quinta-feira, 28 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

MANUEL DOS SANTOS


Disparar os «Strela»


Foi treinado em Cuba e na União Soviética para a luta de guerrilha no interior da Guiné. Chefiava o grupo do PAIGC que, numa escola militar russa, aprendeu a manejar os mísseis Strela. Reconhece que a estratégia de Spínola trouxe maiores dificuldades ao PAIGC mas que não conteve a progressão da luta pela independência. O comandante Manuel dos Santos destacou-se nas matas e enaltece as qualidades políticas de Amílcar Cabral e a bravura militar de Nino Vieira.
O apoio de Sekou Touré à luta do PAIGC foi importante desde o início, mas a implicação do presidente da Guiné-Conakry no assassinato de Amílcar Cabral não pode ser excluída. Spínola, com o seu novo modelo de acção militar, levantou problemas à guerrilha do PAIGC. A invasão de Conakry foi politicamente negativa para Portugal.
Tomei contacto com os problemas políticos através do Abílio Duarte, que mais tarde foi presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde. Depois da fundação do PAIGC em Bissau, ele foi enviado para Cabo Verde, onde era funcionário do Banco Nacional Ultramarino, com o objectivo de mobilizar a juventude. Foi meu colega no liceu e tínhamos uma relação bastante boa. Foi aí que eu ouvi as primeiras coisas sobre política e sobre dominação colonial. Apesar de ainda não ter começado a luta armada, já tinha começado a mobilização no interior da Guiné. Os primeiros quadros foram enviados em 1960 para a República Popular da China, para adquirirem uma preparação político-militar para a guerrilha. Por coincidência, dois dos membros desse grupo são hoje o presidente e o primeiro-ministro da Guiné, o Nino Vieira e o Manuel Saturnino Costa. A China tinha nessa altura uma estratégia de apoio aos movimentos de libertação nacional. Mas as nossas melhores relações foram com a União Soviética. Com a China só foram boas nos primeiros momentos. Vários grupos foram à China receber preparação político-militar, antes do desencadeamento da luta armada. em princípios de 1963, com um ataque, comandado pelo Arafan Mané, a um quartel em Tire. Sekou Touré apoiou-nos desde o princípio. De Conakry vinham armamento e abastecimentos de toda a ordem, in
cluindo bens de primeira necessidade para a população que estava sob o nosso controlo. Com Senghor era diferente. Havia algum apoio do Senegal e tínhamos alguma implantação lá, simplesmente o apoio deles nunca foi como o apoio de Conakry, a não ser na última fase da luta, em que os senegaleses reconheceram que não estávamos a preparar nada contra o Senegal, e que todo o equipamento que passava por ali era, de facto, para a luta nacional. Havia um conflito entre os dois, Senghor e Sekou Touré. Mas não sei se seria isso, ou se seria o receio de que gente armada a circular e a fazer transitar equipamento militar dentro do Senegal pudesse alimentar conflitos internos. Tanto mais que, nessa altura, havia um movimento independentista na Casamanse. Era uma situação pouco confortável para o Governo senegalês.
Já se tinha constituído o secretariado do PAIGC em Conakry quando eu saí de Lisboa e fui para Paris, onde me encontrei com o Amílcar Cabral. As necessidades da luta armada, naquele momento, passavam pela tenção dos quadros necessários à evolução qualitativa da guerra na Guiné e ao eventual desencadeamento de ações em Cabo Verde. Estive em Paris uns meses. Depois fui para o Nordeste da França, com a missão de tentar recrutar outros cabo-verdianos A emigração aí era numerosa. porque era a zona das siderurgias e de outras indústrias. Depois, em 1965, seguimos para a Argélia, apenas como ponto de passagem, e fomos para Cuba, onde recebemos a primeira preparação militar. Estivemos Cuba perto de um ano. Éramos cerca de trinta quadros. A doutinação ideológica não era muita. Recebemos, essencialmente, um treino litar. Os cubanos tinham estruturas próprias para treinar os guerrilheiros. A doutrinação ideológica numca decorreu por conta de estrangeiros mas sempre por conta do PAIGC, que sempre teve bastante independência e autonomia. Depois voltei de Cuba e passei uma temporada na União Soviética, onde foi completada a nossa preparação militar, que foi uma preparação mais específica. Voltei Para a Guiné em 1966 e fui para o Sul. Os guerrilheiros já estavam implantados dentro do território e o PAIGC dispunha de muitas unidades regulares formadas, fardadas e equipadas. Estávamos psicologicamente preparados para enfrentar a situação. E, depois, éramos jovens.
