domingo, 31 de maio de 2009

NOTÍCIAS




Primeiro presidente da Guiné-Bissau
Luís Cabral morreu no exílio em Lisboa

O primeiro presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral morreu este sábado, 30 de Maio, em Lisboa após doença prolongada. Deposto em 1980 num Golpe de Estado liderado por Nino Veira, Luís Cabral vivia desde 1984 exilado em Lisboa.
Luís Cabral nasceu a 11 de Abril de 1931. Em 1956, juntamente com Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Eliseu Turpin, Luís Cabral participa na reunião que lança as bases para a criação do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Em 1973, com o assassinato de Amílcar Cabral, assume a liderança do PAIGC e da presidência do país, na sequência da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau.
Através de um Golpe de Estado Luís Cabral é deposto a 14 de Novembro de 1980 pelo então primeiro-ministro Nino Vieira. Tenta o exílio em Cuba, mas acaba por se fixar em Lisboa em 1984. Em 1999 visita a Guiné-Bissau a convite de Francisco Fadul.
Praticamente esquecido na actual paisagem politica guineense, a morte do primeiro presidente da Guiné-Bissau provocou o ressuscitar da sua imagem no país, alimentado pelo assassinato de Nino Veira em Março, por quem Luís Cabral nutria um «ódio crónico», e pela campanha para as eleições presidenciais prevista para 28 de Junho.
Segundo familiares, o corpo de Luís Cabral estará a partir deste domingo em câmara ardente na igreja São João de Deus na capital portuguesa e o funeral deverá ser realizado na terça-feira, 2 de Junho, no cemitério do Alto de São João em Lisboa.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

