segunda-feira, 25 de maio de 2009

DEPOIMENTOS


GUINÉ: O DOMÍNIO INSUBSTITUÍVEL

JOAQUIM VIEIRA


Angola emergia como a jóia do Império Português, a Guiné nunca conseguira ultrapassar o estatuto de peça de latão. Do tamanho do Alentejo, pouco mais era do que um enclave perdido na costa ocidental africana, ocupado como entreposto na época do co­mércio de escravos, mas agora tão inútil como a carcaça de um velho navio encalhado. A sua atmosfera, quente e húmida, era irrespirável para um europeu e a sua total ausência de riquezas naturais afastava definitivamente os colonos para outras paragens.
A Guiné constituía, na verdade, uma vasta coutada de uma única empresa comercial - a Casa Gouveia - absorvida em tempos pelo grupo CUF, o mais importante dos conglomerados industriais do Estado Novo. Sob a adormecida administração das autoridades coloniais e dos gestores da Casa Gouveia (que dominava toda a vida económica do território), a Guiné estagnava esquecida, como se vivesse atascada nos lodaçais que formam a foz dos seus mil cursos de água.
As circunstâncias em que se desenrolou a greve dos trabalhadores portuários de Bissau, em Agosto de 1959, contam tudo sobre o retrógrado estado de espírito dominante. De Lisboa, a CUF já dera autorização para se proceder aos aumentos exigidos, mas o administrador local entendeu que não era de ceder a indígenas sob pressão: deviam regressar primeiro ao trabalho, e ele atribuiria os novos vencimentos quando muito bem entendesse.
Não o entenderam os grevistas, que continuaram a paralisação, talvez sob a influência de uma certa efervescência nacionalista vivida na região (a vizinha Guiné-Conakry tornara-se independente em fins do ano anterior, enquanto o outro território fronteiriço - o Senegal - sêlo-ia oito meses mais tarde). No dia 3 de Agosto, toda a oficialagem existente na pequena capital estava no aeroporto, com a farda branca dos momentos festivos, para dar as boas-vindas à mulher do comandante militar da Guiné, quando foi surpreendida com a notícia de que havia tiroteio na cidade. Regressaram apressadamente para descobrir que a Polícia (de efectivos africanos) cercara os grevistas concentrados no cais de Pidjiguiti e começara a disparar sobre eles. Em pânico, estes haviam-se atirado ao mar. É então que um dos oficiais europeus vindos do aeroporto pega numa espingarda e alveja sistematicamente cada uma das cabeças visíveis à tona da água. Do massacre resultarão umas cinquenta mortes.
Por detrás do movimento grevista encontrava-se um grupo nacionalista fundado três anos antes pelo engenheiro agrónomo Amílcar Cabral - o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde). Na própria designação do movimento estava contida uma das ideias que haveriam de dar ao pensamento de Amílcar Cabral um lugar de destaque no nacionalismo africano. Tratava-se da sua visão pan-africana, para lá das fronteiras estabelecidas pelas potências coloniais europeias, o que atribuía ao PAIGC o original estatuto de «partido binacional», defendendo a independência de dois territórios distintos e o «princípio da unidade Guiné-Cabo Verde». Na verdade, os Cabo-Verdianos dispunham de uma enorme influência na Guiné: tradicionalmente mais cultivados e próximos da cultura europeia - devido à sua mestiçagem e à falta de raízes próprias -, eram utilizados pelos portugueses como «capatazes» para a força de trabalho local, desempenhando inúmeras missões a nível do funcionalismo público e de outros cargos administrativos. O próprio Amílcar Cabral era originário de Cabo Verde, assim como outros fundadores e dirigentes do PAIGC.
O massacre de Pidjiguiti leva o Partido a alterar a sua orientação estratégica: do trabalho junto dos assalariados urbanos, passa para a mobilização prioritária do campesinato - a esmagadora maioria da população da Guiné Portuguesa. Nesta fase, os seus responsáveis preconizam ainda o diálogo com o regime colonial, atitude que se consubstancia no envio ao Governo português, em Novembro de 1960, de um memorando intitulado «Doze medidas para a liquidação pacífica da dominação colonial em África».
Não haverá, obviamente, qualquer resposta de Lisboa. De diamante ou de latão, qualquer peça que constitua o espólio colonial português destinava-se a ser conservada até ao fim dos séculos. O PAIGC proclamará então, em Agosto de 1961, a «passagem da revolução nacional da fase de luta política à de insurreição nacional» (palavras de outro dos seus dirigentes, Aristides Pereira, proferidas mais tarde).
Contudo, não é ainda a guerra. O PAIGC prepara meticulosamente as suas forças, com o declarado apoio do líder da Guiné-Conakry, Sekou Touré, que fornece bases e instalações no seu território. Para lá de algumas acções de sabotagem sem significado, tudo se mantém calmo até 23 de Janeiro de 1963, quando os guerrilheiros do PAIGC desencadeiam um ataque armado à guarnição portuguesa de Tipe, no Sul.