Concordo que o PAIGC foi muito mais eficiente, no plano militar, do que os outros movimentos de libertação nacional. Quando Spínola foi para a Guiné substituir Shultz como comandante-chefe, a situação militar era já nitidamente favorável ao PAIGC. Shultz fez muitas asneiras. Não fez uma antiguerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. A antiguerrilha moderna tem várias componentes: a militar, com os helicópteros e a aviação, e a política. Mas Shultz não fazia trabalho com as populações. Pelo contrário, o trabalho que ele fazia era a repressão e, nesses casos, a repressão aumentava a resistência e tornava-se, quase objectivamente, um nosso aliado. Penso que em 1968-1969 o PAIGC dominava perfeitamente dois terços do território. O PAIGC nunca teve uma base étnica, pelo contrário, sempre procurou agir numa base não étnica. O PAIGC sempre procurou constituir as suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia. O combate corpo a corpo foi muito raro na Guiné. Mas, quando se tratava de combates de infantaria e de emboscadas, havia combates próximos, em que as distâncias entre os combatentes eram muito pequenas, às vezes apenas de alguns metros.
Os estigmas de antiportuguesismo nunca existiram no PAIGC. Em 1966, quando foi o Campeonato do Mundo de Futebol, e Portugal ficou em terceiro lugar, estivemos no interior, no mato, a ouvir os relatos e a torcer pela equipa de Portugal. Amílcar Cabral era um homem clarividente que sabia que a guerra ia terminar um dia e que as nossas relações com Portugal deveriam ser boas. Cabral nunca foi antiportuguês. Ele teve o cuidado de dizer, nos primeiros anos da luta, numa época em que os nacionalismos, às vezes à mistura com um certo racismo, estavam muito acesos, que não estávamos a lutar contra o povo português. Amílcar Cabral era o chefe indiscutível, o teórico do PAIGC, o homem que elaborava a estratégia. É verdade que Mao Tsé-Tung influenciou toda a gente que nos anos 50 e 60 fez guerrilha. Mas Cabral citava, sobretudo. Cabral. Era um homem extremamente independente com
uma grande capacidade e um espírito crítico muito grande. No campo da guerrilha, Nino Vieira foi importante desde 1960, foi sempre um dos melhores. Ele transformou-se quase numa lenda na Guiné pela sua coragem física. Pertenceu ao primeiro grupo que teve preparação militar na China. É um indivíduo extremamente corajoso. Tanto mais que houve outros dirigentes militares importantes, como o Osvaldo Vieira, o Francisco Mendes, etc., mas nenhum deles teve aquela auréola de herói. O Nino Vieira, nesse capítulo, era o maior. Era extremamente respeitado por todos os soldados que participaram na luta de libertação nacional. A lenda dele fez-se em combate.
Em 1968, eu estava na artilharia. Primeiro fui chefe de reconhecimento e depois 2.° comandante de uma bateria grande de artilharia. A minha missão era a de dirigir essa bateria em combate e fora dele. Era a de preparar as coisas todas. Quando Spínola chegou, o PAIGC continuou a desenvolver a sua estratégia, mas com maiores dificuldades. O Spínola começou, de facto, a fazer uma antiguerrilha moderna e inteligente, apesar de ter inaugurado a sua vinda para a Guiné com algumas derrotas. Tentou fechar - e isso já vinha do tempo do Shultz - a fronteira sul, que dá para Conakry, através da implantação de quartéis. Ora a nossa logística vinha de Conakry, era em Conakry que desembarcava tudo, e manter a fronteira sul aberta era extremamente importante para nós, em termos logísticos. Nós precisávamos daquela fronteira aberta e fizemos tudo o que era necessário para inviabilizar as intenções portu- guesas. Spínola ia para o mato. Ia de helicóptero, não ia a pé. Mas não há dúvida de que em todos os lugares em que aconteciam coisas extraordinárias, e onde havia perigos, Spínola acabava por aparecer. Carlos Fabião foi o grande organizador das tropas africanas. Era um operacional de primeira ordem, um indivíduo que respeitávamos como soldado. Eu diria que o Spínola nos criou problemas no sentido em que travou imenso o avanço da luta. Não é que ele tivesse reocupado aquilo que nós já possuíamos, porque isso era bastante difícil. Ele terá reocupado uma ou outra posição, nomeadamente em 1972, no Sul, na área de Cubucaré. Mas, em compensação, no Norte do país, perdeu porque nós avançámos bastante. De forma que não penso que o Spínola estivesse a ganhar a guerra, nem nada que se pareça com isso.
