luta do PAIGC. Nessa altura, já havia na Guiné áreas controladas por nós. As áreas principais eram o Centro-Norte, na região de Morés, o Leste e o Centro-Sul, e o Sul propriamente dito, onde estava o Nino Vieira. O Rui Djassi comandava o Centro-Sul, o Domingos Ramos o Leste e o Osvaldo Vieira o Centro-Norte, que era a zona mais difícil de abastecer, porque não tínhamos o apoio do Senegal. Não nos deixavam passar nada. Nem medicamentos. Havia um controlo muito rigoroso. Éramos vítimas das más relações entre a República da Guiné e o Senegal. O presidente Senghor considerava que nós éramos o partido do Sekou Touré e nós batalhávamos para o convencer que não.
Depois de ter garantido a acção no Sul, o meu irmão mandou-me para o Norte, porque um dos principais objectivos era conseguir a ajuda do Senegal, o que consegui. Mais tarde, entre 1965 e 1966, Senghor deu-nos autorização para passar com mercadorias. Mas nós passávamos as armas. Também aqui tivemos de dar voltas à imaginação. Utilizámos os tambores de gasóleo para meter armas lá dentro. Os tambores eram abertos, a parte fechada ficava para cima, onde nos sentávamos. Tudo começou assim, mas depois também se estabeleceu uma cumplicidade entre nós e os funcionários senegaleses da fronteira. Falei várias vezes com Senghor, mas o meu trabalho foi feito essencialmente com os governadores de regiões junto à nossa fronteira. Eles é que iam dar, depois, as informações a Dakar. O primeiro contacto foi mesmo desastroso - houve um recontro entre os nossos combatentes e a polícia senegalesa, de que resultou um morto senegalês. Foi uma situação gravíssima. Senghor quis logo falar com o Amílcar. Enviou recados por diversas embaixadas, de que queria vê-lo imediatamente. O Amílcar já conhecia Senghor, tinham sido apresentados em Paris pelo Mário Pinto de Andrade. Nessa altura, Senghor disse-lhe: «Eu sou contra a luta armada.» O meu irmão respondeu-lhe: «Eu também, mas ela já existe e não temos outra solução senão ajudá-la. » O segundo encontro foi então o de Dakar, quando Senghor chamou Amílcar para explicar a situação da morte do polícia senegalês. Senghor estava muito zangado e foi duro com o Amílcar. Ele ouviu-o, e respondeu: «Senhor presidente, se eu e os meus companheiros soubéssemos que um dia um presidente africano me receberia com pedras na mão, era quase certo que não nos teríamos lançado nesta tarefa da libertação do nosso povo.» Senghor mandou-o sentar e tratou-o, pela primeira vez, por tu. A partir daí começou a haver colaboração, que não foi fácil. Houve mesmo pressão da França a favor de Portugal.
O apoio do Senegal foi decisivo para a nossa luta. Os principais centros urbanos estavam no Norte, nomeadamente Bissau. Para fazer uma acção, por exemplo, numa região do Oeste, os homens tinham que andar centenas de quilómetros, carregados com o material, muitas vezes sem comida, sem nada. E tínhamos, na mesma, conflitos com o Senegal porque os homens, quando atravessavam um campo de mandioca, comiam tudo. Claro que o agricultor protestava e tínhamos problemas. Quando apareceram os governadores militares senegaleses, começámos a ter aliados, embora, de início, houvesse muitas reservas. Mas quando começaram a contactar connosco, ganhámos aliados. Começámos a poder transportar material de guerra, embora escoltado por militares do Senegal. Estávamos em 1966. A partir daqui, a luta alastrou a toda a Guiné. Tínhamos bases instaladas e também unidades móveis. Criámos os corpos do exército. Armámos as milícias. Os corpos do exército estavam bem armados e era deles a responsabilidade das grandes operações. A evolução da guerrilha foi muito grande. Em 1974, quando terminou a guerra, o PAIGC tinha cerca de dez mil homens armados, entre exército e milícias. Nunca tivemos cubanos como operacionais. Eles eram instrutores e começaram a chegar a partir do momento em que estávamos a usar a artilharia - entre 1967 e 1968. Eram quase todos instrutores de artilharia. Mas primeiro chegaram os médicos cubanos. Também tivemos médicos franceses e belgas, que trabalharam quase sempre na fronteira, numa base a dezassete quilómetros da fronteira. Fizeram verdadeiros milagres. A célebre prisão do capitão Peralta foi um acidente. Ele nem sequer era combatente, era inspector. Ia lá ver como as coisas estavam a decorrer. Só que teimou em entrar numa altura em que lhe disseram para não ir. A área era muito descoberta e ele corria o risco de ser visto por um helicóptero. Teve azar! Passou mesmo um helicóptero, ele ia apenas com uma pequena escolta e acabou por ser apanhado. Nas matas, é muito difícil. O nosso povo, nos campos de arroz, tinha um truque para não ser visto pelos helicópteros ou pelos aviões: cortavam ramos de árvore e tapavam-se, como se fosse um guarda-chuva, quando ouviam o barulho dos motores.