Uma Ofensiva Surpreendente
Assim tem início a guerra nacionalista da Guiné-Bissau. No entanto, ao contrário de Angola, dois anos antes, as Forças Armadas portuguesas já não são apanhadas desprevenidas no novo teatro de operações - o início do conflito tornara-se, de há muitos meses, uma realidade iminente. Só que, aqui, os rebeldes encontram-se num estádio de organização muito superior, o que acaba por surpreender a tropa. O empenho dos guerrilheiros é tanto maior quanto mais desenvolvido é o seu armamento. A AK 47, a Simonov, a PPSH ou o RPG 7 estão nas suas mãos desde o início, atribuindo-lhes uma potência de fogo igual (se não mesmo superior) à das forças adversárias.
A guerrilha atravessa com relativa facilidade a fronteira meridional, vinda da Guiné-Conakry. Por vezes, introduz-se através do mar, utilizando lanchas para se infiltrar em profundidade através dos vastos rios do Sul.
Seis meses depois de iniciar as hostilidades no sector meridional, o PAIGC está apto a abrir uma nova frente no Norte. Nessa altura, já os guerrilheiros controlam zonas nas regiões dos rios Geba e Corubal, sem que as forças portuguesas consigam estancar o seu progressivo alastramento.
A pujança da ofensiva rebelde provoca a desorientação junto do comando português. O chefe militar da Guiné, o brigadeiro Louro de Sousa, desloca-se a Portugal para comunicar ao Governo que a batalha está virtualmente perdida. Mas a perspectiva da derrota militar ou da negociação política não é aceite em Lisboa. Como resposta, ordena-se uma vasta operação destinada a recuperar a ilha de Como, que o PAIGC havia ocupado logo de início. O Executivo atribui tal importância a esta manobra que o ministro da Defesa, general Manuel Gomes de Araújo, vai a Bissau assistir ao seu lançamento.
A batalha da ilha de Como, que dura semanas e atinge o seu auge em Janeiro e Fevereiro de 1964, redunda num fracasso para as forças portuguesas, que não logram reconquistar a disputada parcela de terra. E só então que, aos olhos da tropa embarcada em Lisboa, a guerra da Guiné adquire a sua verdadeira - e terrível - dimensão.
O que primeiro choca os recém-chegados é a dureza do clima, capaz de fundir em poucos minutos, como manteiga, a disciplina do mais bem treinado dos pelotões. Na larga faixa litoral, onde a guerra progride nos primeiros tempos (e que corresponde a metade do território), a terra é insalubre, salgada e pantanosa. O movimento das marés altera constantemente a paisagem emersa e reclama atenção redobrada para escapar às suas armadilhas. Ao contrário do que acontecia em Angola - onde o esforço bélico era suportado sobretudo pelo Exército -, a fisionomia da frente guineense implica uma articulação permanente e ponderada dos três ramos militares. O movimento das forças terrestres é tão importante como o das lanchas da Marinha, no interminável dédalo de rios debruados por uma densa e traiçoeira vegetação. Por outro lado, a exiguidade do território permite à aviação, estacionada em Bissau, atingir qualquer ponto da Guiné em dez minutos, o que se torna psicologicamente reconfortante para as forças de superfície, por saberem que o apoio aéreo não deverá tardar ao verem-se envolvidas numa das emboscadas com que permanentemente são fustigadas pelo inimigo.
Sob o ponto de vista militar, a Guiné constitui um bastião extremamente frágil, cuja defesa é um quebra-cabeças para o mais brilhante dos generais. A sua área reduzida permite incursões permanentes e rápidas, muitas vezes inferiores a vinte e quatro horas: quando a tropa portuguesa contra-ataca, já os guerrilheiros podem ter regressado aos seus refúgios seguros na Guiné-Conakry (ou no Senegal, depois de a guerra se ter iniciado no Norte). Os rebeldes encontram ainda uma vantagem suplementar na extensão e traçado da fronteira e na existência de três grandes rios (Cacheu, Geba e Corubal), que cortam o território em quatro fatias longitudinais e perturbam a movimentação das tropas regulares.
Saindo de Bissau e de mais um ou outro centro populacional, a Guiné vive ainda nos tempos primitivos. As tropas que vão formar a quadrícula de defesa do território terão de erguer tudo de raiz: itinerários, aquartelamentos, pistas de aviação, instalações comunitárias, etc. Para além do total desconforto que se encontra fora da capital, a terra nada produz que possa garantir o abastecimento alimentar: tudo terá de vir de fora, e cada unidade ficará dependente da chegada atempada dos seus víveres. A mesma ementa de enlatados pode repetir-se infindavelmente: a carne de conserva em rodelas, por exemplo, prato a que os soldados chamam «tampas de morteiro».
Mesmo Bissau não constitui o mítico refúgio que Luanda representava para o repouso do guerreiro. A principal cidade nada apresenta de atractivo, a não ser os seus múltiplos cafés, onde a cerveja se escoa abundantemente. A prostituição é toda africana e representa um perigo adicional: para a consumir, é necessário visitar as tabancas, onde o PAIGC se encontra implantado.
A fama da Guiné cedo alastra entre as fileiras portuguesas. Esta torna-se no último dos indesejáveis destinos africanos de qualquer militar. Ser-se destacado para a Guiné tem, por si só, o peso de uma punição. É uma condenação a dois anos de apodrecimento, em condições piores do que as de um cárcere e com maior risco de o regresso se fazer na posição horizontal, entre tábuas. Na verdade, desde o início que o número de baixas das forças portuguesas é percentualmente maior na Guiné do que nos outros teatros de operações em África. Segundo dados oficiais, em 1963, por exemplo, registam-se aqui 6,16 mortos em combate por cada mil dos efectivos estacionados, enquanto em Angola esse valor é de 2,21. No ano seguinte, já com a guerra de Moçambique em pleno desenvolvimento, esse nú5mero é de 4,16 na Guiné, contra 1,41 em Angola e 2,79 na nova frente de combate. E em 1966 será, respectivamente, de 5,08, 1,49 e 3,18.