Carlos Fabião

Milícias negras

Viveu um total de doze anos na Guiné, metade em tempo de paz e metade na guerra. Foi um dos oficiais predilectos de Spínola e fez parte do grupo de seguidores que planeou guindar o general ao poder em Lisboa. Distinguiu-se como responsável pelas milícias negras na Guiné, tropa especial que chegou a atingir 9000 elementos e a que ele atribui 60 por cento dos êxitos militares na fase final do conflito. O tenente-coronel Carlos Fabião, um dos muitos oficiais galvanizados pela metodologia e pelos sonhos quebrados de Spínola, diz que deu o seu melhor na frente de combate e não esqueceu a recusa do poder central em negociar a paz com Amílcar Cabral.
O «massacre de Pidjiguiti», em Julho de 1959 consistiu na repressão de estivadores do porto de Bissau e é um marco histórico reclamado pelo PAIGC. Carlos Fabião, que serviu seis anos na Guiné em tempo de paz, estava lá aquando dos incidentes. Fez depois a guerra em Angola durante 27 meses, entre 1961 e 1963. Voltou à Guiné, em nova comissão de 1965 a 1967. A experiência acumulada e reconhecida levou Spínola a encarregá-lo de uma tarefa especial: a chefia das tropas negras. Foi um relativo êxito.
Eu estive no Pidjiguiti, que o PAIGC transformou numa data áurea. Quando foi o incidente, em 1959, eu estava de farda branca à espera da mulher do comandante, que vinha de avião. Aquilo deu-se por uma questão de reivindicações salariais, que naquele momento nada tinham a ver com política. A CUF em Lisboa, autorizou os aumentos que eles pretendiam, mas o administrador da CUF na Guiné, que era um velho administrador português que se reformou, disse-lhes: «Vocês hão-de levar o aumento mas é quando eu quiser, e não agora!» Foi isso que provocou Pidjiguiti Não teria havido Pidjiguiti se o administrador tivesse cumprido ordem que recebeu de Lisboa. A partir daí. Pidjiguiti, tornou-se a grande bandeira deles. Nessa altura, dei a volta à Guiné para ver se havia repercussões noutros sítios, mas não havia. Depois, aquilo tornou-se uma guerra entre a PIDE e a administração, civil. A PIDE teve conhecimento antecipado do que ia acontecer, mas não avisou a administração, e o governador ficou danado com a administração porque só soube através da PIDE. Entretanto, aquilo começou a dar para o torto. O que aconteceu, na realidade, foi uma guerra entre os polícias papéis e os estivadores manjacos, duas etnias que se davam mal, apesar de serem afins. Os papéis aproveitaram a ocasião para baterem nos manjacos, que nunca estiveram do nosso lado nem do outro lado. Mas os tambores de guerra manjacos começaram a soar em Bissau - o chão dos manjacos era na parte de cima da ilha de Bissau -, a chamar os manjacos para Bissau.
Não tínhamos lá tropa branca, nessa altura, e a tropa preta era muito pouca. Eles vieram dizer-nos que os portugueses não tinham nada a ver com aquilo, porque era um ajuste de contas entre eles. Mas não podia haver um ajuste de contas dentro da cidade, porque daí até se passar ao assalto, ao massacre e ao roubo, seria um passo. Fizemos a linha de defesa de Bissau na avenida principal, que sai do palácio. Do lado do aeroporto, de onde viriam os manjacos, paciência; do lado de cá, instalámos as metralhadoras e o que tínhamos, para defendermos a população. Entretanto, o administrador da CUF, que estava muito malvisto, entrou em contacto com os manjacos e com os papéis, conseguindo levá-los ao entendimento e promovendo uma festa de reconciliação, no Altocrim. O governador ficou aflito com aquele ajuntamento de gente e disse ao fulano da PIDE para ir ver o que se passava. O fulano da PIDE limitou-se a explicar que era uma concentração de majacos e de papéis. Eu estava na parte logística do quartel-general, a trata do transporte e de outras questões, quando fui chamado ao palácio do governador. Lembro-me que o administrador entrou todo satisfeia no palácio e o governador perguntou-lhe o que é que se passava - «Nada», disse ele, «estive a faz com eles e eles reconciliaram-se. Agora, vão fazer uma festa de reconciliação.» O homem da PIDE ficou bestialmente encarnado e levou logo ali um raspanete do governador.
Em 1961 fui para Angola. Era oficial de operações e estava no comando do Batalhão 132. Depois de chegar, o batalhão foi para Quibachegar e tinha responsabilidade sobre toda a área que ia desde Quitexe até Bulatumba. Depois passámos para o Bengo e, na parte final, estivemos em Catete. A primeira parte da nossa missão em Angola consistiu essencialmente em reocupar a áreas que tinham sido abandonadas no distrito do Cuanza Norte. Eu tinha as funções normais de u um oficial de operações: fazia as ordens de operações, coordenava a parte operacional do batalhão, ajudava o comandante e, normalmente, acompanhava-o. Durante o tempo em que estive em Angola fui tirando ensinamentos e reflectindo Quando me mandaram para a Guiné, tinha duas coisas a meu favor Tinha seis anos de Guiné em tempo de paz - conhecia toda a Guiné - e os conhecimentos da guerra subversiva em Angola devido à comissão de 27 meses que tinha feito e que correu muito bem. A minha, companhia em Angola era conhecida como «a companhia dos camelos». Na Guiné, eu comandei uma companhia de caçadores, entre 1965 e 1967. Na altura era a companhia mais prestigiada da Guiné e isso fez com que eu fosse condecorado com a medalha de Valor Militar de Prata fosse promovido a major por distinção. Foi aqui que começou a ser conhecido, digamos assim, o nome de Fabião.
A companhia estava em Tite e posteriormente, na parte final, fui para Nhacra. Há muita gente que diz que houve grandes diferenças entre a guerra em Angola e a guerra na Guiné, mas eu não notei nenhuma. A guerra subversiva era igual em qualquer sítio. Para mim, que era uma máquina que subia mal mas andava bem na planície, a guerra na Guiné foi melhor, porque o terreno era plano. Apesar de na época das chuvas o terreno ser pantanoso, eu deslocava-me melhor na Guiné do que em Angola. Em Angola, na zona do Cuanza Norte, onde estive, os terrenos eram altos, muito altos, mas fazia-se quase tudo de carro porque as distâncias não permitiam andar a pé. Quando estive na Guiné, antes da guerra, caçava muito e, portanto, estava habituado ao terreno. A minha companhia era de intervenção. Havia um batalhão que cobria uma área, tinha duas ou três companhias em quadrícula e uma companhia liberta que fazia as operações. Era a minha. Fazíamos todo o tipo de operações imagináveis: operações, golpes de mão, emboscadas, patrulhamentos, rusgas. O comandante de batalhão fazia as operações, nomeava, pedia os reforços, entregava-me e eu estudava aquilo no terreno. Gostava muito de funcionar com africanos. Já vinha do tempo de paz. Tinha sempre negros de confiança que trabalhavam comigo e que planeavam as operações comigo e me informavam. A princípio, a maioria deles, estava com o nome de caçadores nativos ou milícias. Mais tarde, quando fiz a minha última comissão na Guiné, Spínola resolveu rendibilizar ao máximo esses africanos e convidou-me para ir para lá e organizar um corpo especial com esses indivíduos. Criei assim o Comando Geral das Milícias.
O comandante era eu e organizei as milícias dentro do conceito de ligar as tropas às próprias terras de onde eram naturais. Havia, por exemplo, uma tabanca que era necessário defender, e eu criava unia unidade com os homens dessa tabanca. Portanto, quando a defendiam, estavam a defender a mulher e os filhos. Eu criei isto, resultou muito bem, mas há por aí umas confusões sobre as milícias, tal como também se fazem confusões sobre a autoria do livro de Spínola, Portugal e o Futuro. Dizem que não foi Spínola que escreveu o livro, que foi outra pessoa. Eu não concordo com isso e por uma razão simples: é que Spínola não podia escrever livros e comandar tropas, fazer tudo ao mesmo tempo. Ele escreveu o livro em rascunho, mas foi dando a várias pessoas para consultar e as pessoas iam dizendo para ele tirar isto e pôr aquilo. Discutiam e ele aceitava ou não aceitava. Não considero correcto vir agora dizer que escreveram o livro porque deram uma opinião sobre um ou outro capítulo. Isto vem propósito do corpo de milícias. Eu criei o corpo de milícias, fiz os estatutos, mas fi-lo segundo um conceito que me foi dado pelo general Spínola, que me disse para criar uma unidade com toda aquela gente, de maneira a poderem dar maior rendimento. Se ele, Spínola, não tivesse a ideia e se não me tivesse dado instruções, eu não teria, por mim próprio, capacidade para fazer isso. Pensei, li os documentos antigos, do tempo da pacificação no final do século passado e vi que toda a guerra de África tinha sido feita mais ou menos com naturais, sobretudo na Guiné. A guerra tinha sido feita por fulas, até 1915 ou 1916. Na Guiné chamavam-lhes as milícias dos vizinhos das regedorias. Foi uma coisa destas que tentei fazer: no mapa da Guiné, pus em cada povoação apenas gente dessa povoação. Criei um estatuto especial, Spínola leu, deu as suas indicações e aprovou. Apresentei o conceito, Spínola aceitou muito bem, e a partir daí criei tudo o resto: recrutamento, instrução, etc.
Chegámos a ter 9 000 homens na Guiné. Estávamos organizados em companhias e em pelotões. Mas os efectivos eram diferentes consoante a perigosidade da área onde estavam. A Guiné estava organizada por companhias. A cada companhia correspondia um regulado, uma espécie de condado. Fui buscar os regulados, porque nós respeitámos os usos, costumes e tradições. Simplesmente, qualquer régulo que não fosse nosso amigo era destituído e substituído por um régulo amigo. A ideia era que os régulos mandassem nas suas áreas. Eu ia a essas áreas, entrava em contacto com o régulo, e criava uma companhia que tinha o nome do regulado a que correspondia. Era preciso ter cuidado com os regulados de origem muçulmana porque, na cabeça deles, havia sempre dois homens muito importantes: o régulo e o padre. Eu introduzi um elemento novo que era o comandante militar das milícias. Era sempre gente local. Não havia transferência de efectivos de um lado para o outro porque isso na minha opinião, foi o que correu mal da outra vez. Spínola, quando chegou à Guiné, fez uma coisa revolucionária: considerou que uma guerra daquele tipo só se ganhava politicamente e nunca militarmente A única coisa que ele pedia aos militares era que não perdêssemos a guerra para lhe darmos tempo para a resolver politicamente. A partir disso, toda a manobra militar da Guiné esteve subordinada à manobra política do general. Ele traçou a sua manobra política, à qual a manobra militar ficou subordinada. Ele não retirava homens para uma área que lhe interessava mais militarmente, porque estaria a desguarnecer politicamente outras áreas. Deste modo, eu limitava-me a prepara tropas em cada uma das regiões Houve determinadas regiões, sobretudo as que estavam sujeitas à pressão do inimigo, em que defender apenas era pouco. Havia dois ou três sítios na Guiné onde a tropa africana era muito boa.
Então, propus a criação de companhias de intervenção de milícias para autodefesa. Um pelotão de milícias era em tudo igual a um pelotão do Exército. A organização era a mesma. No ano em que me vim embora, 60 por cento dos resultados positivos da guerra da Guiné foram conseguidos pelas milícias. Na Guiné esteve a melhor tropa que houve em África, comandos africanos e tropa branca portuguesa em quantidade. Tudo isto fazia parte do plano de Spínola, que criou um conceito que tentou levar às últimas consequências, mas que Lisboa, miseravelmente, cortou. Visava esse conceito criar, dentro da Guiné, uma sociedade multirracial, com uma cultura geral portuguesa. Na Guiné há mais de vinte etnias principais e umas dezenas de etnias paralelas. Os dois grandes grupos étnicos são os fulas e os balantas. Todos os povos mantiveram sempre relações com os portugueses, fundamentalmente os fulas, que Portugal respeitou até ao fim