O maior esforço de guerra português foi feito depois da chegada do general Spínola e foi principalmente apoiado na aviação. A aviação era, de facto, superior a todas as forças que estavam ali. Nunca conseguimos que os nossos homens enfrentassem os helicópteros, mesmo depois de terem as antiaéreas. O helicóptero assustava, tinha um impacte terrível. Por isso é que a guerra parou, depois de termos os Strela. Os mísseis Strela chegaram pouco tempo depois da morte do Amlcar (Janeiro de 1973) e foram fruto da última missão que ele realizou. Deslocou-se à União Soviética e conseguiu negociar o envio dos mísseis. Fomos, como se sabe, os primeiros a utilizá-los. O Amílcar, com o seu relacionamento pessoal, conseguiu sempre interessar pessoalmente os funcionários soviéticos pela nossa luta. Por exemplo, sabia que um coleccionava selos e, quando viajava pelos países de África, arranjava sempre selos para esse funcionário. Outro gostava de estatuetas africanas, e ele não se esquecia. Isso motivava as pessoas. Foi assim que um desses amigos nos avisou que havia os Strela e que havia grandes hipóteses de os conseguirmos. O Amílcar foi então a Moscovo negociar essa entrega. Quando a delegação do comité soviético de solidariedade afro-asiática foi ao funeral do Amílcar, anunciaram-nos que tinha sido dada autorização para essa entrega e que devíamos organizar um primeiro grupo para receber instrução. Esse grupo foi dirigido pelo Manecas dos Santos. O impacte dos mísseis nas tropas portuguesas foi terrível. Todos os planos do general Spínola se baseavam na superioridade da aviação e, quando começaram a ver cair os aviões, descobriram que não tinham planos. Agora eram atacados à luz do dia. Estavam só habituados aos nossos ataques nocturnos e, quando começaram a cair os primeiros aviões, deixaram de aparecer. Esta foi uma fase decisiva.Quando se deu o ataque eu não estava em Conakry e o Amílcar também não, mas apenas por coincidência. Começaram a circular informações em Conakry que apontavam para uma tentativa de derrube de Sekou Touré. Ele chegou mesmo a chamar o Amílcar e a dizer-lhe que sabia que estava a ser preparada uma tentativa de golpe, a partir de Bissau, e pediu-lhe para tentar saber qualquer coisa. A família do Amílcar estava lá quando foi a invasão. Aliás, foi disparado um tiro de bazuca contra a casa dele e a viúva ficou sempre a sofrer dos ouvidos, por causa do barulho da explosão. Durante muito tempo, conservámos o buraco na casa. Os guardas da casa do Amílcar responderam imediatamente e os atacantes recuaram. De facto, quem resistiu ao ataque fomos nós. Sekou Touré reconheceu isso em vários discursos. Quem tirou os comandos da central eléctrica foram os nossos homens, comandados pelo Constantino Teixeira, que foi mais tarde ministro do Interior da Guiné-Bissau. Só no dia seguinte, de manhã, é que o Exército guineense respondeu. O chefe de Estado-Maior do Exército guineense foi preso com vários outros oficiais, por cumplicidade com a tentativa de golpe. Um dos comandantes dos nossos barcos estava no seu barco, no porto de Conakry, quando viu, ao largo, comandos a matar gente num outro barco. Conseguiu fugir e foi avisar o Estado-Maior das Forças Armadas. Alertou a sentinela e seguiu logo para as nossas instalações, para avisar também. Quando a sentinela subiu para fazer o aviso, o Estado-Maior estava reunido com os comandos invasores. Mandaram chamar o nosso comandante, Irénio Nascimento Lopes que, no entanto, não ficou à espera quando percebeu. Havia um grande complot interno. Alguns dos oficiais portugueses foram mesmo recebidos por membros do Governo e andaram a passear de Mercedes pelas ruas de Conakry.
