sábado, 23 de maio de 2009

DEPOIMENTOS

Coutinho e Lima

Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola

Preso por ter retirado tropa e população de um quartel debaixo de intenso fogo do PAIGC, em 1973, o coronel Alexandre Coutinho e Lima protagonizou um episódio histórico na guerra colonial travada na Guiné. A sua decisão demonstrou, pela primeira vez, a penúria das condições militares e humanas com que Portugal travava uma guerra perdida. Agora quer consultar o seu processo mas os autos estão em parte incerta. Os únicos documentos que possui - e que pela primeira vez são aqui revelados, tal como fotografias inéditas do momento da saída de Guileje - são cópias das suas primeiras declarações à Policia Judiciária Militar.

Auto de corpo de delito

Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e municies; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.
Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). Eram quase seis da manha e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manha levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.
Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado as costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.
Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.
A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto a fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado a Guiné-Conacri.
Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito. A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.
A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.
Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guine submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.
Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.

Restaram as orações inscritas nas poucas pedras : "Santo Cristo dos Milagres oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos"

Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caiam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelantes do PAIGC foram praticamente incessantes.

Minhas declarações em 28 de Maio de 1973

“Durante a manhã (21 de Maio) tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao principio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram a bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou um morto e muitos danos materiais, foi informado que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."

Ou ficava e a companhia era Chacinada ou recuava. "Não fui pressionado por ninguém e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali”

A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros. A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.
É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de Abril de 1974.
Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.
Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu as duas situações mais dramáticas naquela guerra.
Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage. Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o inicio de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.
Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forcas Armadas (MFA).
Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como ate aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo.
O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.
Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano Alui Bari, que saíra de espingarda as costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.
Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.
No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manha os soldados portugueses e os milicianos guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, vem a morrer.
Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.

Adivinhava-se um morticínio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.
Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.
Limitei-me a responder que me preocupava mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da pátria.

A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.
Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.
Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. Aí, expõe a situação a Spinola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.
Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2° comandante do COP5. Chega a Guileje ao, fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.

Minhas declarações em 23 de Agosto de 1973

“A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. Com a deserção do miliciano Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até ai o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."
O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, as 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados.
Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."
Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa. Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as maquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do principio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.

Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - ”choro” -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."
Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Brá com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.
Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos. como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".
Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN.
"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.

Minhas declarações em 25 de Agosto de 1973

"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir a alínea ‘garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona’, declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."
O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spinola sobre isso!" De há 31 anos para caso ficou o silêncio.

BIBLIOGRAFIA

José Freire Antunes – A Guerra de África (1961-1974) - Circulo dos Leitores – Vol. I e II

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