As guerras de pacificação da Guiné deram-se em 1915, mas quando eu fui para a Guiné, em 1955, ainda conheci guerreiros dessa altura. O PAIGC apoiava-se nos balantas, no Sul. Isso fez com que se dissesse que se tratou de uma revolução agrária - os balantas eram trabalhadores da terra - o que não é verdade. Os balantas eram inimigos dos fulas, mas a inimizade processava-se em termos de forma de organização e de civilização.
Foi sob o mandato do general Arnaldo Shultz que a situação na Guiné se agravou dramaticamente. Carlos Fabião acha que Spínola introduziu um novo estilo de comando e trazia já um projecto: vencer a guerra no plano político. Para isso, tinha de remover o pessoal instalado e recorrer a novos executantes no terreno. Mas a aposta militar não foi descurada: coube a Carlos Fabião fazer o primeiro ataque a uma base do PAIGC na República da Guiné. E a invasão de Conakry, em Novembro de1970, foi uma maximização de esforço de guerra que teve amplos efeitos.
De 1963 a 1967, a situação na Guiné tornou-se bastante má. Tínhamos perdido o controlo de uma série de áreas, havia sítios onde praticamente já não entrávamos. Já havia muita gente nossa na Guiné mas havia áreas, como o Morés, o Sara Sarvoi, o Boé, Quitafine, Cantanhês, onde estávamos mal. Enquanto lá estive houve duas célebres operações no Cantanhês que foram dois desastres militares completos. Em princípio, eu iria fazer a terceira operação no Cantanhês, o que não me agradava nada. Mas nessa altura a situação no Norte já era muito má e, como a minha companhia era considerada a melhor da Guiné, transferiram-na para fazer a defesa exterior afastada da cidade de Bissau. O PAIGC estava melhor armado do que nós. Eles utilizavam a RPG e nós não tinhamos nenhuma arma com as característics da RPG.
A certa altura começou a haver uma grande falta de moral nas nossas tropas e a todos os distritos onde íamos levávamos pancada. Tite começou a ser uma desgraça. Depois ocupámos Jabadá, em frente a Tite mas tivemos mais de cem ataques fortes a Jabadá no espaço de um ano. Eram ataques pequenos mas consecutivos. No Sul tentámos fechar o corredor, mas aí as coisas também não correram bem. No Cantanhês houve dois desastres. No Quitafine houve também mais do que um desastre. O moral da tropa era baixo e vivíamos a tentar aguentar aquilo. Era muito complicado. A situação era dramática e extraordinariamente difícil. As tropas viviam fechadas dentro de arame farpado, saíam pouco, e a orientação que os comandos davam da guerra não conduzia a lado nenhum. O comandante-chefe, Arnaldo Shultz, estava diminuído pela doença. Foi um homem que descentralizou muito, mas aquilo não dava para descentralizar. Estava a correr mal, para não dizer muito mal, em todos os aspectos. Na altura, eu levei uma série de ideias que tinha aplicado e que, na sua maioria, tinha resultado bem.
Eu era escutado para tudo e tornei-me um especialista na Guiné. Não havia para mim sítios difíceis ou menos difíceis, por isso, não pensava que estava tudo perdido. Seria mais fácil para mim dizer: «Estes tipos são uns nabos, se não fizessem isto, isto não correria tão mal.» Mas estávamos na defensiva. A actividade típica de uma companhia tinha aspectos ridículos O quartel-general determinou a certa altura que todas as companhias tinham que ter por dia um quarto dos seus efectivos em acção. Isto era completamente idiota porque a companhia é que sabia o que é que podia fazer e quando é que o devia fazer. Se me obrigassem todos os dias a ter 25 por cento da minha companhia fora, não podia fazer uma operação em cheio, limitava-me a patrulhamentos. Depois ordenaram: «Tem de haver um contacto por semana com o inimigo.» Se eu quisesse, podia ter meia dúzia de contactos todos os dias. Saía dali, ia ao rio, dava meia dúzia de tiros, eles davam outros tantos e eu fazia o meu relatório. E isto dizendo a verdade, porque podia mentir, não ir a lado nenhum e dizer que tinha feito um patrulhamento. Tudo isto não resolvia nada e era uma forma rídicula de conduzir a guerra. A certa altura, eu pedia um avião de reconhecimento e eles só mo davam se a minha operação demorasse dois ou três dias. Ora uma operação de dois ou três dias era uma coisa violenta. Cada noite passada no mato era muito violenta. Eu, por exemplo, e outros se calhar também o faziam avançava com a minha tropa, acampava para passar a noite e, logo que a noite descia, levantava e saía dali porque já sabia que, a meio da noite, o sítio onde estava seria bombardeado de todas as maneiras e feitios. 0 que eu fazia eram operações surpresa. saía, dava uma catanada e voltava para trás, porque, a partir do momento em que fosse detectado, só levaria porrada. Havia uma série de conceitos que se chocavam. Por exemplo, se eu fosse colocado no centro de Mansoa, podia sair à vontade porque não tinha quaisquer problemas mas, se fosse colocado no centro do Morés, não saía um quilómetro fora do quartel. Era completamente frustrante estar ali e obrigarem-me a combater. Estava a levar pancada todos os dias. Aquilo estava muito mal organizado.
Spínola chegou à Guiné e correu com todos aqueles incompetentes. Havia muitos. Ele andou por lá. olhou, falou a este e àquele. Naquele momento havia na Guiné dois tipos de homens de guerra: os que tinham feito a guerra de Angola e os que ainda não tinham feito a guerra de Angola nem tinham feito guerra nenhuma. Eu pertencia ao grupo dos que tinham feito a guerra em Angola. Spínola também. Como a Guiné tinha um território extraordinariamente parecido com o do Vietname, sempre que chegavam à Guiné, o chefe do Estado-Maior, não por sua culpa, perguntava: «Onde é que você esteve na outra comissão?» Se nós respondêssemos Angola, que era o meu caso, ele dizia: «Esqueça tudo! Isto aqui é completamente diferente.» Lembro-me perfeitamente que mo disse a mim e eu respondi-lhe: «Não vou esquecer nada!» Eu tinha estado 27 meses em Angola e ia esquecer tudo? Spínola era um dos homens que tinha feito a guerra em Angola e não acreditava que a guerra fosse diferente. Redefiniu as missões, o que foi muito importante, e deu a cada comandante de unidade missões que ele podia cumprir. Aquela responsabilidade das grandes áreas, as áreas onde nem se punha os pés porque não se conseguia, isso tudo ele retirou e pôs áreas de intervenção do comando-chefe, áreas dependentes dele. Ele é que ia dirigir a guerra naqueles lugares. O comandante da companhia que estava em Morés, por exemplo, tinha à sua guarda a povoação de Morés e um pequeno círculo à volta. Toda a restante área era de intervenção do comando-chefe, que bombardeava a zona regularmente e que mandava para lá, também regularmente, unidades de comandos.
Spínola pedia-nos que segurássemos a situação até ele conseguir resolver politicamente a guerra. Tinha consigo um rapaz, que eu conhecia muito bem, o actual general Ricardo Durão. Tínhamos estado na mesma área em Angola. O Ricardo Durão explicou-me o projecto que o general trazia para a Guiné, projecto a que eu aderi. Penso que o Durão terá procurado captar outros oficiais para esse projecto.
Passado um tempo, a situação tornou-se muito crítica na parte leste do Norte da Guiné e foi necessário fazer uma operação para derrotar um efectivo muito numeroso que estava lá instalado. Isto passou-se em 1969-1970. A operação foi planeada a nível do comandante-chefe e, quando foi altura de reunir o comando da unidade, Spínola disse: «Disseram-me que há aí um oficial que foi promovido por distinção e que é muito conceituado. Vai esse.» Ele não me conhecia, foi assim que me nomeou. Fui ao palácio, falei com o Spínola, que me deu instruções. Comandei essa operação, que correu muitíssimo bem. Tivemos sorte. Tinha três companhias de caçadores, uma bateria de artilharia e a aviação. Os homens do PAIGC estavam na República da Guiné, tinham uma base encostada à fronteira e eu, quando fui de avião, vi a base e pedi ao oficial de Artilharia que ia comigo para fazer um plano de fogo. O oficial de Artilharia fez um interessante planeamento de fogo. À tarde, quando estávamos na reunião, eu disse a Spínola que tinha visto a base do lado de lá e ele ordenou-me que bombardeasse. Fiquei indeciso e Spínola perguntou-me se eu estava com medo. Depois deu-me a ordem por escrito. Realmente eles fizeram fogo do lado de lá, mas eu não mandei fazer fogo do lado de cá. Tivemos a sorte daquilo cair nos paióis e incendiou-se tudo. Foi a primeira vez que atacámos a República da Guiné. Foi talvez a operação em que eles tiveram mais baixas. A artilharia acertou em cheio. A partir daí criou-se o gosto de atacar bases na República da Guiné. Às vezes a Força Aérea bombardeava e o Marcelino da Mata ia lá com o seu grupo. Armadilhavam com minas um corredor, destruíam uma ponte ou faziam outra acção e depois eram recolhidos ou vinham pelo seu próprio pé. As operações eram estudadas e levava-se o armamento necessário para a acção: RPG, Kalashnikov. O Marcelino tinha um grupo de indivíduos e fazia também a sua guerra pessoal com o PAIGC. Ele tem para aí uns dezasseis filhos, legítimos e ilegítimos. Uma vez foi fazer uma operação comigo e quando voltou trazia um bebé. Eu disse-lhe: «Tu, que tens tantos filhos, agora vens com mais um bebé!» Ele disse-me: «Alguém tinha que tomar conta do menino!» Era a maneira de ser dele.
A Operação Conakry teve uma grande vantagem para o PAIGC, porque a União Soviética andava há muitos anos a tentar ter uma base em Conakry e o Sekou Touré nunca autorizou. Mas depois da Operação Conakry essa base foi autorizada.
Mas não penso que a operação tenha sido um falhanço completo.
Fundamentalmente, o que falhou foi a informação. A informação estratégica, que tinha de ser dada pela PIDE, falhou. Pouco tempo antes de morrer, o inspector da PIDE Matos Rodrigues, que andou comigo no liceu mas que na parte final da sua vida não me falava, assumiu a responsabilidade daquilo que se passou. Realmente, a informação dada ao Alpoim Calvão não foi a melhor, foi uma informação falsa. Não quero dizer que, se tivesse sido eu o comandante daquilo teria seguido a conduta que ele seguiu. Poderia não ter escolhido aquela - e teria escolhido outra porque era mais seguro -, mas não digo que aquela foi mal escolhida. Ele não encontrou os aviões quando chegou ao aeroporto, não encontrou os MiG. Portanto, as quatro lanchas portuguesas que estavam na baía estavam sujeitas a ser atacadas por MiG. O único objectivo que ao fim e ao cabo ele conseguiu foi a libertação dos prisioneiros portugueses. Aquilo com a República da Guiné era muito complicado. Os nossos aviões a jacto tinham, no que respeitava ao combustível, a capacidade de ir à fronteira e regressar. Quem fez o planeamento da Operação Conakry foi o Mário Firmino Miguel, que na altura era o chefe das operações do comando-chefe. Eu saí da Guiné em Abril ou Maio de 1970, a operação foi feita em Novembro desse ano e voltei em Abril de 1971.
A liquidação física dos majores Passo Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, na noite de 20 para 21 de Abril de 1970, foi um revés no esforço de conquista dos manjacos. Carlos Fabião acha que o PAIGC queria apenas ganhar tempo. Os guerrilheiros usavam armamento com um crescente grau de sofisticação, oriundo sobretudo da União Soviética, e o surgimento dos mísseis Strela alterou a conjuntura da guerra Ante a recusa de Caetano em negociar a paz com Amílcar Cabral, a equipa de fiéis de Spínola planeou uma estratégia para colocar o general no poder em Lisboa.