Não acredita que Spínola gostasse de Amílcar Cabral. Pensa que a única tentativa séria de negociação da paz com os portugueses foi o infrutífero encontro de Londres, em Março de 1974. Afirma que os assassinos de Amílcar Cabral tinham apoio da PIDE. Depois da morte dele, o PAIGC lançou operações para mostrar força. E em Setembro de 1973 proclamou unilateralmente a independência. Foi planeada a prisão de Spínola. Luís Cabral assume a morte dos três majores enviados por Spínola para negociar. E diz que havia militantes do PAIGC a serem treinados na União Soviética para pilotarem aviões MiG.
Hoje penso que a única coisa séria que houve quanto a negociações foi o encontro tido em Março de 1974, em Londres, de que não resultou nada, porque entretanto deu-se o 25 de Abril. Como se sabe, estivemos sempre abertos a todo e qualquer contacto, com cessar-fogo, sem cessar-fogo, com condições, sem condições. Por isso, espanto-me muito quando leio que o general Spínola quis contactos com o Amílcar, porque sempre gostou dele. Garanto-lhe que o Amílcar nunca soube disso. Por exemplo: é uma loucura pensar que um indivíduo da categoria do Amílcar, que foi capaz de fazer toda aquela luta, pudesse acabar como secretário-geral do governo colonial na Guiné. É um absurdo completo. De facto, Spínola ainda hoje não compreende que um homem como o Amílcar, quando se dedicava a uma coisa destas, não ficava a meio. O Amílcar quis sempre discutir com o governo português. Mas com Spínola nunca houve qualquer contacto, nem directo, nem indirecto. O que nós sabíamos é que havia perspectivas. Senghor falou com o Amílcar na perspectiva de um encontro e o meu irmão disse-lhe que, de facto, todo o encontro com o governo português seria bom. Tudo o que se fizesse no sentido de o governo português aceitar encontrar-se com os nacionalistas seria útil, mas o Senghor, como chefe de Estado, com o prestígio que tinha, devia era encontrar-se com o chefe de Estado português. No entanto, depois soubemos que ele teve um encontro com Spínola. E soubemos porquê? Como estávamos muito bem relacionados, contaram-nos logo como se estava a preparar tudo para o encontro, no maior segredo. Ligaram-nos e ficámos a saber que tinha havido o encontro.
As cartas que apareceram num livro do comandante Alpoim Calvão foram assinadas por mim e tratou-se de uma história muito simples. Um comerciante da fronteira norte, Mário Soares, depois denunciado como agente da PIDE, escreveu uma carta ao Amílcar a dizer que tinha uma comunicação importante a fazer, mas que só podia ser feita fora da Guiné, e propôs Londres, onde tinha uma filha a estudar. O Amílcar recebeu a carta e mandou-ma, porque eu é que estava ligado a Bissau. Respondi à carta e aceitei esse encontro. Mandámos a Londres o Vítor Saúde Maria, que estava ligado às relações exteriores. E quando o Vítor lá foi, encontrou-se com a filha do Mário Soares. Mas ele não apareceu. E foi essa a história das cartas e dos telegramas. Como ele, estando ali na fronteira do Senegal e sabendo que a cem metros estávamos nós, em Caledá, e que tínhamos bases a um quilómetro ou dois de Pirada, sabendo isso tudo, ele pediu que o encontro fosse em Londres, nós pensámos que era uma coisa que ele queria fazer contra a vontade do Spínola, às escondidas. Não queria que o governador colonial tivesse conhecimento. E escrevemos a carta a dizer que mandávamos alguém, nunca seria o Amílcar nem eu, mas foi o Vítor Saúde Maria. Nunca houve mais nada, a história resumiu-se a isso. Houve também, na altura, uns indivíduos ligados ao exército português que marcaram um encontro em Roma e mandámos lá o José Araújo. Nunca soube dos resultados desse encontro. Com os problemas todos que eu tinha, essas coisas só me interessavam até certo ponto. Quando não davam sequência, acabavam. Com Londres, passou-se a mesma coisa. O representante português não queria falar de Cabo Verde, só queria falar da Guiné. Ora nós já tínhamos um Estado, reconhecido por mais de oitenta países, e o Vítor Saúde Maria já era o ministro dos Negócios Estrangeiros desse Estado. Se não tivesse havido o 25 de Abril, talvez tivesse havido uma sequência. Eles sabiam que a guerra ia continuar. Nós tínhamos todas as condições para crer que a guerra ia avançar a nosso favor.
