sexta-feira, 31 de julho de 2009

AS GRANDES OPERAÇÕES

Operação Mar Verde

A 22 de Novembro de 1970, uma força especial constituída por comandos e fuzileiros, sob as ordens do capitão-tenente Alpoim Calvão, levou a cabo uma operação sem paralelo em toda a Guerra Colonial: a invasão de um país estrangeiro, a Guiné-Conacri, com o objectivo, entre outros, o de eliminar o presidente da República, Amed Sekou Touré, e resgatar 26 militares portugueses que, não fora isso, tão cedo ou nunca alcançariam a liberdade.
A história da Operação Mar Verde parece um filme americano - um desses filmes com Chuk Norris à frente da Força Deita numa missão militar fantástica. Com uma diferença: a história da Operação Mar Verde é verdadeira e foi protagonizada por soldados portugueses no dia 22 de Novembro de 1970.
A missão era arriscada e os objectivos ousados. Pretendia-se realizar um golpe de Estado na República da Guiné: constava do plano de operações eliminar o presidente Sekou Touré e substituí-lo por um governo favorável aos interesses portugueses. Estava previsto aniquilar instalações do PAIGC em Conacri, atacar o Campo de Milícias Populares e destruir aviões de combate. Por fim, as tropas regressariam a casa com 26 militares portugueses resgatados da prisão de Lã Montaigne.
O PAIGC, o movimento nacionalista dirigido por Amílcar Cabral, tinha as suas bases na República da Guiné - ponto de apoio fundamental que permitia aos guerrilheiros colocarem a nossa província da Guiné a ferro e fogo. O país dirigido com mão férrea por Sekou Touré era, pelo apoio que concedia ao movimento de guerrilha, considerado como um inimigo de Portugal.
O porto de Conacri, capital da República da Guiné, servia de abrigo a lanchas motorizadas do PAIGC - embarcações de grande valia para as incursões dos guerrilheiros na nossa província entrecortada por rios. Para mais, a guerrilha apoderara-se de quatro lanchas portuguesas.
No Verão de 1969, o general Spínola, governador e comandante-chefe da Guiné, estava de férias na metrópole. Alpoim Calvão, que tinha terminado mais uma operação, fez-lhe uma visita nas termas do Luso. Levava um plano arrojado: eliminar as lanchas do PAIGC, de uma assentada, no porto de Conacri - em vez de as capturar, uma a uma, em desgastantes operações de emboscada nas bolanhas da Guiné Portuguesa.
Spínola gostou da ideia - e autorizou o ataque. A operação seria desencadeada por uma equipa de mergulhadores, que fariam explodir as lanchas através de minas-lapa colocadas nos cascos. Restava um problema: Portugal não tinha nos seus paióis aquele tipo de explosivos. Mas o Governo trataria de as arranjar na África do Sul.
Alpoim Calvão viajou para Pretória, em Setembro de 1969, na companhia do chefe da delegação da PIDE em Bissau, inspector Matos Rodrigues. Os dois homens encontraram-se com pessoal dos serviços secretos sul-africanos, o Bureau of State Security (BOSS) - e regressaram com as tão desejadas minas-lapa.
Faltava ainda resolver outro problema. Não tínhamos mapas actualizados do porto de Conacri. Durante vários dias, os navios mercantes portugueses e estrangeiros que atracavam em Bissau foram discretamente vasculhados. Até que se descobriu uma carta marítima de Conacri, mas desactualizada. Mas Alpoim Calvão estava decidido. E, na madrugada de 17 de Setembro de 1969, fez uma incursão secreta nas águas do porto de Conacri: actualizou o mapa - e regressou a Bissau. Estava tudo pronto para a acção dos mergulhadores.
Alteração de planos
Milhares de dissidentes do regime ditatorial de Sekou Touré estavam dispersos pela Europa, França e Suíça, e por países africanos, como o Senegal, a Gâmbia, a Costa do Marfim. Entre os diversos grupos oposicionistas, destacava-se a Front de Liberation Nacional Guiné (FNLG).