Não estava na Guiné quando foi o problema dos majores, mas entendo o que se passou. Dentro daquele projecto que Spínola tinha de ganhar a guerra politicamente, deu-se ao chão manjaco uma grande prioridade. O inimigo estava a fazer um esforço muito grande no chão manjaco e, no Leste, no chão dos fulas. O chão balanta já estava praticamente todo dominado. Para inimigo havia que subverter todo chão manjaco, fechando assim o cerco a Bissau. A seguir, o Leste, chão fula. Spínola, quando lá chegou, deu prioridade total ao chão manjaco, onde se começou a fazer uma acção sociopolítica e económica a nosso favor. O grupo que lá estava era escolhido a dedo. Foi-se buscar o melhor que havia. Quem comandava o grupo era um homem muito bom, coronel pára-quedista, o Alcino. Foi-se buscar o major Ramos, um homem muito bom para chefe do estado-maior daquele conjunto. Para as operações foi-se buscar o Osório e o Pereira da Silva, que era extraordinário em informações. O Pereira da Silva era um homem capaz de penetrar no sub mundo e conseguiu entrar numa sociedade extraordinariamente fechada como a manjaca. Era mesmo uma espécie de manjaco branco. Na manobra socioeconómica, com a parte militar a exercer o seu esforço naquele ponto absolutamente prioritário, a tropa tinha lá uma companhia de fuzileiros muito boa, que era comandada pelo actual chefe do Esta­do-Maior da Armada, o Pacheco. Tinha uma companhia também muito boa de comandos, uma de pára-quedistas e uma do Exército. Com essas unidades, ele começou a dar pancada e a cortar as vias de comunicação e a dominar o chão. Esta manobra foi lançada porque tinha cobertura militar. Aqui entram variadíssimas hipóteses para o caso dos majores, e eu vou dizer a minha, o que não quer dizer que seja a verdadeira. Nessa altura aconteceu que o PAIGC apercebeu-se de que precisava de tempo para se rearmar, reequipar, conseguir arranjar-se no chão manjaco. Então, começou a negociar a missão connosco. Penso que, desde o princípio, houve falsidade nos propósitos do PAIGC porque eles só queriam ganhar tempo.
Aquela reunião iria ser a última, em termos operacionais, porque eles já tinham prometido várias vezes a rendição e nunca se tinham rendido. Eles iam reunir-se com o PAIGC, mas esses encontros eram vulgares. O Spínola tinha estado num.O PAIGC ficava sempre de estudar as formas da rendição, mas no momento em que iam fazer a rendição, falhava outra vez. Este grupo foi dizer-lhes que era a última conversa que iam ter. Penso que, como era a última conversa que iam ter, os homens do PAIGC assassinaram-nos nessa altura.
O PAIGC tinha muitos apoios. Tinha o apoio da União Soviética, que não sei se cobrou a factura a seguir. Cuba deu-lhes apoio, mas nada comparável com o apoio que deu ao MPLA. Na Guiné, e eu vi isso na parte final, o material auto que o PAIGC tinha era quase todo sueco. A Noruega e a Dinamarca também davam muito apoio. Os russos prestavam auxilio ao PAIGC mas também faziam o mesmo em relação a nós, se quiséssemos. Vendiam armas a quem lhes pagasse. A Bélgica não vendia nada, a Holanda não vendia nada. O circuito era feito à boca dos aviões. As armas russas eram vendidas através da Norte Importadora, do Zoio, e destinavam-se formalmente à polícia do Uruguai mas eram descarregadas em Lisboa. Comprei também armas à França. Pode ser que eu um dia fale porque andei metido nisso. Vejo que toda a gente que andou metida nisso está rica, e eu não. Mas nessa altura não pensei que isso pudesse ser um negócio. Por exemplo, fiz uma encomenda de espingardas G-3 ao depósito em Lisboa e levaram dois anos a entregá-las, porque primeiro estava a Alemanha, e depois estava não sei quem. Eu, que precisava delas para a guerra, só as tive dois anos depois. Cada companhia de milícias que eu organizava tinha um preço. Por exemplo, dez mil contos. Davam-me esse dinheiro, eu recrutava 150 pessoas, às quais dava armamento, fardamento, instrução, etc. Com o fardamento e o equipamento não havia problemas, porque o Exército vendia. Mas o armamento era uma chatice, porque o Exército português tinha falta de armas. Havia uma empresa que vem dia armamento e que era propriedade, entre outros, do Alpoim Calvão. A certa altura venderam uma granada polivalente, que tanto servia de granada de mão ofensiva como defensiva. Era uma arma francesa que, segundo constou, os espiões tinham roubado à França. Mas a verdade é que os franceses venderam a arma secretamente ao Alpoim Calvão. Eu comprei armas dessas para as milícias e o Kaúlza também as comprou.
Nunca dei por Cuba ter lá conselheiros. Houve só esse capitão Peralta, que era conselheiro. Foi apanhado numa emboscada. Esta história do Peralta em Buba foi ridícula. Havia o rio Grande de Buba e o Peralta fez um reconhecimento da zona mas com a maré cheia. Isto é, viu o rio e vários braços do rio - o rio Grande de Buba. Era mais uma ria do que um rio, um rio curto e largo onde vêm desaguar muitos pequenos rios. Havia o quartel de Buba, que tinha uma pista de aviação. Mas quando ele fez o reconhecimento, fê-lo com a maré cheia, era tudo água. Mandou as tropas virem através do capim, mas quando chegaram para atacar estava a maré vazia, e onde havia água estava terra. Quando ele montou as armas e disparou, a companhia de fuzileiros saiu a pé e contra-atacou. Por outro lado, ele andou a fazer uma série de reconhecimentos e as patrulhas portuguesas a certa altura aperceberam-se e avisaram o comando, de que havia vestígios de passagem de pessoas à volta do quartel. Nessa noite. o comando determinou que estivesse um pelotão de Infantaria emboscado em certo sítio. Quando ele fez o ataque pelo capim, a tropa que estava emboscada disparou contra o capim, vinham três bigrupos, o equivalente a três meias companhias. Uma pessoa que é apanhada no meio do capim não tem visibilidade nem capacidade. Portanto, os que vinham pelo capim fugiram todos. Quando o Peralta foi apanhado, apanharam-se os croquis dessa operação. Mas uma pessoa com quem eu mais ou menos me dei mais tarde, o comandante Júlio de Carvalho, perguntou-me um dia como é que tinha falhado o ataque a Buba, porque tinha sido ele e o Peralta que o tinham planeado, e estavam convencidos de que não podia falhar. Discutimos o que tinha acontecido e ele disse-me que tinha feito o reconhecimento. Mas quando chegou ao local no dia do ataque, viu o rio em baixo, não havia nenhuma semelhança. Eles montaram as armas, mas nós disparámos e eles fugiram todos para o rio. Quando fugiram para o rio, os fuzileiros viram-nos e foi a debandada geral.
O PAIGC tinha foguetões terra-terra de 122 mm, que faziam fogo a 17 quilómetros, enquanto a nossa arma mais importante só fazia fogo a 10 quilómetros. A primeira pessoa a levar com os foguetões na Guine fui eu, fizeram fogo com seis foguetões, eu fiquei aflito porque não conhecia aquela arma. Permaneceu este tipo de guerra até aparecer c Spínola. Depois avançámos e experimentámos as companhias de comandos africanos. No filme Apocalypse Now há uma cena de um assalto a uma tabanca, após o que eles pediram o fogo dos aviões a jacto. Nós não fazíamos assim. Mandávamos os jactos à frente para bombardearem a aldeia, depois dos jactos passarem uma ou duas vezes e bombardearem aquilo tudo com napalm, caíam os helicópteros sobre a aldeia, com as companhias. Começámos a fazer isto em toda a Guiné com um grande sucesso. Spínola foi para lá, travou a queda e conseguiu inverter a situação. Mas ele não tinha ilusões. Havia a possibilidade de se terem estabelecido outras ligações entre nós e pelo menos a Guiné, São Tomé e Cabo Verde. O Amílcar Cabral acabou por pedir liberdade política, não exigia a independência. Quem matou o Amílcar Cabral não sei, podiam ter sido quatro diferentes forças. O Senghor disse-me que tinha sido o Sekou Touré, mas como o Senghor e o Sekou Touré não se entendiam, tenho alguma reserva. Tenho elementos suficientes para dizer que foi a PIDE, mas também tenho elementos suficientes para dizer que foi a República da Guiné-Conakry. Pode também ter sido o PAIGC, em resultado de uma luta de poderes. E pode ter sido, e creio que é também uma hipótese com muita força, a União Soviética. Isto porque a Guiné era a mais fácil e a mais barata para pressionar Lisboa. Em conversa com um inspector da PIDE, eu disse-lhe: «Agora só faltava mais este disparate, matarem o Amílcar. » E ele, não muito surpreendido, respondeu: «E se o Amílcar Cabral proclamasse a independência até ao fim do ano?» Mas isto não prova que tenha sido a PIDE, embora a PIDE, segundo eles diziam, tenha estado na morte do Amilcar Cabral. O Aristides Barbosa tinha saído do campo de concentração do Tarrafal, foi levado pela PIDE para Bissau, onde lhe arranjaram um emprego.
Spínola ouvia muito o Ricardo Durão e o Rafael Durão. Ao núcleo duro do staff dele pertenciam eu, o Carlos Morais, mais tarde o Dias de Lima quando o Carlos Morais acabou a comissão, o Carlos Azeredo, o João Almeida Bruno, o Firmino Miguel e o Pereira da Costa. O Azeredo tinha uma certa «pancada», mas o resto era gente normal. Uma noite este grupo, excepto o Dias de Lima, reuniu-se em Bissau, depois de fazer um estudo exaustivo do que se estava a passar no país e nas colónias, e chegou à conclusão que a maneira de resolver o problema nacional era destituir o Governo e substituí-lo por alguém que quisesse resolver os problemas nacionais, como era o caso do Spínola. Puseram-se várias hipóteses, até que assentámos no projecto de transformar Spínola numa figura nacional, de tal maneira importante que eles não pudessem pô-lo numa prateleira, quando ele regressasse a Lisboa. Quando o Spínola tivesse uma posição importante em Lisboa, ia colocando os seus homens de confiança, que eram muitos, nos lugares importantes. No momento em que ele achasse que tinha o espaço nacional coberto por pessoas da sua confiança, subia a escadaria de São Bento, batia à porta e dizia ao Marcello: «Gostei muito deste bocadinho, mas vá-se embora porque quem manda agora sou eu.» Seria um golpe de Estado típico. Isto falhou porque o Spínola, apesar de ter ido para um lugar importante, que foi criado de propósito para ele - vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas -, nunca conseguiu pôr uma pedra dele em nenhum sítio porque não o deixaram. Entretanto, mobilizaram-se jornalistas, portugueses e estrangeiros. O Dominique de Roux, francês, era um dos homens que estava connosco. O Victor Direito, do República, também.
Quando apareceram os Strela, a guerra da Guiné acabou. Deixámos de ter possibilidades de acção. Não é fácil dizer que a situação estava perdida, embora haja gente que faça análises pouco sérias, na minha opinião. Se me disserem que a guerra colonial estava perdida na Guiné, eu digo que estava. Se me disserem que a guerra colonial não estava perdida na Guiné, eu digo também que não estava. E não estava a que preço? O regime mandava para lá aviões, helicópteros, mas homens não sei onde é que os iria buscar. Um amigo meu dizia-me: «Até os ceguinhos dão para escuta!» Não era bem assim. Por exemplo, um dia passou por mim um soldado que não me fez continência. Chamei-o e perguntei-lhe se ele não me tinha visto. Ele disse-me que sim, que me tinha visto e deu-me um papel do seu comandante de companhia que dizia: «Atesto que o soldado tal é paralítico do braço direito.» Isto dá vontade de rir mas é dramático. De qualquer maneira, para resolver uma guerra não se pode manter esta posição. As duas experiências no Vietname, a francesa e a americana, mostraram o que é que acabava por acontecer. Não vamos sequer comparar o poderio que tinham os americanos com o poderio que tinham os vietnamitas. A solução que Spínola tinha conseguido na altura seria extraordinária e o futuro mostrou que ele estava cheio de razão. Podíamos ter resolvido a questão em 1972 e não a resolvemos porque Caetano disse claramente a Spínola que aceitava um desastre militar mas nunca uma cedência política. Isto foi a coisa que mais me marcou. Estávamos a trabalhar, dávamos o melhor de nós próprios. estávamos convencidos que trabalhávamos por uma causa de interesse nacional, mas víamos que indivíduos, porque politicamente não lhes convinha, sabotavam as negociações de paz.