Os homens que assassinaram o Amilcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau, das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E então indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kati, Aristides Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas para isso os guineenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o PAIGC estivesse em Cabo Verde, porque isso seria dar o arquipélago aos soviéticos, para base no Atlântico. Foi todo esse trabalho que os homens fizeram em Conakry. Eles usaram vários quadros do partido, até chegarem a elementos que os denunciaram e eles foram presos. Foram presos, depois do assassinato do Amílcar Cabral. Entretanto, essa abertura do Governo português foi ao encontro dos indivíduos que tinham problemas com a direcção do partido - um comandante da marinha que tinha vendido o motor de um barco e que tinha vendido não sei o quê, outro que fez contactos com o tal Mário Soares de Pirada, que era o João Tomás Cabral - era uma série de indivíduos em falta. O Amílcar quis fazê-los vir todos a Conakry para conversar com eles e recuperá-los. Era sempre o objectivo dele.
Eram esses indivíduos, que vendiam coisas do partido, dos armazéns, que criaram uma vida paralela em Conakry - até com mulheres e casa - sem terem salário, porque nenhum de nós tinha salário. Toda essa gente acabou por criar uma vida paralela, que não se podia aguentar se não fizessem os desvios das coisas que faziam. Esses indivíduos acabaram por ver a grande saída. Foi por isso que, quando assassinaram o Amílcar e prenderam o Aristides Pereira, tentaram sair para Bissau mas foram interceptados por um barco soviético, a pedido do Sekou Touré. Foram feitas várias tentativas para destruir o partido, até chegar ao ataque a Conakry, operação de um comando especial orientado directamente pelo general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o Governo e destruir a direcção do PAIGC. Depois do fracasso desse ataque a Conakry, a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por dentro. Foi isso que nos levou a crer que, numa lógica de guerra, de procurar destruir o inimigo, o general Spínola teve a sua participação nisso. Nessa lógica, admito que sim, mas não tenho provas concretas disso. Ele, de facto, nunca procurou o encontro com o Amílcar, nunca procurou compreender a luta do PAIGC, a razão histórica dessa luta no quadro geral da libertação de África.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral foram quase todos fuzilados. Esses homens foram mandados pela PIDE, eles disseram isso. Aristides Barbosa foi interrogado e chegou a dizer isso - não só pela PIDE como por autoridades da República da Guiné. Sekou Touré também não gostava muito do Amílcar. Fez sempre bastante resistência para nos ajudar. Antes de nos instalarmos em Conakry, eles tinham o controlo sobre compatriotas nossos que se submetiam totalmente a ele. Admito mesmo que ele tivesse tido ambições de uma Grande Guiné. Ele chegou a afirmar isso em Bissau, já depois da independência, o que constituiu um dos momentos mais difíceis na minha vida de chefe de Estado. O Amílcar era um dos dirigentes africanos mais capazes e isso coincidiu com a queda do prestígio do Sekou Touré. Para mim, ele não foi capaz de conduzir o país para o progresso. Agarrou-se a uns certos cidadãos e começou a defender o poder pelo poder. Isso fez com que eliminasse muitos quadros, e se fizesse rodear cada vez mais da mediocridade, como acontece sempre nestes casos. Já depois do assassinato do Amílcar, o presidente Boumediene, da Argélia, contou-me que, quando tinha estado em Conakry, quando seguia no carro com Sekou Touré, do aeroporto até ao palácio, perguntou-lhe pelo Cabral. Sekou Touré disse-lhe: «Está muito mal com os companheiros, está um bocado isolado... » Isso não era verdade. Depois, basta recordar o discurso que ele fez ainda junto do caixão do Amílcar, criticando o partido e a sua acção. Como irmão do Amílcar, se alguma coisa me deu coragem foi ouvir essas palavras. Nós tínhamos que fazer tudo para provar que era mentira, aguentar o partido, levar as coisas para a frente, ir até à independência.