O general Spínola colocou a hipótese de instalar no território português um ramo militar deste partido, a fim de lançar acções de guerrilha contra a vizinha República da Guiné. O ataque às lanchas no porto de Conacri seria o início de uma série de operações contra o país vizinho -, enquadradas, daqui para a frente, nas acções de guerrilha que a FNLG iria levar a cabo com o apoio das tropas portuguesas.
Pensando melhor, o general Spínola desistiu deste perigoso plano. Seguiu avisados conselhos - e abandonou a ideia de criar um grupo de guerrilha contra Sekou Touré. Receava a resposta dos países do Leste, adivinhava a total condenação de Portugal e temia pela sorte dos 26 militares portugueses capturados pelo PAIGC e encarcerados na prisão de Lã Montaigne, em Conacri.
Alpoim Calvão propôs uma alternativa a Spínola: uma única e valente operação na República da Guiné para, de uma penada, resolver todos os problemas -, matar Sekou Touré, colocar no poder um governo da FNLG, destruir alvos militares e libertar os portugueses. A cartada era demasiado alta. Mas Spínola estava disposto a arriscar. Só faltava o beneplácito do Governo. O presidente do Conselho, Marcello Caetano, após; algumas hesitações e dúvidas, acabou por aprovar o arrojado plano.
Golpe em Conacri
A operação seria comandada por Alpoim Calvão e executada por forças especiais de comandos e fuzileiros. Os preparativos começaram no final do ano de 1969. Tudo no maior dos segredos, a partir de um aquartelamento construído na Ilha de Soga, no Sudoeste da Guiné.
Alpoim Calvão e o homem da PIDE em Bissau, Matos Rodrigues, viajaram diversas vezes para Paris e Genebra, na Suíça, onde se encontraram com representantes da oposição ao regime de Sekou Touré. Missão: combinar a partida para a ilha de Soga de militantes da FNLG que viviam no exílio em diversos países africanos - e que deveriam receber apurado treino militar para participarem na operação.
Nos meses seguintes, lanchas portuguesas, pintadas com outras cores e exibindo o pavilhão do PAIGC, percorreram secretamente e a coberto da noite as costas do Senegal, da Gâmbia e da Serra Leoa. Embarcaram 200 exilados da República da Guiné -, e desembarcaram-nos na Ilha portuguesa de Soga, onde seriam treinados.
Foram escolhidos os melhores instrutores, entre fuzileiros especiais e comandos: primeiro-tenente Rebordão de Brito, segundo-tenente Benjamim Abreu, cabo Lopes Rosa, marinheiros Luís Tristão, António Augusto Silva e C. Moita, alferes Ferreira, furriéis Teixeira e Marcelino da Mata - eles transformaram os exilados guineenses num respeitável grupo de combate.
Daí a pouco, juntaram-se-lhes mais duas unidades já altamente preparadas: o Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 21, comandado pelo primeiro-tenente Cunha e Silva, e uma companhia de comandos, sob as ordens do capitão João Bacar Juló. Estas forças eram constituídas por naturais da nossa província da Guiné incorporados na tropa portuguesa. É o caso, por exemplo, de Marcelino da Mata. Foi alistado como soldado no Batalhão de Comandos Africanos e, sempre por mérito, arrecadou louvores e divisas, tornando-se no mais condecorado oficial do Exército Português. Hoje, é tenente-coronel reformado e vive nos arredores de Lisboa.
Todas as cautelas
As ordens do Governo, chefiado por Marcello Caetano, eram muito claras: as tropas portuguesas não deviam deixar o mais leve vestígio da presença em Conacri. A acção militar deveria decorrer de modo a parecer uma iniciativa dos exilados da República da Guiné.
