quarta-feira, 27 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

MARCELINO DA MATA

Lenda do Guerreiro

Fez denodadamente a guerra partindo da noção de que quem tinha medo morria depressa e movimentava-se à vontade no complexo território da Guiné. O alferes Marcelino da Mata, um supermedalhado do Exército, detentor da Torre e Espada, comandou grupos especiais de negros em múltiplas acções de combate e destaca o esforço desses homens, que se sentiam portugueses. Foi um dos expedicionários a Conakry. Veio para Lisboa numa maca. Voluntariou-se para os comandos e depois formou um grupo especial que actuava de forma independente. Alpoim Calvão encarregou-o de uma missão: treinar os invasores de Conakry. Mas os principais objectivos da operação, executada em 22 de Novembro de 1970, não foram atingidos.
O PAIGC fez mal à minha família, por razões políticas, e entrei para o Exército português na Guiné no dia 3 de Janeiro de 1960. Fiz a recruta de cinco meses e depois tirei a especialidade em quatro meses. Era condutor-auto. Na recruta éramos três naturais da Guiné. Começámos a actuar. A primeira operação que fiz foi com um batalhão de açorianos, o Batalhão 356. Tínhamos duas companhias operacionais de caçadores, a 76 e a 91. Eu fui para lá como operacional e intérprete, porque falo sete dialectos da Guiné, mas na altura ainda não tinha tirado o curso de comando. Fomos para a zona sul, que é uma zona balanta e, como eu falava balanta, levaram-me como intérprete. Estivemos lá dois meses. Quando voltei fui integrado na 2.a Repartição, o Serviço de Informação Militar. Fui para lá mandado pelo major José Maria Carvalho Teixeira. Como esse major precisava de um intérprete mandou-me chamar e fui como condutor dele. O Carvalho Teixeira veio-se embora e foi para lá um outro ma jor, de Artilharia, que tinha a mania que era bom. Chateei-me e vim-me embora. Foi aí que me ofereci para os comandos. Fiz o curso de comandos, que durou nove meses. Quando acabámos o curso, a primeira operação que fizemos foi no Morés. Fomos lá dar porrada aos gajos. O objectivo era destruir o acampamento e apanhar inimigos. Nessa primeira actuação, em que participaram o Alves Ribeiro e o Saraiva, fizemos sete mortos e capturámos três homens e material de guerra. A partir daí comecei a actuar. A guerra na Guiné fazia-se assim: destruíamos os acampamentos, apanhávamos os gajos e o material. O nosso comandante era o Leonel Sousa Saraiva e quem comandava os comandos era o tenente-coronel Dinis, que já morreu. Fizemos várias operações com esse grupo e formaram-se depois mais quatro grupos. O meu comandante passou a ser um tenente chamado Pombo, que era filho de um general ou brigadeiro que na altura era o comandante militar de Moçambique. Este Pombo era da artilharia antiaérea e ofereceu-se para os comandos.
Depois foi para lá um alferes, natural do Porto. Não me dei com esse alferes por causa de uma rapariga mancanha chamada Cecília. O alferes andava atrás desta rapariga mas a rapariga não gostava dele, gostava de mim. Como ele era alferes e eu era cabo, quando havia qualquer coisa ele carregava sempre em cima de mim. Chateei-me e saí dos comandos. Fui para Farim, no Norte, falei com o 2.° comandante, o tenente-coronel Agostinho Freire, do Batalhão 1887. Pedi-lhe para me deixar formar um grupo especial. Na altura, a aviação não ia a Farim, a coluna não se fazia, os barcos também não iam lá. Estava tudo bloqueado e o povo tinha fome. Eu formei o grupo, instruí os homens e começámos a actuar. Consegui abrir a estrada para Mansabá, afastei o inimigo e os barcos começaram a atirar. Quando chegou a época do cultivo, abrimos o outro lado do rio, o povo atravessou o rio e começou a cultivar. Na altura, o PAIGC estava a dois quilómetros de Farim. Afastei os gajos todos. Actuava, no máximo, com oito homens. Quando não sabia onde eram os acampamentos, ia até à fronteira do Senegal com uma farda do PAIGC e uma bolsa de enfermeiro, entrava numa povoação e dizia: «Venho do Senegal, sou enfermeiro e fui mandado para a zona tal.» E eles encaminhavam-me até ao acampamento. Chegava ao acampamento, ficava por lá dois ou três dias, tratava dos homens, dava injecções. Às cinco ou sete horas da noite ia-me embora e apanhava o meu grupo. Às cinco da manhã já estávamos em cima deles. Depois, o coronel Rafael Durão, pára-quedista, pediu-me para ir para Teixeira Pinto comandar um grupo da 16.' Companhia de Comandos, comandada pelo Duarte de Almeida, aquele tenente-coronel que foi morto. Quando lá cheguei pedi ao coronel que me deixasse independente, para que o meu grupo pudesse trabalhar à vontade, e ele disse-me que sim. Peguei no grupo, dei-lhes mais um bocado de instrução e comecei a actuar sozinho. Depois fui destacado, com esse grupo, para proteger as colunas que iam a São Vicente levar géneros.