Naquela altura, o problema era aguentar o partido, organizar o II Congresso, eleger o novo secretário-geral. Nós escolhemos o Aristides Pereira, que era o mais próximo do Amílcar, e fizemos uma campanha que cobriu todo o território da Guiné. Fiz reuniões no Norte, no Sul, no Leste, na fronteira, no interior, em todo o lado. Quisemos ouvir a opinião do povo, dizer-lhes todas as palavras de ordem dos conspiradores e ouvir a opinião das pessoas. Fizemos o II Congresso e mesmo aí houve uma tentativa de sabotagem do Sekou Touré. Nós, no Norte, estávamos muito apreensivos, porque os homens que participaram no assassinato do Amílcar tinham saído quase todos do Sul e alguns do Leste. Então, resolvemos garantir a segurança do II Congresso. Ocupámo-nos nós, os do Norte, da segurança do congresso. Mandámos um batalhão de homens, comandados pelo Lúcio Soares, o Julião Lopes, o Manuel dos Santos (Manecas), o Bono Keita e outros para garantir a segurança. Então o Sekou Touré soube desses homens, que iam do Norte para o Leste, e escreveu uma carta ao governador de Boké, dizendo que avisasse o Nino para, por sua vez, avisar o Aristides, que não fosse à reunião do II Congresso porque corria perigo. Que tinham vindo homens do Norte para assassiná-lo. Então, o Nino foi mostrar a carta ao Aristides Pereira e ele, depois, mostrou-ma a mim. A frase do Aristides foi esta: «Que é que este gajo quer?» Foi um período extremamente difícil, em que nós nos apercebemos que o Sekou Touré queria entrar, que ele não tinha confiança nem em mim nem no Chico Mendes, os dois membros da direcção política do Norte. Fomos nós que estabelecemos as relações com o Senghor, abrimos a frente norte, que era decisiva. Bissau, a capital, está na frente norte, os maiores centros urbanos estão todos na frente norte, e a zona mais distante de Conakry era a nossa retaguarda principal.
A decisão de declarar a independência foi do Amílcar, tudo isso foi escrito pelo Amílcar. Ele anunciou tudo, mesmo ao nível das Nações Unidas. O convite à delegação das Nações Unidas ainda foi feito por ele, mas como documento fundamental na proclamação do Estado. O que nós queríamos era que as Nações Unidas reconhecessem a existência do Estado, dum Estado independente como parcela dum território ocupado por forças estrangeiras. Mudar a nossa condição de colónia com parte do território libertado para a condição de Estado soberano com parte do. território ocupado. Foi isso que foi feito com a declaração da independência. O meu irmão morreu em janeiro e eu tive de tomar as coisas em mãos, mostrar a força do partido, mesmo depois do desaparecimento dele. Naquele período que se seguiu ao assassinato dele, os helicópteros sobrevoavam com altifalantes: «A guerra já acabou!», «O homem que arranjava as armas já morreu!» Aproveitaram para fazer propaganda, aproveitaram o acontecimento. Garantiam mesmo: «A guerra acabou!» Em resposta, lançámos grandes operações militares para mostrar a força do partido - tanto no Norte, contra o quartel de Guidage, como no Sul, contra o quartel de Guilege. Este último foi abandonado, mas nós não tirámos todo o proveito que era possível tirar disso. Esse plano foi feito pelo Amílcar, um ano antes de ser assassinado, e implicava atacar o quartel de Guilege, manter emboscadas na estrada de Guilege-Gadamael, que era o porto, e depois atacar as tropas quando abandonassem Guilege a caminho de Gadamael e, finalmente, concentrar as forças e atacar Gadamael. O comando português que lá estava esperava isso, o plano era tão lógico que eles esperavam isso.