O Peso do Tribalismo
O fracasso da operação da ilha de Como leva as autoridades de Lisboa à conclusão de que é necessário substituir tanto o governador do território (comandante Vasco Rodrigues) como o responsável militar, que se encontravam, aliás, em conflito pessoal. A escolha dos substitutos é feita com extremo cuidado, já que se tem a consciência da situação desastrosa na Guiné, de tal modo que teria bastado um pouco mais de força ao PAIGC em 1963 para infligir uma derrota às forças coloniais. A manobra dos guerrilheiros parece agora clara: trata-se de dividir o território de norte a sul em duas partes, ignorando por ora o Leste e isolando a zona de Bissau. Esta estratégia encontra-se também condicionada pelos factores tribais - fundamentais num território onde se contam cerca de trinta etnias diferentes. As mais importantes são os Balantas, animistas que constituem quase um terço da população, e os Fulas, muçulmanos que (tal como os Mandingas, da mesma confissão religiosa) dominam o comércio e se impõem sobre os restantes grupos. A rebelião tem início entre os Balantas - a grande base de recrutamento do PAIGC -, enquanto os Fulas, situados a leste, se mantêm fiéis aos Portugueses. A guerrilha é pois mais forte em «chão balanta», mantendo-se ainda inexistente na zona interior. Isolando Bissau, o PAIGC dificultaria a defesa do Leste - que teria eventualmente de ser abandonado pelas forças portuguesas - para lançar depois a ofensiva final sobre a capital.
Perante a difícil situação militar, é decidido concentrar numa única pessoa os cargos de governador-geral e de comandante-chefe da Guiné. A escolha recai no brigadeiro Arnaldo Schultz, um oficial-general de prestígio que havia sido ministro do Interior de 1958 a 1961. Schultz reactiva as operações militares, mas continua a não possuir uma ideia de manobra bem definida, mantendo-se a incerteza sobre como será possível resistir à pressão rebelde.
O PAIGC, que abre entretanto as hostilidades a leste, mantém firmemente sob controlo os seus dois mais importantes «santuários» interiores: as matas do Cantanhez, a sul, e do Oio-Morés, a norte. São nomes de uma ressonância assustadora para a tropa portuguesa, que sabe estar previamente votada ao fracasso qualquer tentativa de penetração no interior dessas densas zonas. A missão é apenas tentada pelas forças especiais, já que as tropas de quadrícula (ao princípio, as únicas praticamente existentes na Guiné) contornam prudentemente tais áreas de inevitável punição. A partir daqui, e em ligação com as bases nos países vizinhos, os guerrilheiros consolidam posições em faixas cada vez mais vastas. Grande parte da região meridional passa para as mãos dos rebeldes, e todas as tentativas levadas a cabo pelas forças portuguesas para a recuperar se saldarão por derrotas, que chegam mesmo, por vezes, a constituir desastres militares. Depois da ilha de Como, assim sucede por duas vezes no Cantanhez, ou ainda em Quintafine. O estratégico corredor de Guileje, fonte de penetração e abastecimento da guerrilha, será igualmente alvo de operações portuguesas fracassadas. Para complicar as coisas, haverá por duas vezes bombardeamentos por engano da Marinha e da Força Aérea às próprias tropas portuguesas.
A violenta reacção dos guerrilheiros leva à restrição das missões de grande aparato sobre concentrações inimigas. As unidades começam a ganhar tendência para se entrincheirar cada vez mais nos aquartelamentos, deixando vastas áreas e a iniciativa ao PAIGC.
As companhias de quadrícula limitam-se a enviar pelotões em patrulhamentos de cerca de vinte e quatro horas, durante os quais a preocupação dominante parece ser evitar o contacto com a guerrilha. As tropas passam a enganar-se a si próprias: muitos pelotões limitam-se a acampar nas proximidades dos respectivos aquartelamentos, queimando o tempo suficiente para poderem regressar e anunciar terem completado o circuito programado.
O PAIGC, entretanto, desenvolve uma actividade de organização administrativa mínima nas zonas por si controladas (onde se contam alguns dos solos mais férteis da Guiné). O sistema posto em prática torna o movimento numa organização modelo para os apoiantes das causas anticolonialistas em todo o mundo. Em 1967, o Partido afirma controlar já sessenta por cento do território guineense. Embora a afirmação seja contestada por Lisboa e dificilmente possa ser comprovada (devendo, na verdade, conter em si algum exagero para efeitos propagandísticos), ninguém poderá pôr em causa que, nas suas áreas, o PAIGC colocou em funcionamento órgãos encarregados da justiça, do ensino, da saúde, do comércio e do abastecimento de bens essenciais.
O movimento é dominado pela personalidade carismática de Amílcar Cabral, já então considerado um dos mais inteligentes e destacados líderes africanos. Cabral estudara em Lisboa, onde, juntamente com outros futuros dirigentes nacionalistas das colónias portuguesas, fora influenciado pela Oposição ao regime de Salazar. Nos seus textos teóricos, sente-se uma forte ligação ao marxismo, que procura adaptar aos condicionalismos específicos da sociedade africana. Mostra-se, no entanto, extremamente pragmático nos seus contactos internacionais e possuidor de hábeis qualidades diplomáticas.
Spínola Altera a Estratégia