Quem falava com os três majores portugueses, em nome dos nossos bigrupos do chão manjaco, eram os comandantes do PAIGC, o André Gomes, o José Sanhé. Mas eles não estavam a negociar com os majores. O que aconteceu foi que os majores iniciaram uma acção, que é um tipo de acção corrente em qualquer guerrilha, que foi a de tentar aliciar os nossos comandantes na área. Chegaram à fala com eles através das populações que circulavam por ali. E evidente que, tanto nó como os portugueses, tínhamos agentes. Não eram agentes duplos, mas faziam a circulação de informações. E chegaram à fala. Houve vários encontros. Desde o primeiro encontro que a direcção do PAIGC tinha sido advertida pelos nossos comandantes de que havia essa tentativa. Mas nunca pusemos de parte. em nenhum momento, a negociação com Portugal para chegarmos ao fim do conflito. Aliás, Cabral sempre disse isso. Mas não era negociação que eles queriam, nem era nenhum processo de travagem que eles queriam. Aquilo era uma acção clássica de antiguerrilha, de corrupção ou de aliciamento de responsáveis da parte adversa, com gravadores, com dinheiro, com coisas. Os gravadores eram bens de consumo que qualquer indivíduo jovem - e nós éramos todos jovens - gostava de ter. Era uma tentativa de corrupção material e de aliciamento. Tínhamos lá umas centenas de guerrilheiros, mas aquilo era sobretudo para os responsáveis da guerrilha. Houve uma ordem superior para terminar com isso. E, no último encontro dos majores, a nossa gente tentou capturá-los. E eles defenderam-se. Não é verdadeira a versão segundo a qual os majores iam desarmados. O Spínola ficou furioso. porque eram três oficiais com reputação de serem altamente capazes de
serem os melhores operacionais e os seus melhores adjuntos.
Nós não ouvimos falar muito do Alpoim Calvão antes da invasão de Conakry. Mas tudo leva a crer que fosse um bom operacional. Quando se deu a invasão de Conakry, eu estava no Norte, muito longe. Não chegou a causar convulsões nenhumas porque aquilo não deu nada. Em dois dias, já se sabia que tinha acabado. Um dos objectivos da invasão era o de matar Cabral. Aliás, eles tentaram atacar o nosso secretariado em Conakry e libertaram mesmo os portugueses que estavam presos. Mas não penso que isso terá tido importância alguma sobre o desenrolar da luta na Guiné. Poderia ter tido se tivessem, de facto, conseguido acabar com o regime de Sekou Touré, e mesmo isso não era muito provável. Politicamente, a invasão de Conakry foi um desastre para Portugal. Mais tarde, quando Spínola quis negociar connosco, o PAIGC já tinha um bom reconhecimento político no plano internacional. O essencial dessa negociação, se ela acontecesse, seria acabar com a guerra. Cabral queria encontrar-se com o Spínola e com o Senghor, desde que isso significasse negociar o fim da guerra. Nós controlávamos a maior parte do território rural. Os portugueses ocupavam todos os centros urbanos e dispunham de uma densidade enorme de quartéis. Nessa altura, o número de soldados portugueses e africanos era bastante elevado, à volta de quarenta, cinquenta mil, contando com os soldados africanos. Nós, no fim da guerra, tínhamos cerca de dez mil homens. No Norte, ocupávamos quase todo o território rural, com excepção da ilha de Bissau e da faixa costeira que vai até Mansoa. De resto, andávamos perfeitamente à vontade em todo o território. No chão manjaco, sofríamos bastante pressão porque era o lugar mais difícil de abastecer. Era longe, e apesar de estar relativamente perto da fronteira, para lá chegarmos tínhamos que atravessar o rio Cacheu, que era bastante largo nessa região, e os portugueses dispunham de meios de segurança e vigilância marítima extremamente perigosos para nós. As tropas portuguesas mais eficazes, como em todas as guerras desse tipo, eram os comandos, os fuzileiros e os pára-quedistas. Essa era a tropa operacional porque o resto da tropa estava, sobretudo, a ocupar quartéis.
Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes antiaéreos, os Strela. Fui lá treinar com eles, eu era o chefe do grupo. Fomos todos instruídos na União Soviética. Os Strela foram negociados por Amílcar Cabral. Da primeira vez vieram umas vinte e quatro instalações de lançamento de Strela, via Conakry. Os Strela acabaram com a guerra no sentido em que o Exército colonial ficou completamente na defensiva; já não era possível ao Exército português fazer operações ofensivas com aviões ou com helicópteros. A guerra entrou numa fase extremamente delicada, sobretudo para o Exército colonial. E foi a partir desse momento que começámos a fazer operações de maior envergadura, de dia. O primeiro avião foi abatido por um jovem guerrilheiro chamado Marcos Lopes. O coronel Almeida Brito foi o quinto piloto a ser abatido por nós, acho eu. A morte de Cabral foi um pesadelo para toda a gente. Por acaso, nesse momento, eu estava fora da Guiné, na União Soviética. Deve ter havido envolvimento português na morte de Cabral. E também do Sekou Touré. O Sekou Touré tinha-se transformado num indivíduo extremamente megalómano e a projecção de Cabral, no plano internacional, devia estar a fazer-lhe sombra. Para além disso, o episódio do desembarque português em 1970 ter-lhe-á dado muito que pensar, porque quem salvou nessa altura a Guiné-Conakry fomos nós. As tropas do PAIGC que estavam ali foram as primeiras a reagir e a resolver os principais problemas dessa operação.Posso conceber que Sekou Touré, de facto, tenha estado envolvido na morte de Cabral, até pela maneira como ele terá agido depois. Isto segundo as informações de que dispus, porque eu estava ausente, na União Soviética. Está provado que quem deu os tiros foi Inocêncio Kati. Ele era um antigo oficial do PAIGC, que tinha sido afastado do comando operacional por erros, arbitrariedades e outras coisas bastante negativas que cometeu no teatro de operações. Cabral, seguindo a sua teoria de compreensão do que eram esses fenómenos, tentava sempre reabilitar e recuperar essa gente, sobretudo quando se tratava de oficiais que no terreno tinham dado provas. Alguns dos principais participantes no assassinato de Cabral foram antigos militares do PAIGC, presos no princípio da década de 60, em Bissau, que tinham estado na prisão do Tarrafal e que depois, muito provavelmente, foram industriados contra nós. Por isso penso que não é possível contornar a ligação entre esses indivíduos que assassinaram o Cabral e a PIDE-DGS. Logo após o assassinato de Cabral, eles foram ter com as autoridades militares. Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strela, foi a gota de água. Depois da proclamação da independência, fiz a minha vida normal de guerrilheira: combates, mas agora com muita vantagem do nosso lado para exercer uma pressão contínua. Aliás, penso que o Governo português sempre encarou a perda da Guine como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava tudo praticamente acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi - dada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que as portugueses fizeram. Foi uma operação, no chão dos Manjacos. com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero. mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhia foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas, um africano chamado Jolibá No dia 25 de Abril ouvimos pela rádio que em Portugal tinha havido golpe de Estado. Ficámos satisfeitos, porque a maior parte de nó tinha a certeza que a guerra tinha acabado. 1)


1) - Testemunho oral: Manuel Maria Monteiro Santos. Lisboa, 11 de Março de 1995. Combatente do PAIGC, nasceu em 1942. Treinado em Cuba e na União Soviética. Foi chefe de reconhecimento de artilharia. Era empresário quando foi entrevistado


BIBLIOGRAFIA
A Guerra de África - (1961 - 1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL. II

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