O ataque a Gadamael acabou por não ser tão eficaz, porque, quando as nossas tropas entraram em Guilege, aquilo estava abastecido de tal maneira que a malta se sentou ali, bebendo cerveja. Parámos e de tal maneira que o cozinheiro do Nino entrou em estado de coma de tanto beber. Quando veio a si, disse: «As tropas não me mataram quando estavam em Guilege, mas depois de saírem já me iam matando. » Foi um período já de fazer operações para mostrar que o assassinato do Amílcar não tinha parado a luta. Houve então o ataque a Guidage, no Norte, que está descrito detalhadamente pelo Salgueiro Maia no seu livro. Foi assim mesmo que aconteceu. Quando abandonámos aquelas posições, não sabíamos que o estado das tropas portuguesas era aquele. A malta aguentou-se durante um certo tempo. No Norte, as munições não eram muitas e começaram a escassear. A alimentação também começou a ter alguns problemas e então nós, quando chegámos a um certo ponto, resolvemos abandonar. Não sabia que as coisas estavam já nesse pé. A ideia foi essa, a de mostrar a força do partido. Não tínhamos muito dinheiro e também investimos muito na Conferência Internacional da juventude - uma iniciativa enorme, com teatro, com música, com tudo, para mostrar a força do partido.
Depois fizemos o II Congresso, que elegeu o Aristides Pereira como secretário-geral, com todas as medidas já mencionadas, no Leste, na área de Madina do Boé. As forças portuguesas tiveram conhecimento da data prevista para o congresso. A formação do Estado devia ser feita no Sul, tudo estava já preparado no Sul para a declaração do Estado, tudo. Todas as instalações estavam feitas. No dia em que se sabia que começaram a entrar membros do partido, através da fronteira sul, destruíram a jangada da fronteira. Bombardearam a jangada, bombardearam aquela área toda. Nós estávamos já em Boké, a caminho do Sul, quando chegaram essas informações. Então desviámos para leste e mandámos logo um grupo para o Leste. E preparámos tudo, no Leste, para no dia seguinte fazer o Congresso. Toda a noite mexemos para isso e houve um momento interessantíssimo: a nossa garantia eram as antiaéreas e o Nino foi encarregado de fazer a defesa antiaérea do congresso. Depois dos ensaios todos das cerimónias, durante a noite, levar as pessoas a ler as coisas como deve ser, depois de todo o preparativo, fui-me deitar eram para aí duas ou três da manhã. O Constantino Teixeira e o Nino Vieira bateram à porta da barraca e disseram que tínhamos que fazer o congresso naquela noite, porque tinham trazido as rampas de lançamento, mas não tinham trazido os foguetes. Respondi-lhes que deviam assumir as suas responsabilidades, porque com toda a imprensa estrangeira que estava ali connosco, as coisas deveriam ser feitas com toda a dignidade, como estava previsto. No dia 24 de Setembro de 1973, às oito e meia da manhã, começámos as cerimónias. Os responsáveis pela segurança agitavam-se e pediam que se fizesse tudo depressa, mas cumprimos o calendário previsto. Estas coisas, ou se fazem com dignidade, ou não se fazem. Não estavam muitos jornalistas estrangeiros. Por exemplo, os jornalistas senegaleses não puderam vir. Mandaram pedir que se lhes enviasse as cassetes gravadas para poderem pôr no ar ainda nesse dia. Assim, naquele mesmo dia, à noite, as emissoras anunciaram a proclamação do Estado. Fomos reconhecidos imediatamente por cerca de oitenta países. Outros, como a Suécia, não nos reconheceram logo para poder continuar a ter uma certa influência junto do Governo português. Fomos reconhecidos por quase todos os países do Terceiro Mundo.