O material de guerra utilizado também não podia ser de origem europeia - e o nosso País, mais uma vez com a ajuda dos serviços secretos da África do Sul, conseguiu obter da Checoslováquia um carregamento de espingardas-metralhadoras Kalashnikov, munições, lança-granadas e morteiros. Até as fardas era diferentes das nossas. Todo o pessoal envergava uniformes iguais aos utilizados pela tropa da República da Guiné.
Aproximava-se o grande dia da Operação Mar Verde. As unidades de combate partiam de Soga em lanchas da Armada, ao fim da tarde de 20 de Novembro de 1970 - e, na madrugada do dia 22, alcançavam o porto da capital da República da Guine. Aí, entravam em acção.
Uma coisa ainda preocupava o comandante Alpoim Calvão: não tinha um mapa actualizado de Conacri. A informação recolhida em livros e folhetos turísticos não era suficiente. Surgiu então uma boa notícia. Um fuzileiro português, de nome Alfaiate, desertara - mas arrependeu-se ao fim de escassos meses e conseguiu fugir para se entregar às tropas portugueses. Estivera em Conacri e conhecia bem a cidade. Alfaiate forneceu indicações preciosas. E foi com esse mapa que Alpoim Calvão partiu para a mais arrojada operação alguma vez levada a cabo nos 14 anos da Guerra Colonial.

Matar Sekou Touré
As forças de ataque, comandadas por Alpoim Calvão, tinham como missão matar o presidente da República da Guiné, Sekou Touré, e colocar no poder um governo favorável aos interesses de Portugal. Outros objectivos: arrasar instalações do PAIGC em Conacri, atacar alvos militares e destruir aviões de combate, libertar 26 militares portugueses da prisão de La Montaigne. Apenas um objectivo foi inteiramente cumprido. o ataque à cadeia e o resgate dos prisioneiros - sãos e salvos.
As tropas que iriam participar no ataque a Conacri treinaram durante meses na ilha de Soga, no Sudoeste da Guiné. As forças empenhadas eram uma companhia de comandos e o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, unidades exclusivamente constituídas por africanos, a que se juntaram 200 opositores de Sekou Touré. Nas vésperas da partida, o major Leal de Almeida, um dos oficiais destacados para a missão, decidiu que não devia participar - porque não achava conforme a ética e o direito o ataque a um país estrangeiro que, em boa verdade, não tinha declarado guerra a Portugal.
A decisão de Leal de Almeida criou um problema. Ele era o supervisor da companhia de comandos. E o seu exemplo contagiou as tropas. De tal maneira, que o comandante dos comandos, capitão João Bacar Juló, também hesitou. Alpoim Calvão, responsável pela expedição a Conacri, conseguiu convencer o capitão Juló - mas esbarrou na teimosia de Leal de Almeida. Calvão deu-lhe ordem de prisão - e voou com ele num helicóptero para Bissau, a fim de apresentar o caso ao comandante-chefe da Guiné, general António de Spínola.
O general estava a dormir a sesta. Não perdoava duas ou três horas de retemperador sono após o almoço e não gostava de ser interrompido no descanso. E os ordenanças evitavam maçá-lo - porque ele tinha um acordar difícil: ficava irascível.
Naquela tarde, Spínola foi mesmo acordado a meio da sesta. O general ajeitou o monóculo no olho direito e fitou os dois oficiais -à espera de uma boa justificação por ter sido incomodado a meio do sono. Calvão disse-lhe que Leal de Almeida decidira não ir a Conacri.
O comandante-chefe perdeu a compostura. O que acabara de ouvir foi tão forte como um murro na boca do estômago. Espumou de raiva. Fez intenção de esbofetear o major, insultou-o - e obrigou-o a ir. Alpoim Calvão protestou. Disse que perdera toda a confiança em Leal de Almeida e, por isso, não estava disposto a levar para uma operação delicada como aquela um oficial em quem não confiava. Mas o general Spínola, irredutível, pôs ponto final na discussão. O major seguia viagem. E, dito isto, voltou costas - e lá foi terminar a sua sesta.