Em 1968, o avanço da guerrilha permite-lhe desencadear ataques aos centros populacionais mais importantes (Bafatá, Gabu, Farim, Mansoa, Cansumbé e Bolama), com excepção de Bissau, onde só o aeroporto é atingido por foguetes. Nos rios, também o PAIGC parece constituir uma ameaça cada vez mais séria. Depois de se ter apoderado de embarcações motorizadas ainda em 1963 e de ter afundado algumas lanchas nos anos seguintes, o movimento rebelde continua a inutilizar barcos portugueses. Em 1968, o PAIGC dispõe de várias lanchas rápidas de origem soviética, além de outros barcos motorizados. O Corubal ficará para a Marinha como o mais explosivo de todos os seus cenários de actuação durante a guerra em Africa. Para agravar o desgaste sofrido neste rio, uma lancha com tropas vira-se nas suas águas, perecendo dezenas de soldados.
Em Lisboa, considera-se que a incompetência de Shultz levará brevemente o PAIGC a uma vitória militar. O Governo resolve então reformular a estratégia para a colónia, o que passa em primeiro lugar pelo afastamento do seu governador. Em sua substituição, é escolhido um oficial de Cavalaria que, em Angola, dera mostras de grande capacidade de comando, de manutenção da disciplina e eficiência das tropas, de adaptação às situações concretas e de conhecimento generalizado das tácticas marciais. Conseguiria o então brigadeiro António de Spínola inverter a situação na Guiné em favor das forças portuguesas? Essa era a esperança de Salazar quando o envia para a Guiné como governador-geral e comandante-chefe, em Maio de 1968.
Quando Spínola chega ao território, está prestes a fechar-se o anel rebelde sobre a capital. Com o Sul tomado (salvo alguns aquartelamentos portugueses) e a preparação de uma ofensiva a leste, o esforço principal dos guerrilheiros exerce-se agora a noroeste. Para intensificar a acção nessa zona, o PAIGC desloca mesmo o seu Comando da Frente Norte do Morés para a região de Choquemone-Insumete, de onde partiriam três linhas de penetração em «chão manjaco» (área de Teixeira Pinto).
O novo governador revela de imediato a sua intenção de proceder a profundas alterações, ao remodelar os postos dos altos comandos militares e civis. Numa reunião de todos os comandantes de unidades e subunidades dos três ramos das Forças Armadas, realizada em Bissau, desenha então a sua linha fundamental de orientação. Uma «guerra subversiva» não se ganha militarmente, admite Spínola. A vitória só seria possível no campo político, através da actuação do Governo. Portanto, o que ele pede aos militares não é que ganhem a guerra, mas antes que não a percam, até se encontrar a saída política. Para si, assume a responsabilidade da condução do conflito e do respectivo resultado, o que implica que o seu mandato será constituído por uma forte componente política.
Mas antes mesmo de entrar neste domínio, Spínola vai investir na componente militar, imprimindo às forças portuguesas características mais ofensivas. Todas as unidades estacionadas na Guiné vêem a sua missão redefinida. Nas áreas de implantação do PAIGC, o comandante-chefe retira a quadrícula, passando a actuar apenas com tropas de intervenção sob seu comando directo. No conjunto, isto significa uma ligeira retracção do dispositivo militar português, que abandona uma ou outra área de fronteira sujeita a permanente flagelação lançada dos países limítrofes ou sem grande interesse estratégico. Contudo, as tropas portuguesas permanecem em muitas guarnições fronteiriças, sofrendo o permanente desgaste provocado pelo PAIGC, mas impedindo o movimento de reclamar a conquista de praças-fortes adversárias.
No mapa, Spínola dará prioridade à acção no Noroeste, para evitar o cerco final a Bissau. Por outro lado, procurará manter a situação favorável no Leste, garantindo a simpatia da etnia fula e prevenindo as infiltrações dos rebeldes. O Sul permanecerá, por enquanto, entregue às mãos do PAIGC.
O comandante-chefe adquirirá enorme carisma junto da tropa devido ao seu comportamento pouco ortodoxo. É frequente vê-lo desembarcar do helicóptero, de camuflado, monóculo, luvas e pingalim, em zonas consideradas perigosas, para acompanhar a evolução das operações e puxar pelo moral dos subordinados. A sua presença inspira temor às fileiras. Tem fama de duro e inflexível, embora se diga que, em privado, ele se deixa influenciar pelos oficiais que lhe estão mais próximos e considera seus amigos. Para a finalização de uma operação no Leste, entende que o Exército deve bombardear território da Guiné-Conakry, onde estão alojadas baterias do PAIGC. Até esse momento, os comandos portugueses têm tentado evitar intervenções nos países vizinhos, temendo as repercussões diplomáticas, o que o major encarregado da operação faz salientar a Spínola. Este, porém, insiste, e, se o oficial quer, passar-lhe-á a ordem por escrito. Assim é feito, tornando-se a Guiné-Conakry pela primeira vez alvo da artilharia portuguesa.
Para levar a cabo o seu programa político-militar, Spínola tem o cuidado de se rodear de alguns dos mais competentes oficiais do Exército. Trabalharão junto a ele militares como Firmino Miguel, Pedro Cardoso, Ramalho Eanes, Carlos Fabião, Lemos Pires, Otelo Saraiva de Carvalho, Carlos Azeredo, Manuel Monge, Almeida Bruno, Robin de Andrade, Ricardo Durão e Rafael Durão. Também o escol dos pilotos-aviadores portugueses está concentrado na base aérea de Bissau.