BIBLIOGRAFIA
A Guerra de África (1961-1974)
Circulo dos Leitoes - VOL I

quinta-feira, 28 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

MANUEL DOS SANTOS


Disparar os «Strela»


Foi treinado em Cuba e na União Soviética para a luta de guerrilha no interior da Guiné. Chefiava o grupo do PAIGC que, numa escola militar russa, aprendeu a manejar os mísseis Strela. Reconhece que a estratégia de Spínola trouxe maiores dificuldades ao PAIGC mas que não conteve a progressão da luta pela independência. O comandante Manuel dos Santos destacou-se nas matas e enaltece as qualidades políticas de Amílcar Cabral e a bravura militar de Nino Vieira.
O apoio de Sekou Touré à luta do PAIGC foi importante desde o início, mas a implicação do presidente da Guiné-Conakry no assassinato de Amílcar Cabral não pode ser excluída. Spínola, com o seu novo modelo de acção militar, levantou problemas à guerrilha do PAIGC. A invasão de Conakry foi politicamente negativa para Portugal.
Tomei contacto com os problemas políticos através do Abílio Duarte, que mais tarde foi presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde. Depois da fundação do PAIGC em Bissau, ele foi enviado para Cabo Verde, onde era funcionário do Banco Nacional Ultramarino, com o objectivo de mobilizar a juventude. Foi meu colega no liceu e tínhamos uma relação bastante boa. Foi aí que eu ouvi as primeiras coisas sobre política e sobre dominação colonial. Apesar de ainda não ter começado a luta armada, já tinha começado a mobilização no interior da Guiné. Os primeiros quadros foram enviados em 1960 para a República Popular da China, para adquirirem uma preparação político-militar para a guerrilha. Por coincidência, dois dos membros desse grupo são hoje o presidente e o primeiro-ministro da Guiné, o Nino Vieira e o Manuel Saturnino Costa. A China tinha nessa altura uma estratégia de apoio aos movimentos de libertação nacional. Mas as nossas melhores relações foram com a União Soviética. Com a China só foram boas nos primeiros momentos. Vários grupos foram à China receber preparação político-militar, antes do desencadeamento da luta armada. em princípios de 1963, com um ataque, comandado pelo Arafan Mané, a um quartel em Tire. Sekou Touré apoiou-nos desde o princípio. De Conakry vinham armamento e abastecimentos de toda a ordem, in
cluindo bens de primeira necessidade para a população que estava sob o nosso controlo. Com Senghor era diferente. Havia algum apoio do Senegal e tínhamos alguma implantação lá, simplesmente o apoio deles nunca foi como o apoio de Conakry, a não ser na última fase da luta, em que os senegaleses reconheceram que não estávamos a preparar nada contra o Senegal, e que todo o equipamento que passava por ali era, de facto, para a luta nacional. Havia um conflito entre os dois, Senghor e Sekou Touré. Mas não sei se seria isso, ou se seria o receio de que gente armada a circular e a fazer transitar equipamento militar dentro do Senegal pudesse alimentar conflitos internos. Tanto mais que, nessa altura, havia um movimento independentista na Casamanse. Era uma situação pouco confortável para o Governo senegalês.
Já se tinha constituído o secretariado do PAIGC em Conakry quando eu saí de Lisboa e fui para Paris, onde me encontrei com o Amílcar Cabral. As necessidades da luta armada, naquele momento, passavam pela tenção dos quadros necessários à evolução qualitativa da guerra na Guiné e ao eventual desencadeamento de ações em Cabo Verde. Estive em Paris uns meses. Depois fui para o Nordeste da França, com a missão de tentar recrutar outros cabo-verdianos A emigração aí era numerosa. porque era a zona das siderurgias e de outras indústrias. Depois, em 1965, seguimos para a Argélia, apenas como ponto de passagem, e fomos para Cuba, onde recebemos a primeira preparação militar. Estivemos Cuba perto de um ano. Éramos cerca de trinta quadros. A doutinação ideológica não era muita. Recebemos, essencialmente, um treino litar. Os cubanos tinham estruturas próprias para treinar os guerrilheiros. A doutrinação ideológica numca decorreu por conta de estrangeiros mas sempre por conta do PAIGC, que sempre teve bastante independência e autonomia. Depois voltei de Cuba e passei uma temporada na União Soviética, onde foi completada a nossa preparação militar, que foi uma preparação mais específica. Voltei Para a Guiné em 1966 e fui para o Sul. Os guerrilheiros já estavam implantados dentro do território e o PAIGC dispunha de muitas unidades regulares formadas, fardadas e equipadas. Estávamos psicologicamente preparados para enfrentar a situação. E, depois, éramos jovens.
Concordo que o PAIGC foi muito mais eficiente, no plano militar, do que os outros movimentos de libertação nacional. Quando Spínola foi para a Guiné substituir Shultz como comandante-chefe, a situação militar era já nitidamente favorável ao PAIGC. Shultz fez muitas asneiras. Não fez uma antiguerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. A antiguerrilha moderna tem várias componentes: a militar, com os helicópteros e a aviação, e a política. Mas Shultz não fazia trabalho com as populações. Pelo contrário, o trabalho que ele fazia era a repressão e, nesses casos, a repressão aumentava a resistência e tornava-se, quase objectivamente, um nosso aliado. Penso que em 1968-1969 o PAIGC dominava perfeitamente dois terços do território. O PAIGC nunca teve uma base étnica, pelo contrário, sempre procurou agir numa base não étnica. O PAIGC sempre procurou constituir as suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia. O combate corpo a corpo foi muito raro na Guiné. Mas, quando se tratava de combates de infantaria e de emboscadas, havia combates próximos, em que as distâncias entre os combatentes eram muito pequenas, às vezes apenas de alguns metros.
Os estigmas de antiportuguesismo nunca existiram no PAIGC. Em 1966, quando foi o Campeonato do Mundo de Futebol, e Portugal ficou em terceiro lugar, estivemos no interior, no mato, a ouvir os relatos e a torcer pela equipa de Portugal. Amílcar Cabral era um homem clarividente que sabia que a guerra ia terminar um dia e que as nossas relações com Portugal deveriam ser boas. Cabral nunca foi antiportuguês. Ele teve o cuidado de dizer, nos primeiros anos da luta, numa época em que os nacionalismos, às vezes à mistura com um certo racismo, estavam muito acesos, que não estávamos a lutar contra o povo português. Amílcar Cabral era o chefe indiscutível, o teórico do PAIGC, o homem que elaborava a estratégia. É verdade que Mao Tsé-Tung influenciou toda a gente que nos anos 50 e 60 fez guerrilha. Mas Cabral citava, sobretudo. Cabral. Era um homem extremamente independente com
uma grande capacidade e um espírito crítico muito grande. No campo da guerrilha, Nino Vieira foi importante desde 1960, foi sempre um dos melhores. Ele transformou-se quase numa lenda na Guiné pela sua coragem física. Pertenceu ao primeiro grupo que teve preparação militar na China. É um indivíduo extremamente corajoso. Tanto mais que houve outros dirigentes militares importantes, como o Osvaldo Vieira, o Francisco Mendes, etc., mas nenhum deles teve aquela auréola de herói. O Nino Vieira, nesse capítulo, era o maior. Era extremamente respeitado por todos os soldados que participaram na luta de libertação nacional. A lenda dele fez-se em combate.
Em 1968, eu estava na artilharia. Primeiro fui chefe de reconhecimento e depois 2.° comandante de uma bateria grande de artilharia. A minha missão era a de dirigir essa bateria em combate e fora dele. Era a de preparar as coisas todas. Quando Spínola chegou, o PAIGC continuou a desenvolver a sua estratégia, mas com maiores dificuldades. O Spínola começou, de facto, a fazer uma antiguerrilha moderna e inteligente, apesar de ter inaugurado a sua vinda para a Guiné com algumas derrotas. Tentou fechar - e isso já vinha do tempo do Shultz - a fronteira sul, que dá para Conakry, através da implantação de quartéis. Ora a nossa logística vinha de Conakry, era em Conakry que desembarcava tudo, e manter a fronteira sul aberta era extremamente importante para nós, em termos logísticos. Nós precisávamos daquela fronteira aberta e fizemos tudo o que era necessário para inviabilizar as intenções portu- guesas. Spínola ia para o mato. Ia de helicóptero, não ia a pé. Mas não há dúvida de que em todos os lugares em que aconteciam coisas extraordinárias, e onde havia perigos, Spínola acabava por aparecer. Carlos Fabião foi o grande organizador das tropas africanas. Era um operacional de primeira ordem, um indivíduo que respeitávamos como soldado. Eu diria que o Spínola nos criou problemas no sentido em que travou imenso o avanço da luta. Não é que ele tivesse reocupado aquilo que nós já possuíamos, porque isso era bastante difícil. Ele terá reocupado uma ou outra posição, nomeadamente em 1972, no Sul, na área de Cubucaré. Mas, em compensação, no Norte do país, perdeu porque nós avançámos bastante. De forma que não penso que o Spínola estivesse a ganhar a guerra, nem nada que se pareça com isso.
Quem falava com os três majores portugueses, em nome dos nossos bigrupos do chão manjaco, eram os comandantes do PAIGC, o André Gomes, o José Sanhé. Mas eles não estavam a negociar com os majores. O que aconteceu foi que os majores iniciaram uma acção, que é um tipo de acção corrente em qualquer guerrilha, que foi a de tentar aliciar os nossos comandantes na área. Chegaram à fala com eles através das populações que circulavam por ali. E evidente que, tanto nó como os portugueses, tínhamos agentes. Não eram agentes duplos, mas faziam a circulação de informações. E chegaram à fala. Houve vários encontros. Desde o primeiro encontro que a direcção do PAIGC tinha sido advertida pelos nossos comandantes de que havia essa tentativa. Mas nunca pusemos de parte. em nenhum momento, a negociação com Portugal para chegarmos ao fim do conflito. Aliás, Cabral sempre disse isso. Mas não era negociação que eles queriam, nem era nenhum processo de travagem que eles queriam. Aquilo era uma acção clássica de antiguerrilha, de corrupção ou de aliciamento de responsáveis da parte adversa, com gravadores, com dinheiro, com coisas. Os gravadores eram bens de consumo que qualquer indivíduo jovem - e nós éramos todos jovens - gostava de ter. Era uma tentativa de corrupção material e de aliciamento. Tínhamos lá umas centenas de guerrilheiros, mas aquilo era sobretudo para os responsáveis da guerrilha. Houve uma ordem superior para terminar com isso. E, no último encontro dos majores, a nossa gente tentou capturá-los. E eles defenderam-se. Não é verdadeira a versão segundo a qual os majores iam desarmados. O Spínola ficou furioso. porque eram três oficiais com reputação de serem altamente capazes de
serem os melhores operacionais e os seus melhores adjuntos.
Nós não ouvimos falar muito do Alpoim Calvão antes da invasão de Conakry. Mas tudo leva a crer que fosse um bom operacional. Quando se deu a invasão de Conakry, eu estava no Norte, muito longe. Não chegou a causar convulsões nenhumas porque aquilo não deu nada. Em dois dias, já se sabia que tinha acabado. Um dos objectivos da invasão era o de matar Cabral. Aliás, eles tentaram atacar o nosso secretariado em Conakry e libertaram mesmo os portugueses que estavam presos. Mas não penso que isso terá tido importância alguma sobre o desenrolar da luta na Guiné. Poderia ter tido se tivessem, de facto, conseguido acabar com o regime de Sekou Touré, e mesmo isso não era muito provável. Politicamente, a invasão de Conakry foi um desastre para Portugal. Mais tarde, quando Spínola quis negociar connosco, o PAIGC já tinha um bom reconhecimento político no plano internacional. O essencial dessa negociação, se ela acontecesse, seria acabar com a guerra. Cabral queria encontrar-se com o Spínola e com o Senghor, desde que isso significasse negociar o fim da guerra. Nós controlávamos a maior parte do território rural. Os portugueses ocupavam todos os centros urbanos e dispunham de uma densidade enorme de quartéis. Nessa altura, o número de soldados portugueses e africanos era bastante elevado, à volta de quarenta, cinquenta mil, contando com os soldados africanos. Nós, no fim da guerra, tínhamos cerca de dez mil homens. No Norte, ocupávamos quase todo o território rural, com excepção da ilha de Bissau e da faixa costeira que vai até Mansoa. De resto, andávamos perfeitamente à vontade em todo o território. No chão manjaco, sofríamos bastante pressão porque era o lugar mais difícil de abastecer. Era longe, e apesar de estar relativamente perto da fronteira, para lá chegarmos tínhamos que atravessar o rio Cacheu, que era bastante largo nessa região, e os portugueses dispunham de meios de segurança e vigilância marítima extremamente perigosos para nós. As tropas portuguesas mais eficazes, como em todas as guerras desse tipo, eram os comandos, os fuzileiros e os pára-quedistas. Essa era a tropa operacional porque o resto da tropa estava, sobretudo, a ocupar quartéis.
Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes antiaéreos, os Strela. Fui lá treinar com eles, eu era o chefe do grupo. Fomos todos instruídos na União Soviética. Os Strela foram negociados por Amílcar Cabral. Da primeira vez vieram umas vinte e quatro instalações de lançamento de Strela, via Conakry. Os Strela acabaram com a guerra no sentido em que o Exército colonial ficou completamente na defensiva; já não era possível ao Exército português fazer operações ofensivas com aviões ou com helicópteros. A guerra entrou numa fase extremamente delicada, sobretudo para o Exército colonial. E foi a partir desse momento que começámos a fazer operações de maior envergadura, de dia. O primeiro avião foi abatido por um jovem guerrilheiro chamado Marcos Lopes. O coronel Almeida Brito foi o quinto piloto a ser abatido por nós, acho eu. A morte de Cabral foi um pesadelo para toda a gente. Por acaso, nesse momento, eu estava fora da Guiné, na União Soviética. Deve ter havido envolvimento português na morte de Cabral. E também do Sekou Touré. O Sekou Touré tinha-se transformado num indivíduo extremamente megalómano e a projecção de Cabral, no plano internacional, devia estar a fazer-lhe sombra. Para além disso, o episódio do desembarque português em 1970 ter-lhe-á dado muito que pensar, porque quem salvou nessa altura a Guiné-Conakry fomos nós. As tropas do PAIGC que estavam ali foram as primeiras a reagir e a resolver os principais problemas dessa operação.Posso conceber que Sekou Touré, de facto, tenha estado envolvido na morte de Cabral, até pela maneira como ele terá agido depois. Isto segundo as informações de que dispus, porque eu estava ausente, na União Soviética. Está provado que quem deu os tiros foi Inocêncio Kati. Ele era um antigo oficial do PAIGC, que tinha sido afastado do comando operacional por erros, arbitrariedades e outras coisas bastante negativas que cometeu no teatro de operações. Cabral, seguindo a sua teoria de compreensão do que eram esses fenómenos, tentava sempre reabilitar e recuperar essa gente, sobretudo quando se tratava de oficiais que no terreno tinham dado provas. Alguns dos principais participantes no assassinato de Cabral foram antigos militares do PAIGC, presos no princípio da década de 60, em Bissau, que tinham estado na prisão do Tarrafal e que depois, muito provavelmente, foram industriados contra nós. Por isso penso que não é possível contornar a ligação entre esses indivíduos que assassinaram o Cabral e a PIDE-DGS. Logo após o assassinato de Cabral, eles foram ter com as autoridades militares. Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strela, foi a gota de água. Depois da proclamação da independência, fiz a minha vida normal de guerrilheira: combates, mas agora com muita vantagem do nosso lado para exercer uma pressão contínua. Aliás, penso que o Governo português sempre encarou a perda da Guine como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava tudo praticamente acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi - dada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que as portugueses fizeram. Foi uma operação, no chão dos Manjacos. com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero. mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhia foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas, um africano chamado Jolibá No dia 25 de Abril ouvimos pela rádio que em Portugal tinha havido golpe de Estado. Ficámos satisfeitos, porque a maior parte de nó tinha a certeza que a guerra tinha acabado. 1)