Spínola disse coisas com as quais não posso concordar. Eu respeito-o muito, ele fez o seu papel e fê-lo bem. Fez a guerra. Quando chegou à Guiné foi para intensificar a guerra, não foi para procurar a paz. Ele nunca nos tomou a sério. Quando mandou os oficiais lá para a operação do chão dos manjacos, que queriam negociar a rendição de tropas nossas, mostrou que não nos conhecia. Esses oficiais acabaram por ser mortos. A zona oeste do país era a mais distante de Conakry, aquela que tinha maiores dificuldades de abastecimento. Então, eles tiveram essa informação e souberam mobilizar os homens a leste, através de elementos da população que frequentavam os dois lados. Eles começaram a fazer a aproximação, depois começaram a aceitar que lhes levassem coisas para lá e começaram eles a mandar coisas. Então, o comandante da região, André Gomes, soube da situação e resolveu fazer o jogo. Puseram-nos ao corrente da situação e fizeram o jogo. Aceitaram todas as prendas, todas as coisas, deram tudo, recebiam os homens desarmados e iam desarmados e combinaram o dia da rendição das nossas tropas. Isso ficou combinado na última reunião na estrada de Cacheu-Canchungo, com o general Spínola. Nessa altura, nós mandámos para lá o nosso principal responsável da segurança no Norte, Luís Correia. Havia vários combatentes que não estavam a gostar daqueles contactos. Quando o Luís chegou lá, os interlocutores dos oficiais portugueses disseram: «Nós temos que dizer a eles que tu já chegaste, porque eles vão saber de certeza. Portanto, se não formos nós a dizer, vão pensar que há qualquer coisa.» E então, foram lá dizer que era preciso tomar mais cuidado, mais prudência, tinha chegado o homem da segurança do Norte.Quando se encontraram com o general Spínola, nessa estrada, disseram-lhe que esse responsável de segurança tinha vindo ali à região do Canchungo, para fazer uma cerimónia ali ao deus da área, que é o Irã de Cobiana, o grande deus da floresta. Mas ele, para fazer essa cerimónia precisava de aguardente de cana. Era preciso arranjar-lha o mais depressa possível que ele, fazendo a cerimónia, ia-se embora. Então, o general Spínola mandou comprar aguardente de cana e deu-a à malta para a cerimónia. Havia um aspecto de desprezo pelos nossos ideais, de tal maneira que pensavam ser possível com uma garrafa de whisky, até mesmo com umas contas e uns brincos, desviar aqueles homens dos seus ideais de libertação e de independência. Esses oficiais portugueses acabaram por ser mortos porque foram lá para assistir à rendição das nossas tropas. Foi feita uma emboscada e foram mortos. Isso não estava nos nossos planos. O plano era prender o general Spínola. Depois, a malta convenceu-se que o general Spínola não vinha. Como naquela área não tínhamos abastecimentos regulares, nem coisas para conservar esses oficiais, estávamos quilhados. Ou apanhávamos o general Spínola ou então não saía ninguém daqui. De outra vez, houve uns nossos que foram a Bissau, mandados por nós, como se se tivessem entregado. Pensavam que, como era hábito, o general os iria levar de helicóptero para ver melhor as aldeias da Guiné. Eles pensaram obrigar o helicóptero a descer, quando sobrevoasse uma região próxima de uma área controlada por nós. Mas essa missão não se concretizou. Nunca planeámos qualquer acção para matar o general Spínola. Nós sabíamos que, se ele fosse morto, seria substituído por outro. A nossa luta passava pelo desgaste das tropas coloniais, a par do avanço da nossa mobilização. A nossa luta foi sempre avançando, sempre avançando. A retaguarda é que criou os elementos fracos. Queriam viver em Conakry, onde tínhamos armazéns cheios. Como lá havia carência de tudo, começavam a desviar coisas para o mercado negro, para arranjar mulheres e arranjar casas. Foi essa retaguarda que forjou toda a conspiração contra o partido e contra o Amílcar. Nunca houve qualquer cisão no nosso partido. Amílcar escreveu: «O nosso partido é um corpo vivo, em crescimento. Temos de ser capazes de lhe dar a roupa que corresponde a cada etapa desse crescimento. » Um sociólogo americano, Ronald Chilcote, disse uma coisa muito bonita sobre o Amílcar: «Ele faz a luta como faz agricultura. Primeiro, os fertilizantes, depois as sementes, a poda. » E era verdade. Tínhamos já um grupo de militantes que estavam a ser treinados para pilotos na União Soviética. Foram para lá ainda em vida do Amílcar. Era para pilotarem aviões MiG. Seriam a base da força aérea da Guiné independente. 1)
1) - Testemunho oral: Luís Severino de Almeida Cabral. Lisboa 13 de Janeiro de 1995. Irmão de Amílcar Cabral, nasceu em 1931. Foi um dos fundadores dp PAIGC e presidente da República da Guiné-Bissau. Foi derrubado em 1979 por um golpe de Estado chefiado por Nino Vieira. Vivia em Portugal quando foi entrevistado.
BIBLIOGRAFIA
A Guerra de África (1961 - 1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL. I
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