No domínio político, Spínola valoriza os canais de contacto directo ou indirecto com as forças apoiantes da guerrilha ou com o próprio PAIGC. Esse era um terreno que se encontrava praticamente virgem antes de chegar a Bissau. As autoridades portuguesas tinham estimulado a acção de um grupo alternativo ao PAIGC - a FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), de Benjamim Pinto Bull, que nunca combatera e se mostrava favorável a entendimentos com Lisboa. Porém, a FLING jamais se impusera como contraponto da organização de Amílcar Cabral, pelo que constituía uma aposta perdida. O primeiro contacto entre a FLING e as autoridades portuguesas fora promovido ainda em 1963 pelo presidente senegalês, Leopold Senghor. Senghor receava a influência de Sekou Touré sobre o PAIGC e a possibilidade de uma Guiné-Bissau independente constituir um instrumento de Conakry mesmo encostado à fronteira litoral do Senegal. Embora, por razões de solidariedade pan-africana, viesse a facilitar a instalação de bases de guerrilha no seu território, mantinha uma atitude de conveniente ambiguidade perante o desenrolar do conflito. Também o seu relacionamento com os Portugueses era incerto e regularmente pontuado por protestos contra alegados bombardeamentos do seu território pela aviação de Bissau.
Diálogo e Cacete
Em 1968, porém, Senghor mostrara-se favorável a que a Guiné-Bissau permanecesse integrada, depois da independência, numa confederação que designava por «Comunidade Afro-Luso-Brasileira». Saudando a chegada de Spínola através de um mensageiro da PIDE, o líder senegalês propunha mesmo um encontro com o novo governador. Lisboa achou prematuro, mas, depois da substituição de Salazar por Marcello Caetano, a receptividade a propostas desse tipo iria mudar. Após contactos através da Embaixada suíça em Dakar (dado que as relações luso-senegalesas se encontravam cortadas), um enviado português foi a esta capital discutir a possibilidade do estabelecimento de uma ligação com o PAIGC, sob os auspícios do próprio Senghor. Acordou-se que, num gesto de boa vontade, o Exército português suspenderia as operações ofensivas contra a guerrilha, mas Lisboa viria a queixar-se do lançamento de uma série de ataques violentos pelos rebeldes, a partir do Senegal, e a dar por rompido o entendimento. Dakar queixou-se de novo pela «agressão» nas Nações Unidas, mas a diplomacia secreta seria retomada mais tarde com um encontro entre os ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países, em Paris. O Senegal revela porém, na ONU, que estão em curso negociações. O PAIGC, que declara sentir-se traído por desconhecer os contactos, lança então novos ataques a partir da fronteira norte, o que leva a nova retaliação e ao mesmo processo de queixa nas Nações Unidas.
Está-se nos primeiros meses de 1970, e se as conversações com Dakar estão bloqueadas, o mesmo não acontece com os contactos directos estabelecidos entre o Exército e comandantes da guerrilha na zona do «chão manjaco» (Noroeste). O processo dura já há meses. Ao décimo terceiro encontro, está presente Spínola, desarmado, como se combinara. A reunião seguinte é marcada para 20 de Abril, e nela vão participar, pela parte portuguesa (e também desarmados), os majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, oficiais da Repartição de Informações em Teixeira de Sousa. Quando voltam a ser avistados, algum tempo depois, estão abatidos com um tiro na nuca, os seus corpos retalhados e as cabeças cortadas. Nunca se soube ao certo o que aconteceu, mas é possível que a direcção do PAIGC, tendo sabido da existência de conversações à sua revelia, resolvesse castigar os comandantes envolvidos e emboscar os oficiais portugueses. Trata-se de um golpe nos esforços de negociação política tentados por Spínola. Os combates voltam a endurecer na sequência do assassínio dos três majores. O governador da Guiné muda então de táctica, procurando atingir directamente a retaguarda do PAIGC. A ideia consiste em promover um golpe de Estado em Conakry, que deponha Sekou Touré e leve ao Governo uma corrente oposicionista que cesse o apoio aos rebeldes de Amílcar Cabral. Spínola reúne em Bissau membros da Frente de Libertação Nacional Guineense (FLING), contrária ao regime de Touré, enquanto o então tenente-coronel Firmino Miguel traça os planos para a execução do golpe. Marcello Caetano dá o seu acordo a que um destacamento português intervenha em Conakry, desde que não deixe na cidade qualquer prova do seu envolvimento.
A operação, com o nome de código «Mar Verde», tem lugar entre os dias 20 e 23 de Novembro. Seis lanchas da Marinha portuguesa dirigem-se a Conakry com tropas africanas de elite usando a arma dos guerrilheiros - a AK 47 - e a farda do PAIGC. A bordo seguem também duzentos elementos da FLING, que se aproveitarão da incursão para tomar o poder. A expedição é dirigida pelo comandante Guilherme Alpoim Calvão.
Os atacantes levam por missão destruir as lanchas rápidas que constituíam a Armada da Guiné-Conakry e os caças MIG 15 e 17 da sua Força Aérea, neutralizar as instalações pertencentes ao PAIGC, assassinar Amílcar Cabral e Sekou Touré e ocupar a emissora estatal para que a Oposição apelasse ao derrube do regime e solicitasse a intervenção militar portuguesa em defesa do seu Governo.
Contudo, a operação constitui um fracasso quanto aos seus mais importantes objectivos. São destruídas as embarcações ancoradas no porto (com minas fornecidas pela Africa do Sul) e as instalações do PAIGC e libertados vinte e seis soldados portugueses detidos pelos rebeldes e quatrocentos oposicionistas guineenses, mas está-se muito longe de conseguir o golpe de Estado. Nem a emissora é tomada, nem os MIG são neutralizados (por se encontrarem noutra base), nem Cabral e Touré (ausentes de Conakry) são encontrados. Os atacantes desembarcam na madrugada de 22 e retiram precipitadamente na manhã do mesmo dia, deixando em terra alguns dos membros da expedição, cuja captura facilitará a descoberta da origem da operação e o escândalo internacional que se seguirá.