Um dia à tarde, no ano de 1970, aterrou de avioneta o Alpoim Calvão. Disse-me que tinha andado à minha procura e que, afinal, eu estava ali escondido. Eu disse-lhe que não estava escondido, que estava a comandar um grupo de brancos. Eu tinha conhecido o Calvão na operação que fizemos na ilha de Combo, onde estivemos 75 dias. A ilha de Combo estava totalmente ocupada pelo PAIGC. Conseguimos limpar a ilha toda, até deixámos lá ficar uma companhia de caçadores. Tivemos algumas baixas, mas limpámos a ilha toda. O Calvão tinha um segundo comandante, um cabo, que era o imediato e era um maluco. Iamos os dois pela mata e caçávamos javalis e gazelas. Um dia tivemos uma emboscada, mas lá nos conseguimos desenrascar e matámos dois gajos e apanhámos uma mulher que vinha com uma PPSH na mão. O brigadeiro que lá estava nessa altura deu-me uma condecoração, mas castigou-me por ter ido caçar para o mato. Deu-me uma Cruz de Guerra de 1.a classe e três dias de detenção. Nessa operação tivemos para aí umas trinta baixas. Os do PAIGC não se soube bem. Às vezes chegávamos ao mato e encontrávamos carne agarrada às árvores. A artilharia e a aviação bombardeavam. A aviação mandava as bombas e elas rebentavam nas árvores. Havia árvores com cem metros de altura e as bombas não chegavam ao solo. Era uma mata cerrada e também muito pantanosa. Durante quarenta dias as operações foram contínuas, saía uma companhia e entrava outra. Quando o Calvão foi ter comigo, disse-me que queria trabalhar comigo. Tinha ido ao comando-chefe fazer uma requisição para me levar. Disse-me que tinha um trabalho para mim: eu iria para Cabo Verde dar instrução à tropa cabo-verdiana.
Assim, eu e o Rebordão de Brito fomos de helicóptero para uma ilha desabitada da Guiné, nos Bijagós. O Rebordão de Brito perguntou-me o que é que nós estávamos ali a fazer. Disse-lhe para ter calma, porque eu também não sabia de nada. No dia seguinte, encostou lá uma LDM, lancha de desembarque militar, com uns gajos pretos a falarem uma língua que eu não conhecia. No terceiro dia apareceu o Calvão, que me disse para eu os preparar. Eles falavam francês, mas eu não percebia nada de francês e perguntei-lhe: «Como é que eu vou preparar estes gajos se não percebo a língua deles?» Ele então arranjou-me um intérprete, um guineense que vivia no Senegal, Alberto Sanque. Eram homens da Guiné-Conakry. A princípio eram uns trinta, no fim eram já uns quatrocentos. Estivemos lá sete meses, preparámos os homens para a Operação Mar Verde, em Conakry. Os únicos que sabiam daquela operação eram o Alpoim Calvão, o Ruben de Andrade, chefe do estado-maior do comando-chefe, e o Spínola. Eu sabia porque estava dentro do assunto, andei a preparar os homens, sabia que no dia 22 de Novembro íamos actuar em Conakry. A data podia variar, dependendo do tempo que levássemos a preparar os homens. Quem foi para o aeroporto de Conakry foi o tenente Cicri Marques Vieira que, quando lá chegou, não encontrou nenhum MiG. Encontrou quatro Boeing 947, incendiou-os e veio-se embora. O Januário ficou no cruzamento para impedir o avanço dos carros de combate que vinham de Alfaaia. Eu comandava um grupo de cinco homens meus. A informação que me deram foi que o quartel em Conakry onde eu devia entrar era o quartel da tropa que tinha sido especializada na Checoslováquia. Era a tropa da segurança do Sekou Touré. Disseram-me que eram trinta homens.