1) - Testemunho oral: Manuel Maria Monteiro Santos. Lisboa, 11 de Março de 1995. Combatente do PAIGC, nasceu em 1942. Treinado em Cuba e na União Soviética. Foi chefe de reconhecimento de artilharia. Era empresário quando foi entrevistado


BIBLIOGRAFIA
A Guerra de África - (1961 - 1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL. II

quarta-feira, 27 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

MARCELINO DA MATA

Lenda do Guerreiro

Fez denodadamente a guerra partindo da noção de que quem tinha medo morria depressa e movimentava-se à vontade no complexo território da Guiné. O alferes Marcelino da Mata, um supermedalhado do Exército, detentor da Torre e Espada, comandou grupos especiais de negros em múltiplas acções de combate e destaca o esforço desses homens, que se sentiam portugueses. Foi um dos expedicionários a Conakry. Veio para Lisboa numa maca. Voluntariou-se para os comandos e depois formou um grupo especial que actuava de forma independente. Alpoim Calvão encarregou-o de uma missão: treinar os invasores de Conakry. Mas os principais objectivos da operação, executada em 22 de Novembro de 1970, não foram atingidos.
O PAIGC fez mal à minha família, por razões políticas, e entrei para o Exército português na Guiné no dia 3 de Janeiro de 1960. Fiz a recruta de cinco meses e depois tirei a especialidade em quatro meses. Era condutor-auto. Na recruta éramos três naturais da Guiné. Começámos a actuar. A primeira operação que fiz foi com um batalhão de açorianos, o Batalhão 356. Tínhamos duas companhias operacionais de caçadores, a 76 e a 91. Eu fui para lá como operacional e intérprete, porque falo sete dialectos da Guiné, mas na altura ainda não tinha tirado o curso de comando. Fomos para a zona sul, que é uma zona balanta e, como eu falava balanta, levaram-me como intérprete. Estivemos lá dois meses. Quando voltei fui integrado na 2.a Repartição, o Serviço de Informação Militar. Fui para lá mandado pelo major José Maria Carvalho Teixeira. Como esse major precisava de um intérprete mandou-me chamar e fui como condutor dele. O Carvalho Teixeira veio-se embora e foi para lá um outro ma jor, de Artilharia, que tinha a mania que era bom. Chateei-me e vim-me embora. Foi aí que me ofereci para os comandos. Fiz o curso de comandos, que durou nove meses. Quando acabámos o curso, a primeira operação que fizemos foi no Morés. Fomos lá dar porrada aos gajos. O objectivo era destruir o acampamento e apanhar inimigos. Nessa primeira actuação, em que participaram o Alves Ribeiro e o Saraiva, fizemos sete mortos e capturámos três homens e material de guerra. A partir daí comecei a actuar. A guerra na Guiné fazia-se assim: destruíamos os acampamentos, apanhávamos os gajos e o material. O nosso comandante era o Leonel Sousa Saraiva e quem comandava os comandos era o tenente-coronel Dinis, que já morreu. Fizemos várias operações com esse grupo e formaram-se depois mais quatro grupos. O meu comandante passou a ser um tenente chamado Pombo, que era filho de um general ou brigadeiro que na altura era o comandante militar de Moçambique. Este Pombo era da artilharia antiaérea e ofereceu-se para os comandos.
Depois foi para lá um alferes, natural do Porto. Não me dei com esse alferes por causa de uma rapariga mancanha chamada Cecília. O alferes andava atrás desta rapariga mas a rapariga não gostava dele, gostava de mim. Como ele era alferes e eu era cabo, quando havia qualquer coisa ele carregava sempre em cima de mim. Chateei-me e saí dos comandos. Fui para Farim, no Norte, falei com o 2.° comandante, o tenente-coronel Agostinho Freire, do Batalhão 1887. Pedi-lhe para me deixar formar um grupo especial. Na altura, a aviação não ia a Farim, a coluna não se fazia, os barcos também não iam lá. Estava tudo bloqueado e o povo tinha fome. Eu formei o grupo, instruí os homens e começámos a actuar. Consegui abrir a estrada para Mansabá, afastei o inimigo e os barcos começaram a atirar. Quando chegou a época do cultivo, abrimos o outro lado do rio, o povo atravessou o rio e começou a cultivar. Na altura, o PAIGC estava a dois quilómetros de Farim. Afastei os gajos todos. Actuava, no máximo, com oito homens. Quando não sabia onde eram os acampamentos, ia até à fronteira do Senegal com uma farda do PAIGC e uma bolsa de enfermeiro, entrava numa povoação e dizia: «Venho do Senegal, sou enfermeiro e fui mandado para a zona tal.» E eles encaminhavam-me até ao acampamento. Chegava ao acampamento, ficava por lá dois ou três dias, tratava dos homens, dava injecções. Às cinco ou sete horas da noite ia-me embora e apanhava o meu grupo. Às cinco da manhã já estávamos em cima deles. Depois, o coronel Rafael Durão, pára-quedista, pediu-me para ir para Teixeira Pinto comandar um grupo da 16.' Companhia de Comandos, comandada pelo Duarte de Almeida, aquele tenente-coronel que foi morto. Quando lá cheguei pedi ao coronel que me deixasse independente, para que o meu grupo pudesse trabalhar à vontade, e ele disse-me que sim. Peguei no grupo, dei-lhes mais um bocado de instrução e comecei a actuar sozinho. Depois fui destacado, com esse grupo, para proteger as colunas que iam a São Vicente levar géneros.
Um dia à tarde, no ano de 1970, aterrou de avioneta o Alpoim Calvão. Disse-me que tinha andado à minha procura e que, afinal, eu estava ali escondido. Eu disse-lhe que não estava escondido, que estava a comandar um grupo de brancos. Eu tinha conhecido o Calvão na operação que fizemos na ilha de Combo, onde estivemos 75 dias. A ilha de Combo estava totalmente ocupada pelo PAIGC. Conseguimos limpar a ilha toda, até deixámos lá ficar uma companhia de caçadores. Tivemos algumas baixas, mas limpámos a ilha toda. O Calvão tinha um segundo comandante, um cabo, que era o imediato e era um maluco. Iamos os dois pela mata e caçávamos javalis e gazelas. Um dia tivemos uma emboscada, mas lá nos conseguimos desenrascar e matámos dois gajos e apanhámos uma mulher que vinha com uma PPSH na mão. O brigadeiro que lá estava nessa altura deu-me uma condecoração, mas castigou-me por ter ido caçar para o mato. Deu-me uma Cruz de Guerra de 1.a classe e três dias de detenção. Nessa operação tivemos para aí umas trinta baixas. Os do PAIGC não se soube bem. Às vezes chegávamos ao mato e encontrávamos carne agarrada às árvores. A artilharia e a aviação bombardeavam. A aviação mandava as bombas e elas rebentavam nas árvores. Havia árvores com cem metros de altura e as bombas não chegavam ao solo. Era uma mata cerrada e também muito pantanosa. Durante quarenta dias as operações foram contínuas, saía uma companhia e entrava outra. Quando o Calvão foi ter comigo, disse-me que queria trabalhar comigo. Tinha ido ao comando-chefe fazer uma requisição para me levar. Disse-me que tinha um trabalho para mim: eu iria para Cabo Verde dar instrução à tropa cabo-verdiana.
Assim, eu e o Rebordão de Brito fomos de helicóptero para uma ilha desabitada da Guiné, nos Bijagós. O Rebordão de Brito perguntou-me o que é que nós estávamos ali a fazer. Disse-lhe para ter calma, porque eu também não sabia de nada. No dia seguinte, encostou lá uma LDM, lancha de desembarque militar, com uns gajos pretos a falarem uma língua que eu não conhecia. No terceiro dia apareceu o Calvão, que me disse para eu os preparar. Eles falavam francês, mas eu não percebia nada de francês e perguntei-lhe: «Como é que eu vou preparar estes gajos se não percebo a língua deles?» Ele então arranjou-me um intérprete, um guineense que vivia no Senegal, Alberto Sanque. Eram homens da Guiné-Conakry. A princípio eram uns trinta, no fim eram já uns quatrocentos. Estivemos lá sete meses, preparámos os homens para a Operação Mar Verde, em Conakry. Os únicos que sabiam daquela operação eram o Alpoim Calvão, o Ruben de Andrade, chefe do estado-maior do comando-chefe, e o Spínola. Eu sabia porque estava dentro do assunto, andei a preparar os homens, sabia que no dia 22 de Novembro íamos actuar em Conakry. A data podia variar, dependendo do tempo que levássemos a preparar os homens. Quem foi para o aeroporto de Conakry foi o tenente Cicri Marques Vieira que, quando lá chegou, não encontrou nenhum MiG. Encontrou quatro Boeing 947, incendiou-os e veio-se embora. O Januário ficou no cruzamento para impedir o avanço dos carros de combate que vinham de Alfaaia. Eu comandava um grupo de cinco homens meus. A informação que me deram foi que o quartel em Conakry onde eu devia entrar era o quartel da tropa que tinha sido especializada na Checoslováquia. Era a tropa da segurança do Sekou Touré. Disseram-me que eram trinta homens.
Mas quando entrei nesse quartel vi que era um regimento, tinham aí uns mil e seiscentos homens. Como já lá estava dentro dei ordem para fazer cair tudo o que aparecesse. Entrei sem arma. Não tinha arma, só tinha uma faca e o cantil da água, porque quando desembarquei do barco para o bote deixei cair a arma no mar. Fui o primeiro a entrar no quartel. Quando cheguei à porta de armas estavam lá quatro pessoas a conversar. Viram-me, avisaram os sentinelas e fecharam o portão. Nós tínhamos um chapéu grande, do tipo daqueles que os americanos usam para não apanharem sol, enfiei o chapéu pela cabeça, mandei uma cabeçada no vidro e entrei pela janela. Caí em cima da mesa do sargento da guarda, ele pôs-se de baixo da mesa e dei-lhe duas punhaladas, matei-o. Depois, dei a volta e fui abrir o portão. Mal entrámos, o corneteiro começou a tocar a corneta e os gajos começaram a aparecer. A partir daí dei ordem para abater tudo o que aparecesse. Ou morríamos ou matávamos. Ao fim de meia hora tomámos conta do quartel. Agarrámos os inimigos e pusemo-los sentados debaixo do pau da bandeira. De manhã, deixei lá três homens, e fomos para a sede da polícia. Entrámos na polícia, estavam lá meia dúzia de homens. O Calvão disse-me, através do rádio, que a emissora ainda estava a emitir. O que se passava era que, afinal, a Guiné-Conakry tinha duas emissoras. Fui para o posto da emissora, rebentei com aquilo e voltei para trás. Passados dez minutos, o Calvão voltou-me a dizer que a emissora ainda estava a emitir. Eu disse-lhe que era impossível. Voltei lá, atirei seis granadas ofensivas e o prédio caiu. Quando cheguei outra vez ao quartel, o Calvão voltou-me a dizer que a emissora estava a emitir: era a emissora de Conakry que o João Maka era para destruir mas teve medo de lá ir.
Depois, peguei no jipe dos gajos, fui com o Martinho e rebentámos a linha do comboio, para não poderem chegar reforços, e voltámos para o quartel. Estivemos lá até às quatro da tarde, os outros embarcaram às cinco da manhã. Nós não soubemos de nada porque o rapaz que ia comigo deixou cair o rádio na água salgada. Estivemos lá até às quatro da tarde e depois apareceu o Rebordão de Brito para nos vir buscar. Fomos num bote que nos levou para o patrulha. Fui o último a sair de Conakry, às quatro da tarde. O objectivo da operação era matar o Sekou Touré e expulsar o PAIGC de Conakry. A operação falhou porque, segundo me disseram, houve alguém que a sabotou. Pagaram a uma pessoa qualquer para sabotar a operação. O João Maka era para ir ao palácio do Sekou Touré. Quando ele desembarcou, à esquerda ficava o cemitério, onde estava o casco de um submarino. O João Maka e um grupo de sessenta homens enfiaram-se dentro do submarino e não saíram de lá. A operação falhou logo. O Amílcar Cabral não estava lá, tinha saído três dias antes.
Combateu em toda a Guiné e tornou-se no mato uma figura lendária. Acha que as forças africanas teriam sido suficientes para garantir a realização de um referendo sobre o destino político do território. Mas que houve a preocupação de desarmar essas tropas especiais. Nunca renunciou à nacionalidade portuguesa.
Depois da operação fiquei com o meu grupo no comando-chefe, em Bissau e Namura. Actuava em toda a Guiné. Estive catorze anos na guerra e nunca gozei uma semana de férias. Não houve nenhuma operação na Guiné em que eu não tivesse entrado. A operação de que mais gostei foi em Cumbamori, 40 quilómetros dentro do Senegal, em 1973. Nesse dia levei seis homens. Entrámos, eles fizeram um U e eu entrei no meio, onde estava o paiol. Quando cheguei ao paiol estavam lá quinze homens de vigia, abafámos os gajos e... acabou. A 3.ª Companhia de Comandos encontrou lá um major pára-quedista, que era engenheiro e que estava a fazer o alcatroamento da estrada que saía de Ziguisori para Tanafe. Os comandos africanos mataram o gajo. Mal o mataram, os outros que lá estavam a trabalhar comunicaram ao batalhão de pára-quedistas e eles avançaram. Mas naquela altura os comandos já tinham retirado. Como eu estava dentro do paiol, eu é que paguei. Nessa operação fizemos 160 mortos e apanhámos 96 toneladas de material. Éramos seis homens, estivemos lá desde as nove da manhã até às seis e meia da tarde. Estávamos dentro do paiol, tínhamos todo o tipo de material e eu, mal soube que eles estavam a avançar, montei todas as metralhadoras pesadas que lá havia, deixámo-los avançar até 40 metros, e depois abrimos fogo de metralhadora ligeira. Conforme os gajos se iam afastando, íamos pegando nas armas pesadas e, quando estávamos do lado de lá da estrada, abrimos fogo. Depois recebemos ordens de que os helicópteros não iam lá buscar o material.
Os homens do PAIGC começaram a perseguir-nos. Mandei os dois gajos à frente a carregar os feridos e eu e mais outro vínhamos atrás. Foi um tiroteio que nunca mais acabava. Pelo caminho fizemos 71 mortos. O Almeida Bruno, o Folques, e outros podem confirmar isto. Quando o PAIGC concentrava uma força numa zona e a tropa ocidental não podia controlar, entrava em contacto connosco. Nós íamos lá e arrasávamos o PAIGC. Esta zona era completamente controlada pelo PAIGC. Nem tropa do Senegal nem ninguém lá ia. A tropa ocidental entrou em contacto connosco e nós fomos lá arrasar o PAIGC.
Quem controlava quase toda a tropa nativa guineense era eu. Tudo o que eu falava eles ouviam. O PAIGC só tinha cerca de 2000 homens e nós tínhamos à volta de 40 000 homens. Cada companhia que estava na Guiné era constituída por uma só etnia, por isso, cada companhia queria mostrar que era melhor do que a outra. Dizem que o PAIGC tinha uma zona libertada na Guiné, mas eu ia para onde queria, com quatro, cinco, seis, sete ou oito homens. Eu tinha um corneteiro e quando chegávamos ao meio do mato eu mandava-o tocar a corneta. Só depois é que íamos para cima do PAIGC. Mandava tocar a corneta para eles verem que eu ia a caminho e que não tinha medo. Cheguei a passar centenas de vezes de helicóptero, com eles a fazerem emboscadas. Na Guiné, no Inverno, o capim tem quatro metros de altura. Eu passava e eles não me emboscavam. Mais tarde apanhei um homem chamado Cassalma que mecontou que o Nino Vieira tinha dado ordens para não me atacarem porque, se me atacassem, eles é que lá ficavam. Nunca mais me atacaram. Uma vez, no Embré, tentaram fazer-me uma emboscada. Nesse dia éramos doze. Tinha ido para lá um batalhão de comandos que não conseguiu entrar e voltou para trás. O general Bethencourt Rodrigues chamou-me e disse-me para eu lá ir. Perguntou-me quando é que eu ia, mas eu disse que isso não dizia. Apareci lá um dia às quatro da tarde, fomos de helicóptero e vimos um grupo do PAIGC a desembarcar material da piroga. Fomos fazer essa operação, apanhámos o material, o helicóptero foi pôr o material a Bissau e voltou. No dia seguinte fomos de bote, com o destacamento 22 dos fuzileiros, e desembarcámos em Embré às seis da manhã. Desde as seis da manhã até à uma e meia da manhã eles fizeram fogo. O capitão pára-quedista Valente dos Santos esteve comigo nesse dia. Apanhámos quatro morteiros 120, três rampas de foguetão 128, nove morteiros 82 e descobrimos um paiol com não sei quantas toneladas de armamento, que incendiámos. Depois éramos para desembarcar em Gadamel Porto, para apanharmos a antiga estrada para Embré. Assim aconteceu. Fizemos essa missão das seis da manhã à uma da manhã. Quem tem medo morre depressa. Foi assim que eu sempre pensei.
Eu gostava mais da guerra de Angola do que da guerra da Guiné. Na Guiné há muitos pântanos e a mata é cerrada, principalmente na zona sul. Na zona sul anda-se um quilómetro em terra seca e andam-se quatro quilómetros com lodo e água até ao peito. Em Angola podia fazer-se o que se queria, mas na Guiné era muito difícil. O que dava cabo dos brancos eram o clima e a água, que não prestava. A maior parte dos brancos que fizeram a tropa na Guiné vieram com o estômago rebentado: a água não prestava, o clima era húmido, havia um calor enorme. Mas, pior do que isso, é que os brancos iam daqui sem conhecer o terreno, sem instrução nenhuma. Eu é que depois andava de batalhão em batalhão a dar o IAO aos homens. O que é que eles deviam fazer, que precauções deviam tomar no mato, etc. Uma vez cheguei a Bolama e encontrei um batalhão de «periquitos» novos. O alferes, quando lhe pus uma granada na mão para lançar, disse-me que nunca tinha lançado uma granada. Dei-lhes instrução, levei-os para o mato para ouvirem as balas do inimigo e as nossas, para verem a diferença. Quando uma bala passava a uns certos metros de altura não era preciso atirar, tinha que se avançar, etc. Andei a dar instrução mais do que um ano, mas ia na mesma para operações.
Eu não tenho razão de queixa do marechal Spínola. Mas pergunto-lhe: se estivesse a trabalhar para o Estado português e de um dia para o outro lhe tirassem a carreira e o entregassem ao seu inimigo? É traição ou não é? Foi o que nos fizeram. Não fizeram nenhum referendo na Guiné. Para além disso, a tropa nativa que lá estava e veio para cá, quando cá chegou teve que requerer nova nacionalidade. Será que o Estado português tinha algum documento onde tivéssemos renunciado à nacionalidade portuguesa? Não, nunca renunciámos à nacionalidade portuguesa. Fomos traídos, abandonados. Eu estava aqui no Regimento de Comandos da Amadora, em 1974, a comandar uma companhia, a 123, e obrigaram-me a pedir a nacionalidade portuguesa. Será que eu era mercenário aqui dentro? Um militar fardado, dentro de uma unidade a comandar uma companhia, a fazer todos os serviços que fossem precisos, e obrigarem-no a requerer a nacionalidade! Mas eu nunca renunciei à nacionalidade portuguesa. Houve um «animal», na Administração Interna, que me disse: «O senhor foi colonizado.» Eu disse: «Eu nunca fui colonizado! Os meus antepassados foram colonizados, mas eu não. Eu nasci numa nação chamada Portugal!» Foi uma injustiça, uma traição. Quantos milhares de pessoas mataram na Guiné depois do 25 de Abril? Foram 7447 mortos, número que nunca houve durante a guerra. Na Guiné, quando a tropa ia para o mato, os pretos é que iam na frente a picar a estrada, quando rebentava uma mina morriam duas ou três pessoas, mas debaixo de fogo era raro alguém morrer. Esses indivíduos que vêm para cá mutilados deviam ter, pelo menos, uma pensão para poderem sobreviver.
Eu vim para cá deitado numa maca, deixei tudo na Guiné. Depois a minha mãe ficou com medo e o PAIGC queimou tudo. Tudo o que o Mário Tomé e o Melo Antunes dizem é mentira. A Guiné tinha as companhias africanas, de comandos africanos, destacamentos de fuzileiros e milícias especiais. Eram vinte e tal companhias que seriam suficientes para assegurar o referendo. Nós não precisávamos do exército branco para montar a segurança, para se fazer o referendo. Mas a única preocupação que o Estado português teve na Guiné foi desarmar o exército africano e entregá-lo ao PAIGC. Se o general Spínola continuasse mais dois anos na Guiné, o PAIGC entregava-se. Aqueles três majores que foram mortos, o Passos Ramos, o Osório e o Pereira da Silva, iam lá buscar armamento. Todas as noites eles iam lá e os homens do PAIGC traziam armas e entregavam-nas ao nosso Exército. Naquele dia foram lá, estavam à espera de um grupo que vinha entregar material, mas encontraram um grupo do André Gomes, que tinha vindo de Jolmeter fazer patrulha e que, sem saberem o que é que se passava, mataram-nos. Depois do André Gomes matar aqueles três majores, o Exército avançou com a guerra. Eu andei quatro dias a seguir as pegadas do André Gomes. Acabei com o acampamento deles, mas não apanhei o André Gomes. Havia um rio, o Cacheu, e eles quando se viam apertados pegavam nas pirogas e fugiam.No dia 25 de Abril estava no mato na fronteira com a Guiné-C,onakry. Tinha ido patrulhar a única base que o PAIGC ainda lá tinha. Fui eu e o meu furriel, disfarçados de enfermeiros, e estivemos lá três dias. O acampamento deles era a onze quilómetros de Conakry. Havia lá centenas de pessoas mutiladas. Quando voltei, ia apanhar o meu grupo que estava em Aldeia Formosa, encontrei o 2.º comandante do batalhão, que era um major de Artilharia, que me perguntou de onde é que eu vinha. Eu respondi que vinha do mato. «Então você anda no mato? Não sabe que a guerra já acabou?», disse-me ele. Eu mandei-o à fava. Mas ao meio-dia, quando estava na messe a comer, ouvi na rádio que o Spínola tinha feito um golpe em Portugal e que a guerra estava suspensa. Quando chegámos a Bissau, eu tinha sido destacado para Bula, desci do carro, houve um soldado meu chamado Mário Dantas, que quando saltou do carro deixou cair duas granadas. As granadas explodiram por baixo dele, ficou sem os dois pés e eu fiquei com 117 estilhaços no corpo. Fui evacuado para Portugal, para o Hospital Militar. Como eu era alferes do Quadro Permanente continuei cá. É mentira aquilo que o tenente-coronel Melo Antunes disse na TVI, nos debates sobre o 25 de Abril. Disse que não se fez um referendo na Guiné porque não havia segurança. Mas na Guiné tínhamos várias companhias de caçadores especiais formadas por nativos e tínhamos ainda um batalhão de comandos com três companhias e dois destacamentos de fuzileiros especiais. Mesmo que não tivéssemos lá tropa branca, as vinte companhias de nativos eram suficientes para assegurar o referendo na Guiné. O PAIGC só entrou dentro da cidade de Bissau depois das tropas dos comandos e fuzileiros serem desarmadas. Quem desarmou os comandos foi o Carlos Fabião. A 15.ª Companhia, em Mansoa, não aceitou o desarmamento. A maioria deles foram fuzilados. 1)