A Ofensiva Psicológica
Spínola, entretanto promovido a general, vai apostar na outra componente do seu programa: a acção político-ideológica. Trata-se de disputar a população ao PAIGC no terreno da propaganda, criando a ideia de que as autoridades portuguesas garantem não só melhores condições de vida como a defesa das tradições culturais de cada uma das tribos. É a campanha que o governador designa «Por uma Guiné melhor».

Primeiramente, os habitantes das zonas sob maior disputa são transferidos para aldeamentos estratégicos, que facilitem o controlo da tropa portuguesa. A escolha dos novos locais é feita, porém, de acordo com os chefes das aldeias, de modo a evitar conflitos com a sua deslocação forçada. São criadas milícias e distribuídas armas a algumas aldeias, para a sua «autodefesa». No domínio da ofensiva psicológica, Spínola promove a realização de dois Congressos do Povo da Guiné (em 1971 e 1973), onde os delegados discutem livremente e sentem poder dispor de alguma influência e participação na administração do território (o PAIGC responde com a criação da Assembleia Nacional Popular da Guiné). São promovidas melhorias ao nível das infra-estruturas de carácter social.
Com esta manobra, o comandante-chefe conseguirá suster o avanço da guerrilha para novas áreas, mas não fazer recuar os rebeldes das posições já por eles conquistadas. Em princípios dos anos 70, Portugal dispõe na Guiné de trinta mil tropas europeias e de mais de vinte mil africanos com armas (comandos, milícias e grupos de «autodefesa»), enquanto as fileiras do PAIGC são formadas por uns sete mil combatentes, articulados em grupos e bigrupos. De facto, toda a população do território está virtualmente armada, quer se situe de um lado ou do outro.
Os aquartelamentos portugueses, rodeados por paliçadas de troncos de palmeira e arame farpado e muitas vezes equipados de abrigos subterrâneos, são frequentemente atacados, o que não acontecia em Angola ou em Moçambique. Os itinerários entre povoações atravessam quase sempre zonas controladas pelo PAIGC, obrigando ao uso de helicópteros como precioso instrumento táctico. A densidade de incidentes bélicos no exíguo território da Guiné ultrapassa de longe a das outras duas colónias em guerra. A pressão sobre os soldados é muito maior, o seu desgaste psicológico mais intenso e o seu moral mais reduzido. Suportar os vinte e dois meses de comissão (e não vinte e quatro, como em Angola e Moçambique, devido à dureza das condições na Guiné) sofrendo o menos que se puder é o objectivo de qualquer um. Se possível, acompanhado de uma namorada fula, etnia cuja beleza feminina ganha prestígio nas fileiras portuguesas.
Mas a actividade da guerrilha, que redobra de intensidade em cada segunda metade da estação seca (de Março a meados de Junho), raramente permite a distensão. A combatividade dos seus elementos é incomparavelmente maior do que a verificada em Angola, como o sentem os quadros militares que já passaram pelo outro território. De entre todos os comandantes do PAIGC, há um que cedo se torna lenda, de tal modo o seu nome inspira apreensão e, por vezes mesmo, pânico. Cresceu em Bissau (onde chegou a jogar futebol com a guarnição portuguesa) sob o nome de João Bernardo Vieira, mas o seu apelido de combate é Nino. Apesar de nunca um soldado português ter avistado o comandante Nino (pelo menos, de maneira a podê-lo contar aos seus camaradas), era fácil adivinhar a sua presença numa determinada região, pela dureza da manobra rebelde. Os seus combatentes eram os únicos que, no cerco a um aquartelamento, ousavam avançar até ao arame farpado. «E o Nino que comanda», logo se comentava entre a tropa.
O Exército, aliás, conseguia controlar as entradas de Nino Vieira na Guiné, por ter decifrado o sistema de comunicações via rádio do PAIGC. Mas quando os comandantes eram informados do facto, já a coluna do chefe guerrilheiro podia ter desencadeado uma meia dúzia de ataques. E apesar de uma complexa operação de emboscada que uma vez lhe foi montada, o seu grupo saiu incólume, depois de desorganizar as fileiras adversárias.
Em Junho de 1971, o PAIGC infiltra-se pela primeira e única vez na região de Bissau, realizando ataques que causam mortos entre as unidades portuguesas. A guerra parece ter chegado às portas da capital. As Forças Armadas obtêm, entretanto, prova do apoio directo de Havana aos rebeldes, quando uma unidade de pára-quedistas captura no interior do território um militar cubano - o capitão Pedro Peralta.
Acentuando o isolamento diplomático de Lisboa e o crescente apoio internacional que o PAIGC vem recebendo, uma missão da ONU, constituída por três membros do seu Comité de Descolonização, desloca-se, em Abril de 1972, às zonas controladas pelo movimento de Amílcar Cabral. A viagem é organizada confidencialmente, para evitar uma operação portuguesa em larga escala, mas o Governo é informado e ordena a Spínola o desenvolvimento de todos os esforços ao seu alcance para impedir a entrada da delegação no território. O próprio ministro do Ultramar, Silva Cunha, desloca-se na altura a Bissau. É declarado o estado de prevenção em toda a Guiné. A aviação bombardeia intensamente, dia e noite, com napalm e bombas de fragmentação, a zona de fronteira com Conakry e as regiões por onde a missão poderia passar. Desencadeiam-se assaltos com tropas helitransportadas, desembarques de tropas especiais ao longo dos rios e bombardeamentos ininterruptos da Artilharia. Diversas aldeias são destruídas e mortas algumas dezenas de civis. Mesmo assim, os enviados das Nações Unidas declaram ter cumprido a sua missão, percorrendo duzentos quilómetros em áreas do PAIGC. O seu relatório será altamente favorável aos rebeldes, ao mesmo tempo que exprime condenação pela intransigência do regime português. Meses depois a ONU reconhecerá o PAIGC como «único, legítimo e verdadeiro representante do povo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde».