Mas quando entrei nesse quartel vi que era um regimento, tinham aí uns mil e seiscentos homens. Como já lá estava dentro dei ordem para fazer cair tudo o que aparecesse. Entrei sem arma. Não tinha arma, só tinha uma faca e o cantil da água, porque quando desembarquei do barco para o bote deixei cair a arma no mar. Fui o primeiro a entrar no quartel. Quando cheguei à porta de armas estavam lá quatro pessoas a conversar. Viram-me, avisaram os sentinelas e fecharam o portão. Nós tínhamos um chapéu grande, do tipo daqueles que os americanos usam para não apanharem sol, enfiei o chapéu pela cabeça, mandei uma cabeçada no vidro e entrei pela janela. Caí em cima da mesa do sargento da guarda, ele pôs-se de baixo da mesa e dei-lhe duas punhaladas, matei-o. Depois, dei a volta e fui abrir o portão. Mal entrámos, o corneteiro começou a tocar a corneta e os gajos começaram a aparecer. A partir daí dei ordem para abater tudo o que aparecesse. Ou morríamos ou matávamos. Ao fim de meia hora tomámos conta do quartel. Agarrámos os inimigos e pusemo-los sentados debaixo do pau da bandeira. De manhã, deixei lá três homens, e fomos para a sede da polícia. Entrámos na polícia, estavam lá meia dúzia de homens. O Calvão disse-me, através do rádio, que a emissora ainda estava a emitir. O que se passava era que, afinal, a Guiné-Conakry tinha duas emissoras. Fui para o posto da emissora, rebentei com aquilo e voltei para trás. Passados dez minutos, o Calvão voltou-me a dizer que a emissora ainda estava a emitir. Eu disse-lhe que era impossível. Voltei lá, atirei seis granadas ofensivas e o prédio caiu. Quando cheguei outra vez ao quartel, o Calvão voltou-me a dizer que a emissora estava a emitir: era a emissora de Conakry que o João Maka era para destruir mas teve medo de lá ir.
Depois, peguei no jipe dos gajos, fui com o Martinho e rebentámos a linha do comboio, para não poderem chegar reforços, e voltámos para o quartel. Estivemos lá até às quatro da tarde, os outros embarcaram às cinco da manhã. Nós não soubemos de nada porque o rapaz que ia comigo deixou cair o rádio na água salgada. Estivemos lá até às quatro da tarde e depois apareceu o Rebordão de Brito para nos vir buscar. Fomos num bote que nos levou para o patrulha. Fui o último a sair de Conakry, às quatro da tarde. O objectivo da operação era matar o Sekou Touré e expulsar o PAIGC de Conakry. A operação falhou porque, segundo me disseram, houve alguém que a sabotou. Pagaram a uma pessoa qualquer para sabotar a operação. O João Maka era para ir ao palácio do Sekou Touré. Quando ele desembarcou, à esquerda ficava o cemitério, onde estava o casco de um submarino. O João Maka e um grupo de sessenta homens enfiaram-se dentro do submarino e não saíram de lá. A operação falhou logo. O Amílcar Cabral não estava lá, tinha saído três dias antes.