Acção em Conacri
A força de ataque, embarcada em seis lanchas da Armada, levantou ferro da ilha de Soga a 20 de Novembro de 1970, às 19 horas e 50 minutos. Já era noite cerrada. As embarcações tinham sido pintadas com outras cores e exibiam o pavilhão do PAIGC. O mar estava calmo. As tropas chegaram às imediações do porto de Conacri pouco depois das nove da noite de 22 de Novembro. O comandante da operação, Alpoim Calvão, fixou então a hora de ataque: uma e meia da manhã.
As unidades de assalto estavam divididas em diversos grupos - e cada um deles tinha um objectivo bem definido. A equipa "Victor", comandada pelo segundo-tenente Rebordão de Brito, foi a primeira a desembarcar. Missão: neutralizar as lanchas rápidas atracadas num molhe e armadas com metralhadoras quádruplas. O grumete fuzileiro Abu Camará, armado de faca, matou silenciosamente a sentinela - o que permitiu a entrada a bordo das lanchas. As primeiras três foram destruídas à granada sem a mais leve resistência. A seguir, o grupo de assalto atravessou velozmente uma ponte - e, debaixo de fogo, atirou-se a mais três navios, que foram destruídos. Sofreu apenas dois feridos ligeiros.
Quando a equipa "Victor" iniciou o ataque às primeiras três lanchas, um outro grupo de assalto tomava posições em terra - era a equipa "Zulu". Dividiu-se em três unidades.
Uma, comandada pelo primeiro-tenente Cunha e Silva, dirigiu-se à prisão de La Montaigne. Houve forte tiroteio. Mas os 26 prisioneiros foram libertados.
Outra, sob as ordens do sub-tenente Falcão Lucas, atacou e destruiu cinco edifícios ocupados por quadros do PAIGC, rebentou com meia dúzia de carros e abateu alguns militantes do movimento liderado por Amílcar Cabral.
A terceira, comandada pelo segundo-tenente Benjamim Abreu atacou a residência de Sekou Touré. De acordo com informações recolhidas pela PIDE, o Presidente da República da Guiné deveria estar em casa. Uma sentinela tombou sem vida, atingida por uma rajada de metralhadora disparada pelo cabo fuzileiro Costa Deitado. O edifício era constituído por dois blocos.
Um grupo formado pelo segundo-tenente Benjamim Abreu, pelos cabos Costa Delgado e Telmo e pelos grumetes Aurélio Azinhaga e Augusto Có entraram no edifício percorreram-no de uma ponta a outra, à procura de Sekou Touré, para o matar. Mas não encontraram ninguém: a casa estava impecavelmente arrumada a as camas estavam feitas. O Presidente escapou de morte certa. O segundo-tenente Benjamim Abreu cumprindo escrupulosamente o plano de operações, ordenou a destruição do edifício com granadas-foguete e granadas de mão.
Enquanto a casa de Sekou Touré ardia numa gigantesca bola de fogo, o grupo comandado por Benjamim Abreu progredia em direcção ao campo da Milícia Popular, a escassos 100 metros dali. Travaram-se os mais violentos combates de toda a operação. O grumete fuzileiro Augusto Có fez dois disparos com o lança granadas-foguete - e os projécteis caíram em cima das casernas das milícias e provocaram um número elevado de mortos. Nesta altura, surgiram três inimigos armados - que foram abatidos: um por Benjamim Abreu; outro pelo cabo Costa Deitado; e o terceiro pelo grumete Aurélio Azinhaga. Na confusão da batalha, aparece um carro da marca Volkswagen. O automóvel foi atacado pelas tropas portugueses e o condutor varado por uma rajada de metralhadora. A vítima era um homem da República Federal da Alemanha.