A Grande Cartada do Governador

Perante este quadro, Spínola joga, em Maio de 1972, a sua mais arriscada cartada política como governador da Guiné. Por intermédio de agentes da Direcção-Geral de Segurança, sabe-se que Senghor está disposto a um tête-à-tête com o comandante das forças portugueses, e Spínola declara-se aberto à iniciativa, para o que obtém caução de Marcello Caetano. O encontro (secreto) tem lugar num complexo turístico, no Sul do Senegal. Em caso de qualquer complicação, a Força Aérea tem ordens para arrasar o local: Spínola e comitiva (onde figura Carlos Fabião, oficial do seu Estado-Maior, aqui disfarçado de agente da DGS) podem ser encontrados mortos (explicar-se-ia que teriam sido arrastados da Guiné para ali), mas nunca vivos.
O presidente senegalês oferece-se de novo como medianeiro entre Portugal e o PAIGC para a obtenção de um cessar-fogo que conduza a conversações conjuntas sobre o futuro da Guiné. Posteriores contactos entre Spínola e Senghor tornarão um pouco mais concreta esta proposta, pela qual o governador da Guiné se deixa entusiasmar. Em Lisboa, porém, Marcello Caetano não quer ceder no princípio de nunca reconhecer um movimento de guerrilha como força beligerante com território sob seu controlo. O assunto é levado ao Conselho Superior de Defesa Nacional, de onde sai uma posição claramente hostil à sugestão de Spínola. Como acontecera até aqui, continua a prevalecer a teoria dos dominós: a queda de uma das colónias ou a sua cedência através de negociações (mesmo num quadro federativo) implicará, por arrastamento, a perda de todas as outras. O governador da Guiné recebe ordens para suspender as conversações com o líder senegalês. Mais tarde, Caetano resumirá epistolarmente a sua posição a Spínola, nos seguintes termos: «Para a defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné com uma derrota militar com honra do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo caminho a outras negociações.»
A resposta de Lisboa é recebida com desânimo em Bissau, onde Spínola discute desde há alguns meses com os membros mais chegados do seu staff as saídas políticas para o termo da guerra em Africa. A falta de abertura do Governo obriga a pensar em alternativas a mais longo prazo, mas, por agora, o que Spínola tem a fazer é prosseguir a guerra.
Enquanto o PAIGC resolve intensificar a sua acção, em resultado directo dos encontros entre Spínola e Senghor, o governador joga agora a sua cartada militar decisiva: o ataque massivo ao Sul, o grande bastião da guerrilha, até agora deixado ao seu controlo, praticamente desde o início da guerra.
Para lá de algum recuo dos rebeldes, para os seus «santuários», a situação não sofrerá grandes alterações até Janeiro de 1973, mês em que o PAIGC recebe o mais rude golpe da sua história: no dia 20, numa altura em que passa uma década desde o início da luta armada, Amílcar Cabral é assassinado em Conakry. As circunstâncias da ocorrência permanecerão nebulosas, mas, apesar de repetidas acusações de que Portugal se encontrava por detrás do golpe, nunca foi possível descobrir um rasto que comprovasse tal ligação. Sabe-se apenas que quem matou Cabral foram elementos do seu próprio partido, provavelmente dissidentes. Admite-se que na origem tenham estado as nunca resolvidas rivalidades no interior do PAIGC entre cabo-verdianos e guineenses (queixando-se estes da hegemonia dos primeiros), mas ignora-se quem as acicatou. Fontes do Governo português adiantaram que o próprio Sekou Touré poderia ter ordenado a acção, não só porque pretenderia que o PAIGC proclamasse unilateralmente a independência (ao que Cabral parecia opor-se), mas também porque o líder rebelde não aceitaria a sujeição incondicional do seu movimento a Conakry. Tudo ficou, porém, por comprovar.