Combateu em toda a Guiné e tornou-se no mato uma figura lendária. Acha que as forças africanas teriam sido suficientes para garantir a realização de um referendo sobre o destino político do território. Mas que houve a preocupação de desarmar essas tropas especiais. Nunca renunciou à nacionalidade portuguesa.
Depois da operação fiquei com o meu grupo no comando-chefe, em Bissau e Namura. Actuava em toda a Guiné. Estive catorze anos na guerra e nunca gozei uma semana de férias. Não houve nenhuma operação na Guiné em que eu não tivesse entrado. A operação de que mais gostei foi em Cumbamori, 40 quilómetros dentro do Senegal, em 1973. Nesse dia levei seis homens. Entrámos, eles fizeram um U e eu entrei no meio, onde estava o paiol. Quando cheguei ao paiol estavam lá quinze homens de vigia, abafámos os gajos e... acabou. A 3.ª Companhia de Comandos encontrou lá um major pára-quedista, que era engenheiro e que estava a fazer o alcatroamento da estrada que saía de Ziguisori para Tanafe. Os comandos africanos mataram o gajo. Mal o mataram, os outros que lá estavam a trabalhar comunicaram ao batalhão de pára-quedistas e eles avançaram. Mas naquela altura os comandos já tinham retirado. Como eu estava dentro do paiol, eu é que paguei. Nessa operação fizemos 160 mortos e apanhámos 96 toneladas de material. Éramos seis homens, estivemos lá desde as nove da manhã até às seis e meia da tarde. Estávamos dentro do paiol, tínhamos todo o tipo de material e eu, mal soube que eles estavam a avançar, montei todas as metralhadoras pesadas que lá havia, deixámo-los avançar até 40 metros, e depois abrimos fogo de metralhadora ligeira. Conforme os gajos se iam afastando, íamos pegando nas armas pesadas e, quando estávamos do lado de lá da estrada, abrimos fogo. Depois recebemos ordens de que os helicópteros não iam lá buscar o material.
Os homens do PAIGC começaram a perseguir-nos. Mandei os dois gajos à frente a carregar os feridos e eu e mais outro vínhamos atrás. Foi um tiroteio que nunca mais acabava. Pelo caminho fizemos 71 mortos. O Almeida Bruno, o Folques, e outros podem confirmar isto. Quando o PAIGC concentrava uma força numa zona e a tropa ocidental não podia controlar, entrava em contacto connosco. Nós íamos lá e arrasávamos o PAIGC. Esta zona era completamente controlada pelo PAIGC. Nem tropa do Senegal nem ninguém lá ia. A tropa ocidental entrou em contacto connosco e nós fomos lá arrasar o PAIGC.
Quem controlava quase toda a tropa nativa guineense era eu. Tudo o que eu falava eles ouviam. O PAIGC só tinha cerca de 2000 homens e nós tínhamos à volta de 40 000 homens. Cada companhia que estava na Guiné era constituída por uma só etnia, por isso, cada companhia queria mostrar que era melhor do que a outra. Dizem que o PAIGC tinha uma zona libertada na Guiné, mas eu ia para onde queria, com quatro, cinco, seis, sete ou oito homens. Eu tinha um corneteiro e quando chegávamos ao meio do mato eu mandava-o tocar a corneta. Só depois é que íamos para cima do PAIGC. Mandava tocar a corneta para eles verem que eu ia a caminho e que não tinha medo. Cheguei a passar centenas de vezes de helicóptero, com eles a fazerem emboscadas. Na Guiné, no Inverno, o capim tem quatro metros de altura. Eu passava e eles não me emboscavam. Mais tarde apanhei um homem chamado Cassalma que mecontou que o Nino Vieira tinha dado ordens para não me atacarem porque, se me atacassem, eles é que lá ficavam. Nunca mais me atacaram. Uma vez, no Embré, tentaram fazer-me uma emboscada. Nesse dia éramos doze. Tinha ido para lá um batalhão de comandos que não conseguiu entrar e voltou para trás. O general Bethencourt Rodrigues chamou-me e disse-me para eu lá ir. Perguntou-me quando é que eu ia, mas eu disse que isso não dizia. Apareci lá um dia às quatro da tarde, fomos de helicóptero e vimos um grupo do PAIGC a desembarcar material da piroga. Fomos fazer essa operação, apanhámos o material, o helicóptero foi pôr o material a Bissau e voltou. No dia seguinte fomos de bote, com o destacamento 22 dos fuzileiros, e desembarcámos em Embré às seis da manhã. Desde as seis da manhã até à uma e meia da manhã eles fizeram fogo. O capitão pára-quedista Valente dos Santos esteve comigo nesse dia. Apanhámos quatro morteiros 120, três rampas de foguetão 128, nove morteiros 82 e descobrimos um paiol com não sei quantas toneladas de armamento, que incendiámos. Depois éramos para desembarcar em Gadamel Porto, para apanharmos a antiga estrada para Embré. Assim aconteceu. Fizemos essa missão das seis da manhã à uma da manhã. Quem tem medo morre depressa. Foi assim que eu sempre pensei.