1) - Testemunho oral: Marcelino da Mata. Lisboa, 21 de Julho de 1994. Alferes, nasceu em 1940. Fez várias comissões na Guiné como operacional nos grupos de comandos negros. Foi instrutor das tropas que invadiram a Guiné-Conakry. Estava reformado quando foi entrevistado.



BIBLIOGRAFIA

A Guerra de África (1961 - 1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL VI

terça-feira, 26 de maio de 2009

GUINÉ

GUINÉ

HISTÓRIA DA PROVÍNCIA (ATÉ Á INDEPENDÊNCIA)


O conteúdo deste trabalho foi retirado de um folheto de informação que penso que seja de 1971 publicado pela Agência-Geral do Ultramar.




HISTÓRIA

Em 1446, o navegador Nuno Tristão, que já descobrira o Cabo Branco (1441) e a ilha de Arguim (1443), chega à vista das embocaduras dos rios Gambia, Casamansa, Cacheu e Geba, continuando as viagens de exploração e reconhecimento da costa ocidental de África a que se procedia sob a orientação do Infante D. Henrique. Num local hoje designado como rio Nuno, o descobridor e mais 19 dos seus companheiros de viagem sucumbiram a um ataque dos bijagós.
Nos anos seguintes completava-se, com a realização de outras expedições, o reconhecimento da costa africana até próximo do Golfo da Guiné, ao mesmo tempo que se desenvolviam actividades comerciais desde o Senegal à Serra Leoa.
Um quarto de século depois, a exploração do monopólio real do comércio africano era concedida a um comerciante de Lisboa, de nome Fernão Gomes, com exclusão de uma zona denominada Rios da Guiné, que se reservava ao comércio dos moradores do arquipélago da Cabo Verde desde 1466. Nesta zona, a pouco e pouco, fixaram-se alguns comerciantes, conhecidos sob a designação de «lançados» e considerados por isso os pioneiros da penetração europeia.
Um novo decreto, de 1835, mantinha a divisão em províncias, mas determinava que elas passariam a ser governadas por um governador-geral
que detinha todos os poderes civis e militares, efectuando-se a subdivisão em distritos, de que resultou a separação da Guiné da província de Cabo Verde, passando a constituir o distrito da Guiné. Em 1837 foi nomeado governador do distrito um natural de Cacheu: Honório Pereira Barreto. A este governador se ficou a dever notabilíssima acção no desenvolvimento de uma política de acordos com os régulos ao mesmo tempo que promovia intensa aplicação de medidas administrativas conducentes a um franco entendimento entre os poderes públicos e os autóctones.
Nova alteração se regista a partir de 1842 : a Guiné é dividida em dois distritos destacados - Cacheu e Bissau, ainda que subordinados ao governo de Cabo Verde, decisão revogada em 1851 com a reunificação administrativa.
Em 1870, Ulisses Grant, presidente dos Estados Unidos da América do Norte, em sentença arbitral, reconhecia a Portugal o direito de soberania sobre a ilha de Bolama.
Entretanto, os acontecimentos iam demonstrando a necessidade de dar autonomia administrativa à Guiné. Assim, em 1879, surge a província
ultramarina da Guiné, de que é nomeado governador o coronel Agostinho Coelho. Prossegue até à delimitação das fronteiras a ocupação e pacificação do território, tarefa árdua que demorou alguns anos.
Já no decurso deste século a Guiné principia a caminhar firmemente na senda do progresso e pode dizer-se que, mercê da acção do Estado nos últimos dez anos, a província alcançou assinalada posição no conjunto de territórios nacionais, tornando-se uma realidade incontestável.



GEOGRAFIA

SITUAÇÃO, LIMITES E SUPERFÍCIE - Limitada ao norte pela República do Senegal e a leste e a sul pela República da Guiné, a província portuguesa da Guiné está situada na costa ocidental do continente africano e o seu litoral fica compreendido entre as latitudes 12º 40' N (cabo Roxo) e 15º 52' N (ponta Cacete).
As fronteiras terrestres têm a extensão de cerca de 700 km e as marítimas uns 160 km.
No seu conjunto, a Guiné Portuguesa tem uma superfície de 36 125 km.

COSTAS E ILHAS - Toda a costa da província é baixa e muito recortada, mercê das variadíssimas rias que penetram pelas terras planas. São numerosas as ilhas contíguas à parte continental, como Jeta, Caió, Pecixe, Bissau, Areias, Bolama, Como e Melo. O arquipélago de Bijagós, implantado mais longe, é constituído pelas ilhas de Caravela, Caraxe, Formosa, Ponta, Torre, Maio, Edana, Enú, Eguba, Uracane, Uno, Unhocomo, Unhocomozinho, Orango, Orangozinho, Imbone, Canogo, Meneque, João Vieira, Roxa, Bubaque, Rubane, Galinhas e Soga, e os ilhéus de Cute, Poilão, Meio, Cavalos, Porcos, Anagaru e Papagaios.

RIAS E RIOS - No que diz respeito a cursos de água, pode dividir-se o território da Guiné em duas zonas distintas : a zona litoral e a zona interior.
Pertencem à primeira os antigos cursos de água que, ao serem invadidos pelo mar, dão origem às chamadas rias, de que se salientam, de norte para sul, as de Cacheu, Mansoa, Bissau, Buba (Rio Grande), Tombali, Cumbijã e Cacine.
Assinala-se na zona interior a existência de cursos de água doce, com alguns rápidos e um regime de cheias relacionado com as variações climatéricas: rios Cacheu, Geba, Corubal, etc., todos com numerosíssimos afluentes e subafluentes.

RELEVO - Com excepção de certo número de pequenas zonas do leste da província, na região do Boé, onde os mais elevados contrafortes do Futa Djalon atingem os 300 metros somente, não se encontram na Guiné elevações dignas de registo. A elevação acentua-se muito ligeiramente do litoral para o interior.

CLIMA -Dada a sua situação geográfica, a Guiné tem um clima quente e húmido característico das regiões tropicais, com duas estações bem definidas : a estação seca, compreendida entre meados de Novembro e meados de Maio, e a estação húmida, a que corresponde o restante período do ano.
As temperaturas médias oscilam entre 24º e 28º e a pluviosidade anual é superior a 2000 mm. Os meses mais frescos são Dezembro e Janeiro, e os mais chuvosos Julho e Agosto.

FLORA E FAUNA - Participam das variedades do domínio vegetal do Sudão o variado número de espécies autóctones da província portuguesa da Guiné,
registando-se larga representação das espécies lenhosas, arbustivas, trepadeiras e herbáceas, além de algas, fungos e líquenes; após a descoberta do território, foram ali introduzidas numerosas espécies de origem indo-europeia e americana.
Existe uma zona de terras alagadas (flora dos pântanos e mangais) e outra de áreas enxutas (florestas, palmares e savanas, estas na região do interior).
A fauna é rica e variada, constituída, principalmente, pelo hipopótamo, o búfalo, o leopardo, a hiena, o cão-do-mato, o gato-bravo, a lontra, o antílope, o porco-espinho, o chimpanzé e a lebre, além de variadíssimas aves e de répteis temíveis, como serpentes surucucu e cuspideira e o crocodilo.

POPULAÇÃO - A população da Guiné, segundo os resultados provisórios do censo de 1970, é de 487 448 habitantes, portanto, com uma densidade populacional aproximada de 14 habitantes por quilómetro quadrado.
É caracterizada por uma grande diversidade étnica sendo a população autóctone formada por balantas, fulas, manjacos, mandingas, papéis, brames, biafadas, bijagós, felupes, balantas-mané, nalus, etc.
Os principais centros populacionais são as cidades de Bissau, a capital, (62 101 habitantes), Bafatá (27 948) e Bolama (6519) e as vilas de Teixeira Pinto (34 400), Nova Lamego (22 745), Mansoa (15 503) e Bissorã (7603).



COMUNICAÇÕES

VIA AÉREA - As comunicações aéreas entre a Guiné e a Metrópole fazem-se através das linhas dos Transportes Aéreos Portugueses (TAP). Entre Bissau e diversos pontos da província efectuam-se carreiras regulares, para o transporte de passageiros, correio e carga ligeira.
O aeródromo internacional é o de Bissau e para as linhas internas existem os seguintes aeródromos: Bolama, Bafatá, Nova Lamego, Farim, Varela, Teixeira Pinto, Catió e Bubaque. Há ainda numerosos aeródromos secundários e pistas de aterragem.


VIA MARÍTIMA - Bissau, Bolama e Binta são os principais portos abertos à navegação da Guiné. Bissau tem grande importância na cabotagem e, em face da sua situação central, regista a maior parte do movimento de importação e exportação da província, encontrando-se por isso convenientemente apetrechado para a navegação de longo curso.
O porto de Bolama é escalado por navios que estabelecem ligações com Bissau, Cacine e Bubaque. Binta, o segundo porto da província em movimento, situa-se num troço do rio Cacheu, entre Barro e Farim, dispondo de boas condições de abrigo e acostagem.
Com os seus 200 quilómetros de rias e 950 de rios e canais, onde existem outros pequenos portos secundários, a província da Guiné possui uma navegação muito intensa.
VIA TERRESTRE - É superior a 3 160 quilómetros a extensão total da rede de estradas, que inclui estradas de 1ª, 2ª e 3ª classes e os caminhos. São consideradas internacionais as estradas que ligam Bissau a Varela e a Buruntuma, e ainda a que liga Enchudé a Catió.
Entre diversas localidades da província, há numerosas carreiras regulares de autocarros.
OUTRAS COMUNICAÇÕES - Além da rede telefónica, a Guiné conta com 27 estações telegráficas (V.H.F. e H.F.) para o serviço interno e para o exterior.