«Strella»: os Portugueses Perdem o Céu

Ao contrário do que se poderia esperar, a guerrilha reage, com um vigor nunca até aí demonstrado. No primeiro trimestre de 1973, segundo dados oficiais, as forças portuguesas sofrem mais mortos do que em qualquer outro período idêntico na Guiné nos anos mais recentes (cento e trinta e cinco contra quarenta e oito nos três primeiros meses de 1972).
E então que, no mês de Março, surge a arma que, definitivamente, faz desequilibrar o conflito a favor do PAIGC - o míssil terra-ar Strella, de origem soviética. No espaço de poucos dias, são abatidos cinco aviões portugueses, o que deixa atónitos os comandos em Bissau, até aí habituados à inviolabilidade dos céus do território. Entre os aparelhos derrubados figuram dois caças supersónicos do modelo Fiat G 92 (pertencentes a um lote fornecido pela Alemanha Ocidental em meados dos anos 60 e concebido para as forças da NATO). A bordo de um deles, morre o ás da aviação de caça portuguesa, tenente-coronel Almeida Brito.
Desencadeia-se uma onda de pânico entre os militares portugueses: sem domínio aéreo - essencial para a cobertura das forças de superfície - será impossível resistir por muito mais tempo à pressão atacante da guerrilha. Durante semanas são suspensos os voos. Ninguém sabe como fazer frente aos Strella. São pedidas informações aos americanos, mas não há resposta imediata (na verdade, chegará três anos mais tarde). Com um avião mais veloz como o Mirage - cuja aquisição já antes fora solicitada pela Força Aérea - teria sido possível escapar a estes engenhos um pouco elementares, disparados de uma clareira, sobre o ombro de um combatente. Mas o Governo não dispunha de verbas para isso (como, de resto, também não fornecia o reforço de efectivos terrestres solicitado por Spínola).
A guerra era para ser feita à medida dos parcos recursos disponíveis pela Nação, mas estava agora claro que se dera o caso único de, num conflito desta natureza, ser a guerrilha a introduzir as novas tecnologias. Os mísseis terra-ar vinham apenas juntar-se a outros equipamentos terrestres (RPG's, morteiros de 82 mm, foguetes terra-terra de 122 mm, minas, etc.) para os quais as forças portuguesas já não conseguiam dispor de equivalente.
Aproveitando a momentânea desorientação do inimigo, o PAIGC desencadeia então ataques em força contra as guarnições de Guidaje (a norte), Guilege e Gadamael (a sul). As posições em Guidaje e Gadamael são mantidas a custo, com o recurso a forças de elite e aos melhores oficiais operacionais de Spínola. Guileje é porém abandonada precipitadamente pelo Exército, que deixa para trás uma vasta quantidade de material. O facto é amplamente explorado pela propaganda rebelde.
Entretanto, os caças voltam a voar, mas apenas e a uma altitude de segurança superior a dez mil pés (e de onde é impossível escolher alvos para bombardeamento). Os aviões a hélice, que se deslocam ao interior, são obrigados a aterrar e levantar em espiral. Quanto aos helicópteros, passam a efectuar apenas voo raso, evitando as clareiras. As bombas serão atiradas de improviso de velhos Dakota, através do orificio de que dispõem para fotografia aérea. Ao levantarem voo, os homens vão deitados em cima dos projécteis, para não rolarem pelo chão.
Nada disto evitará a rápida degradação da situação militar. A aviação possui agora zonas interditas e missões eliminadas, desprotegendo as forças terrestres. Spínola envia para Lisboa um relatório pessimista, onde reconhece a superioridade do armamento adversário e alerta para o risco de se entrar numa guerra convencional em que o PAIGC recorra a meios aéreos e blindados, contra os quais não existem eficazes meios de defesa. Parece mesmo que, na URSS, já se treinam rebeldes para a pilotagem de caças MIG. O relatório causa alarme em Lisboa e, para recolher informações mais seguras, é enviado a Bissau o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Costa Gomes. No regresso, Costa Gomes comunica ao Governo que a manutenção da Guiné ainda é possível. De acordo com as suas teses, a situação deve-se ao facto de os militares não irem para o território suficientemente informados e preparados sobre o tipo de guerra que aí se desenrola. O chefe do Estado-Maior General acha um erro continuar a sustentar posições fronteiriças, sujeitas a flagelamento contínuo sem possibilidade de retaliação. Propõe uma retracção do dispositivo de quadrícula, para longe da fronteira e apenas em volta dos centros mais importantes, deixando o resto como área de livre actuação das forças de intervenção. Em face da sua exposição, o primeiro-ministro resolve nomear como sucessor de Spínola (que já havia terminado a sua comissão e se encontrava desde o ano anterior a aguardar o substituto) aquele que era tido por muitos como o mais brilhante, competente e corajoso general português - José Bettencourt Rodrigues, que se destacara sobretudo no comando da Zona Militar Leste de Angola.
Entre 18 e 22 de Julho, o PAIGC realiza em «território libertado» o seu II Congresso, que elege Aristides Pereira como novo secretário-geral. É um passo na preparação da declaração unilateral da independência, de que se vem a falar há já algum tempo. A cerimónia terá, com efeito, lugar pouco tempo depois, em 24 de Setembro, na zona de Madina do Boé, uma localidade do Sudeste que, por razões estratégicas, havia sido abandonada pelos militares portugueses há já alguns anos. A novel República da Guiné-Bissau será de imediato reconhecida por dezenas de países.

A ocorrência de Madina do Boé acelera a partida de Bettencourt Rodrigues para a Guiné. No entanto, o novo governador e comandante-chefe nada mais terá a fazer do que gerir da melhor maneira a cada vez mais difícil conjuntura bélica. Ao contrário do que fizera no Leste de Angola, não possui agora qualquer possibilidade de negociar politicamente com o inimigo, dado o estado avançado a que o conflito já chegou. Para mostrar a dois jornalistas alemães que controla todo o território, organiza uma deslocação com eles a Madina do Boé. Mas a jactância sai-lhe cara, em virtude da amplitude dos meios empregues para a operação.Com o advento de nova estação seca nos primeiros meses de 1974, confirma-se a implacável determinação do PAIGC, tanto no Leste como no Sul (onde é conquistado o aquartelamento de Copa). Os seus comandantes acabavam de se encontrar para delinear novos planos de ataque quando, em Lisboa, a conspiração militar de 25 de Abril derruba o regime. Poucos oficiais que tenham conhecido o atoleiro guineense duvidam de que foi deste modo que as Forças Armadas portuguesas se salvaram de uma derrota no terreno. O próprio Bettencourt Rodrigues reconhecerá mais tarde a «gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no primeiro trimestre de 1974».


Em Setembro de 1973, o PAIGC proclama unilateralmente a independência - posição desde sempre defendida por Sekou Touré, mas à qual se opunha Amílcar Cabral.






BIBLIOGRAFIA



OS ANOS DA GUERRA 1961 1975
ORGANIZAÇÃO - JOÃO DE MELO - II VOL. Circulo dos Leitoes

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