Eu gostava mais da guerra de Angola do que da guerra da Guiné. Na Guiné há muitos pântanos e a mata é cerrada, principalmente na zona sul. Na zona sul anda-se um quilómetro em terra seca e andam-se quatro quilómetros com lodo e água até ao peito. Em Angola podia fazer-se o que se queria, mas na Guiné era muito difícil. O que dava cabo dos brancos eram o clima e a água, que não prestava. A maior parte dos brancos que fizeram a tropa na Guiné vieram com o estômago rebentado: a água não prestava, o clima era húmido, havia um calor enorme. Mas, pior do que isso, é que os brancos iam daqui sem conhecer o terreno, sem instrução nenhuma. Eu é que depois andava de batalhão em batalhão a dar o IAO aos homens. O que é que eles deviam fazer, que precauções deviam tomar no mato, etc. Uma vez cheguei a Bolama e encontrei um batalhão de «periquitos» novos. O alferes, quando lhe pus uma granada na mão para lançar, disse-me que nunca tinha lançado uma granada. Dei-lhes instrução, levei-os para o mato para ouvirem as balas do inimigo e as nossas, para verem a diferença. Quando uma bala passava a uns certos metros de altura não era preciso atirar, tinha que se avançar, etc. Andei a dar instrução mais do que um ano, mas ia na mesma para operações.
Eu não tenho razão de queixa do marechal Spínola. Mas pergunto-lhe: se estivesse a trabalhar para o Estado português e de um dia para o outro lhe tirassem a carreira e o entregassem ao seu inimigo? É traição ou não é? Foi o que nos fizeram. Não fizeram nenhum referendo na Guiné. Para além disso, a tropa nativa que lá estava e veio para cá, quando cá chegou teve que requerer nova nacionalidade. Será que o Estado português tinha algum documento onde tivéssemos renunciado à nacionalidade portuguesa? Não, nunca renunciámos à nacionalidade portuguesa. Fomos traídos, abandonados. Eu estava aqui no Regimento de Comandos da Amadora, em 1974, a comandar uma companhia, a 123, e obrigaram-me a pedir a nacionalidade portuguesa. Será que eu era mercenário aqui dentro? Um militar fardado, dentro de uma unidade a comandar uma companhia, a fazer todos os serviços que fossem precisos, e obrigarem-no a requerer a nacionalidade! Mas eu nunca renunciei à nacionalidade portuguesa. Houve um «animal», na Administração Interna, que me disse: «O senhor foi colonizado.» Eu disse: «Eu nunca fui colonizado! Os meus antepassados foram colonizados, mas eu não. Eu nasci numa nação chamada Portugal!» Foi uma injustiça, uma traição. Quantos milhares de pessoas mataram na Guiné depois do 25 de Abril? Foram 7447 mortos, número que nunca houve durante a guerra. Na Guiné, quando a tropa ia para o mato, os pretos é que iam na frente a picar a estrada, quando rebentava uma mina morriam duas ou três pessoas, mas debaixo de fogo era raro alguém morrer. Esses indivíduos que vêm para cá mutilados deviam ter, pelo menos, uma pensão para poderem sobreviver.