Os ataques foram lançados contra os diversos objectivos com intervalos cirúrgicos de escassos minutos. Ainda a equipa "Zulu" combatia na cadeia de La Montaigne, na residência de Sekou Touré e no Campo das Milícias - a equipa "Oscar" constituída por soldados portugueses e guineenses oposicionistas de Sekou Touré, e encabeçada pelos alferes Ferreira e Tomás Camarã, atacam o quartel da Guarda Republicana. As tropas de assalto sofrem a primeira baixa: o alferes Ferreira, quando tentava dominar uma sentinela, caiu perpassado por uma rajada de arma automática. Valeu a determinação do furriel Marcelino da Mala, urna verdadeira máquina de guerra. Mergulhou através das vidraças da casa da guarda - e, quando caiu lá dentro, no meio da confusão de vidros partidos, matou os oponentes a tiro. Marcelino da Mata abriu os portões do quartel. E o resto do grupo entrou de rompante e tomou posições de modo cobrir todas as saídas das casernas: os guardas foram abatidos quando tentaram sair, outros fugiram na escuridão da noite. Os portugueses libertaram então umas centenas de presos políticos, todos naturais da República da Guiné, e entregaram o quartel aos homens que se opunham ao regime de Sekou Touré.
Portugueses em liberdade
A grande coroa de gloria da Operação Mar Verde, a mais temerária de todas as que foram conduzidas na guerra de Africa, foi ganha coma libertação dos 26 militares portugueses que, se não fosse o ataque a Conacri, tarde ou nunca seriam libertados.
Pouco depois das duas horas da manhã de 22 de Novembro de 1970, já as tropas portuguesas tinham posto a cidade de Conacri a ferro e fogo. Os ataques contra os diversos objectivos foram lançados pelos vários grupos de assalto, com intervalos de escassos minutos. Ainda a equipa Zulu combatia na cadeia de La Montaigne, na residência de Sekou Toure e no Campo das Milícias, e a equipa Óscar atacava com êxito o quartel da Guarda Republicana, a equipa Índia rebentava com a central eléctrica e a equipa Mike arrasava o Campo Militar Samory.
Explosões sacudiam a cidade. Conacri apenas era iluminada pelos relâmpagos dos disparos e pelas labaredas em que ardiam os alvos atacados pelos portugueses.
O grupo Sierra, comandado pelo capitão pára-quedista Lopes Morais, tinha como missão atacar o aeroporto e destruir os aviões de caça Mig, de fabrico soviético. Era imprescindível pô-los fora de combate a fim de as lanchas portuguesas não serem perseguidas e atacadas no regresso a Bissau.
O capitão Morais coxeava: aleijara-se num salto de pára-quedas, semanas antes, e o esforço agravara a lesão. Ainda assim, forçou a marcha a caminho do aeroporto. Segunda contrariedade: verificou que o tenente Januário tinha fugido com um pelotão de 20 comandos. "O tenente fugiu com 20 homens, traiu-me miseravelmente", disse ele pelo rádio ao comandante da operação, Alpoim Calvão. Mas, naquela altura, só uma coisa importava: localizar os Mig e destruí-los.
O aeroporto estava rodeado de arame farpado. Cortaram o arame e entraram. Percorreram a placa e a pista. Nem sinal dos Mig. Apenas dois aviões comerciais Caramelos da companhia Air Afrique e quatro aparelhos civis bi-motores tipo Fokker 27. Vasculharam os hangares. Nada. O comandante da operação, Alpoim Calvão, deu pelo rádio ordem de retirada.
Entretanto, um outro grupo de assalto, a equipa Alfa tinha conseguido entrar no palácio presidencial, à procura de Sekou Toure. O enorme edifico estava deserto.
A caminho de Bissau
Pelas quatro e meia da manhã, o comandante Alpoim Calvão ordenou que todas as equipas de combate ainda em terra regressassem ao porto de Conacri de modo a embarcarem nas lanchas de regresso a casa.