EDUCAÇÃO E ENSINO

GENERALIDADES - As funções de direcção e de inspecção das actividades de natureza cultural e pedagógica são desem­penhadas na Guiné pela Repartição Provincial dos Serviços de Educação. Para apoio daquelas actividades conta este departa­mento com o Conselho Pedagógico e o Conselho Coordena­dor e Orientador do Ensino Agrícola. Ao primeiro órgão compete especialmente estudar os problemas respeitantes à coordenação geral do ensino, sua harmonização com os interesses sociais e a sua actualização como factor de desenvolvi­mento integral; ao segundo, compete não só a difusão do ensino agrícola, mas também a elaboração de normas que lhe elevem a qualidade e o rendimento.
O Conselho Provincial de Educação Física orienta e disciplina toda a actividade gimnodesportiva com exclusão da escolar a qual depende da M.P. e da M.P.F.
Na Guiné, salvo os casos especiais dos ensinos superior e médio (este com características pré-universitárias), existem os mesmos graus de ensino que no Portugal europeu. Na realidade assim acontece, pois, ao cuidado do Estado, das Missões Católicas e dos particulares, encontram-se distribuídos por toda a Província estabelecimentos de ensino infantil, primário, secundário (preparatório, liceal, técnico-profissional e normal), profissional elementar ou de artes e ofícios, eclesiástico e de formação profissional especializada.
No ano lectivo de 1970-71, existia na Província um total de 810 institutos de educação e ensino das modalidades acima referidas, com 1413 professores para 44 122 alunos.

ENSINO PRIMÁRIO - As crianças dos 6 aos 12 anos são obrigadas a frequentar o ensino primário elementar, ministrado gratuitamente, de forma idêntica ao que se encontra em vigor na Metrópole, com as necessárias adaptações. Existem para esse fim postos escolares e escolas primárias e há quatro classes, precedidas de uma outra pré-primária. Não cessa de ser aumentado o quadro do professorado primário, procurando-se corresponder com eficiência ao sucessivo crescimento da população escolar.
O ensino primário para adultos ministra-se em cursos vespertinos e nocturnos.

ENSINO SECUNDÁRIO - Além do ciclo preparatório do ensino secundário, incluído na escolaridade básica obrigatória, o ensino secundário apresenta dois grandes ramos : o liceal, ou clássico, e o técnico profissional. O ciclo preparatório, frequentado por cerca de 2000 alunos, ministra-se na Escola Preparatória do Ensino Secundário Marechal Carmona, em Bissau. O ensino liceal é ministrado no Liceu de Honório Barreto; e o ensino técnico profissional secundário (formação feminina, comercial, industrial e agrícola) é dado na Escola Industrial e Comercial de Bissau.
Existe ainda um externato em Teixeira Pinto que ministra o ciclo preparatório e, em Bolama, uma escola de habilitação de professores de posto escolar.

OUTRAS MODALIDADES - No Hospital Central de Bissau existe uma escola técnica dos Serviços de Saúde. O ensino estranho ao plano oficial está representado pelas escolas muçulmanas.

BOLSAS DE ESTUDO - Funciona na Guiné uma Comissão Provincial de Bolsas de Estudo, através da qual são concedidas bolsas, subsídios, viagens e alojamento para frequência de estabelecimentos de ensino médio e superior na Metrópole e ensino secundário na própria Província

.

SAÚDE E ASSISTÊNCIA

ORGANIZAÇÃO GERAL - É sob a orientação técnica de uma repartição provincial que são exercidos os Serviços de Saúde e Assistência da Guiné, salientando-se, da sua acção constante em defesa das populações, a protecção à maternidade, a diminuição da mortalidade infantil, o impedimento da propagação das doenças, especialmente as endémicas e a luta permanente contra as consequências sociais dos flagelos.
O território da província está dividido em 10 delegacias de saúde : Bissau, Bolama, Bissorã, Catió, Teixeira Pinto, Bafatá, Nova Lamego, S. Domingos, Farim e Bubaque. Além dos estabelecimentos sanitários existentes nas sedes das delegacias (hospitais), existem, espalhados pelas respectivas áreas, postos sanitários, maternidades e dispensários.
Ultrapassou fronteiras a qualidade dos serviços prestados pela assistência médica pois contam-se por milhares os habitantes dos países limítrofes que anualmente procuram as formações sanitárias portuguesas.

SERVIÇOS ESPECIAIS - Existem os serviços de Assistência à Mulher Grávida e à Criança, e o de Combate à Tuberculose, e ainda a Missão de Combate às Tripanossomíases, que possui carácter autónomo e permanente, sob o ponto de vista técnico e administrativo, e dispõe de numeroso pessoal especializado e de tabancas-enfermarias em quase todos os seus sectores, além de um hospital-granja para leprosos em Cumura, cuja missão relevante é a prospecção e o tratamento da lepra em toda a província.

FORMAÇÕES EXISTENTES - Estende-se também a todos os recantos da província da Guiné a rede sanitária, que compreende : o Hospital Central de Bissau, os hospitais regionais de Bolama, Cacheu e Bafatá, hospitais rurais, postos sanitários e postos de socorros, maternidades regionais e maternidades rurais.
Além de numerosas especialidades, convenientemente dotadas, o Hospital Central de Bissau, estabelecimento hospitalar policlínico, compreende os serviços de medicina e cirurgia geral, com todo o equipamento e pessoal adequado. Os hospitais regionais são pequenas unidades hospitalares convenientemente apetrechadas para o bom desempenho da sua missão. No interior da província estão a ser continuamente edificados novos postos sanitári desenvolvida pelos dispensários de puericultura, que assim completam a acção das maternidades.

ACTUAÇÃO DOS SERVIÇOS - A actividade dos serviços de saúde da província está expressa nos seguintes números referidos a 1969 : 517 974 tratamentos, 584 742 injecções, 6 349 intervenções cirúrgicas, 496 066 vacinações (inclui as vacinações contra a cólera), 33 362 exames laboratoriais, 6 971 radiografias e radioscopias. Os hospitais da província registaram 9 332 doentes internados.
Não estão incluídos nestes números, já de si muito expressivos quanto à importância dos serviços, os quantitativos referentes à Assistência à Mulher grávida e à Criança, ao Combate à Tuberculose, e à Missão de Combate às Tripanossomíases.



ECONOMIA

AGRICULTURA - Para que se verifique indispensável aumento de produção, intensificam-se os esforços na exploração de todo o território útil, com base na consolidação duma estrutura agrária, visto toda a actual feição económica da província ser caracteristicamente agrícola.
Embora se explore a palmeira-do-azeite, de que se extrai o óleo de palma e de coconote, na agricultura da Guiné tem especial preponderância a cultura do arroz e do amendoim, seguindo-se-lhe o milho, a mandioca, a batata-doce, a cana-de-açúcar, a bananeira, etc., e ainda da sumaúma, do gergelim e da purgueira, com vista à exportação, registando-se activa produção de variedades hortícolas, nomeadamente tomate e pimentos.
A produção de madeiras é muito importante, o que se deve às grandes áreas cobertas de florestas, das quais se destacam, os palmares de Bijagós e Cacheu, os povoamentos halófilos dos estuários dos rios, canais e braços de mar na faixa sub litoral do continente e as concentrações florestais de grande parte dos concelhos de Mansoa, Catió e Bafatá e da circunscrição de Fulacunda.

PECUÁRIA - A riqueza pecuária da Guiné coloca esta província ultramarina à frente das nossas parcelas territoriais e esse facto deve-se às condições que apresenta para uma exploração racional e intensiva que tem assim grande importância na sua economia.
Segundo o Recenseamento Pecuário há na Guiné mais de 230 286 cabeças de gado bovino, seguindo-se-lhe em importância o gado caprino (143 712), o suíno (98 206), o ovino (53 859) e o asinino.
O cruzamento com reprodutores seleccionados e as medidas de defesa e combate contra as doenças dominantes têm permitido executar um vasto plano de ocupação pecuária, de muito bons resultados.
PESCA - Desenvolve-se grande actividade piscatória na província, onde existem zonas muito ricas em peixe, designadamente nas águas dos estuários. Abundam as tainhas, corvinas, cações, barbos, garoupas, linguados, pargos, raias, tubarões e alguns crustáceos e moluscos.
O potencial das zonas marítimas permite assegurar o consumo interno e já é de valores muito elevados o comércio externo deste sector.

INDÚSTRIA - Embora a província da Guiné tenha, como se disse, um carácter essencialmente agrícola, existem instaladas e em plena laboração algumas indústrias, como sejam a de serração de madeiras,
descasque de arroz e amendoim, extracção de óleos vegetais, farinação de peixe, fabrico de gelo, de refrigerantes, de sabões, de telhas e tijolos, etc. Há também fundição de metais e estaleiros para construção naval, de que se destacam dois na cidade de Bissau. Continuam a efectuar-se estudos para a instalação de novas unidades industriais. Na periferia da capital há grandes instalações petrolíferas, com fabrico de "bidons" e uma vasta rede distribuidora.
Estão em curso prospecções de petróleo em certas zonas da província.

ENERGIA - A energia eléctrica consumida na Guiné em 1969 foi proveniente de 54 centrais térmicas, com uma potência total de 5808 Kwa. Parte desta energia destinou-se à iluminação pública, outra a iluminação particular e a restante à produção de força motriz.

COMÉRCIO EXTERNO - Os produtos que a província mais importa são : o ferro e o aço em obra, os cimentos, os veículos automóveis, os petróleos refinados, os tecidos, os medicamentos, etc. A maior parte das importações são provenientes dos restantes territórios nacionais.
O amendoim, o coconote, a cera, os couros e as madeiras em bruto ou serradas são os produtos mais exportados, destinando-se mais de 90 por cento do total exportado para o espaço económico português e o restante para a Alemanha Ocidental e a Holanda.
Não obstante as grandes obras de fomento, que implicam o emprego de verbas muito elevadas, nota-se que há um perfeito equilíbrio na balança de pagamentos, embora exista défice na balança comercial.
As importações da Guiné, em 1970, foram de 88 026 toneladas no valor de 786 035 contos e as exportações totalizaram 28 346 toneladas valendo 89 814 contos.



GOVERNO E ADMINISTRAÇÃO

DIPLOMAS FUNDAMENTAIS - Além da Constituição Política da República Portuguesa, encontram-se em vigor os diplomas fundamentais seguintes : Lei Orgânica do Ultramar (nova publicação feita pela Portaria no 19 921, de 27 de Junho de 1963) e Estatuto Político-Administrativo da Província da Guiné, de 22 de Novembro de 1963.

ÓRGÃOS DE GOVERNO - São órgãos de governo próprios da província, o Governador, o Conselho Legislativo e o Conselho de Governo. O Governador, que pode ser assistido por um secretário-geral, exerce funções legislativas e funções executivas. O Conselho Legislativo é constituído por vogais natos e vogais eleitos. O Conselho de Governo tem atribuições consultivas. ADMINISTRAÇÃO PROVINCIAL - Os serviços de administração provincial compreendem, além da repartição de gabinete, as repartições provinciais de serviços, os serviços autónomos, as divisões de serviços integrados em serviços nacionais, e outros serviços dotados de organização especial.
As repartições provinciais de serviços são as de Administração Civil, Agricultura e Florestas, Alfândegas, Economia e Estatística Geral, Educação, Fazenda e Contabilidade, Geográficos e Cadastrais, Marinha, Obras Públicas, Portos e Transportes, Saúde e Assistência, e Veterinária.
A organização dos serviços públicos baseia-se, em princípio, na divisão administrativa.

DIVISÃO ADMINISTRATIVA - 0 território da província divide-se nos concelhos e circunscrições seguintes : concelhos de Bissau, Bissorã, Bolama, Bafatá, Catió, Gabu, Mansoa, Farim, Bula e Cacheu; e circunscrições de Bijagós, Fulacunda e S. Domingos.
Os concelhos e circunscrições formam-se de freguesias e de postos administrativos.
A capital da província é a cidade de Bissau.

DIVISÃO JUDICIAL - A província da Guiné constitui uma comarca do distrito judicial de Lisboa. A sede da comarca está instalada em Bissau, correspondendo, em princípio, um julgado municipal a cada um dos concelhos e circunscrições.

IVISÃO ECLESIÁSTICA - Sob o ponto de vista católico, a Guiné constitui uma Prefeitura Apostólica, que compreende os arciprestados de Bissau, Cumura e Bafatá. Cada arciprestado contém paróquias, missões e estações missionárias.
Na Guiné, os islamitas são mais numerosos do que os cristãos.