Eu vim para cá deitado numa maca, deixei tudo na Guiné. Depois a minha mãe ficou com medo e o PAIGC queimou tudo. Tudo o que o Mário Tomé e o Melo Antunes dizem é mentira. A Guiné tinha as companhias africanas, de comandos africanos, destacamentos de fuzileiros e milícias especiais. Eram vinte e tal companhias que seriam suficientes para assegurar o referendo. Nós não precisávamos do exército branco para montar a segurança, para se fazer o referendo. Mas a única preocupação que o Estado português teve na Guiné foi desarmar o exército africano e entregá-lo ao PAIGC. Se o general Spínola continuasse mais dois anos na Guiné, o PAIGC entregava-se. Aqueles três majores que foram mortos, o Passos Ramos, o Osório e o Pereira da Silva, iam lá buscar armamento. Todas as noites eles iam lá e os homens do PAIGC traziam armas e entregavam-nas ao nosso Exército. Naquele dia foram lá, estavam à espera de um grupo que vinha entregar material, mas encontraram um grupo do André Gomes, que tinha vindo de Jolmeter fazer patrulha e que, sem saberem o que é que se passava, mataram-nos. Depois do André Gomes matar aqueles três majores, o Exército avançou com a guerra. Eu andei quatro dias a seguir as pegadas do André Gomes. Acabei com o acampamento deles, mas não apanhei o André Gomes. Havia um rio, o Cacheu, e eles quando se viam apertados pegavam nas pirogas e fugiam.No dia 25 de Abril estava no mato na fronteira com a Guiné-C,onakry. Tinha ido patrulhar a única base que o PAIGC ainda lá tinha. Fui eu e o meu furriel, disfarçados de enfermeiros, e estivemos lá três dias. O acampamento deles era a onze quilómetros de Conakry. Havia lá centenas de pessoas mutiladas. Quando voltei, ia apanhar o meu grupo que estava em Aldeia Formosa, encontrei o 2.º comandante do batalhão, que era um major de Artilharia, que me perguntou de onde é que eu vinha. Eu respondi que vinha do mato. «Então você anda no mato? Não sabe que a guerra já acabou?», disse-me ele. Eu mandei-o à fava. Mas ao meio-dia, quando estava na messe a comer, ouvi na rádio que o Spínola tinha feito um golpe em Portugal e que a guerra estava suspensa. Quando chegámos a Bissau, eu tinha sido destacado para Bula, desci do carro, houve um soldado meu chamado Mário Dantas, que quando saltou do carro deixou cair duas granadas. As granadas explodiram por baixo dele, ficou sem os dois pés e eu fiquei com 117 estilhaços no corpo. Fui evacuado para Portugal, para o Hospital Militar. Como eu era alferes do Quadro Permanente continuei cá. É mentira aquilo que o tenente-coronel Melo Antunes disse na TVI, nos debates sobre o 25 de Abril. Disse que não se fez um referendo na Guiné porque não havia segurança. Mas na Guiné tínhamos várias companhias de caçadores especiais formadas por nativos e tínhamos ainda um batalhão de comandos com três companhias e dois destacamentos de fuzileiros especiais. Mesmo que não tivéssemos lá tropa branca, as vinte companhias de nativos eram suficientes para assegurar o referendo na Guiné. O PAIGC só entrou dentro da cidade de Bissau depois das tropas dos comandos e fuzileiros serem desarmadas. Quem desarmou os comandos foi o Carlos Fabião. A 15.ª Companhia, em Mansoa, não aceitou o desarmamento. A maioria deles foram fuzilados. 1)


1) - Testemunho oral: Marcelino da Mata. Lisboa, 21 de Julho de 1994. Alferes, nasceu em 1940. Fez várias comissões na Guiné como operacional nos grupos de comandos negros. Foi instrutor das tropas que invadiram a Guiné-Conakry. Estava reformado quando foi entrevistado.



BIBLIOGRAFIA

A Guerra de África (1961 - 1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL VI

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