A maior parte dos objectivos da Operação Mar Verde não foram alcançados. O presidente Sekou Toure não fora encontrado e eliminado, os alvos do PAIGC foram atingidos em parte, os aviões Mig não chegaram a ser postos fora de acção. O êxito do golpe de Estado, outro propósito da operação, dependia da capacidade das centenas de opositores de Sekou Toure que, como estava previsto desde o início ficavam a combater na cidade. Aguentaram-se durante oito dias até que foram dominados pelas forças leais a Sekou Touré. Mas a grande coroa de glória do ataque a Conacri foi ganha com a libertação dos 26 militares que, não fora isso, tarde ou nunca seriam libertados.
Cerca das nove da manhã do dia 22, todas as equipas de assalto tinham sido embarcadas. Uma das lanchas foi atacada por quatro morteiros disparados de terra. Mas essa boca de fogo acabou por ser calada pela artilharia de uma outra embarcação portuguesa. Alpoim Calvão esperava a todo o momento que os aviões Mig lhe caíssem em cima. Mas o regresso a casa decorreu sem incidentes. A força de ataque chegou à Ilha de Soga cerca das quatro e meia da tarde de 23 de Novembro.
No dia seguinte, os 26 portugueses libertados foram de barco para Bissau. O Governador e comandante-chefe, general António de Spínola, esperava-os no porto. De todos os prisioneiros, o então sargento aviador António Lobato era o que estava mais cansado: passara quase sete anos e meio nas mãos do PAIGC. Spinola despiu a gabardina e agasalhou-o.
Lobato fora capturado na região de Catió, no sudoeste da Guine. Tinha participado, aos comandos de avião T-6, numa missão de bombardeamento da Ilha de Como. Chocou contra outro aparelho - que se despenhou imediatamente e matou o piloto. O sargento Lobato, com as hélices destroçadas, conseguiu aterrar. Mas foi cercado pela população com ganas para o linchar. Foi severamente atingido por uma coronhada na cabeça - e ainda hoje carrega essa marca. Foi salvo por guerrilheiros do PAIGC.
Os dirigentes do PAIGC tentaram convencê-lo a declarar-se solidário com o movimento de libertação a troco de ir viver para um país do Leste. Lobato recusou. Foi libertado da prisão de La Montaigne, na madrugada de 22 de Novembro de 1970, por um grupo de fuzileiros especiais comandado pelo primeiro-tenente Cunha e Silva.
Governo nega tudo
Por causa do ataque a Conacri, Portugal foi duramente criticado pela comunidade internacional. O nosso país era acusado de um acto de guerra e violação das fronteiras de um Estado soberano. Os atacantes praticamente não deixaram provas materiais no terreno, mas foram denunciados pelos soldados desertores e pelas forças de oposição guineenses que acabaram por sucumbir às tropas de Sekou Toure. Ainda assim, o Governo chefiado por Marcello Caetano sempre negou com todas as forças que a temerária Operação Mar Verde alguma vez tivesse sido levada a cabo.
Após o regresso a Portugal dos militares libertados em Conacri, o Governo bateu-se por convencer o Mundo a acreditar numa fantástica história de heroísmo: eles teriam fugido sozinhos da prisão de La Montaigne. O sargento António Lobato foi levado à televisão para ser entrevistado por José Mensurado. O aviador fez o que lhe tinha sido exigido: negou, com inabalável segurança, o envolvimento de tropas portuguesas na libertação dos prisioneiros de La Montaigne - ele e os companheiros de reclusão, disse, escaparam pelos seus próprios meios.
A Operação Mar Verde provou a capacidade operacional das forças especiais portuguesas. Mas deixou a descoberto a impreparação da PIDE, a policia politica do regime, para o aturado trabalho de recolha de informação classificada. As forças de assalto desembarcaram em Conacri, atingiram os alvos que constavam do plano de operações mas não encontraram nesses locais aquilo que a PIDE lhes garantira que iriam encontrar. As informações não eram exactas.

O Rambo da Guiné
Marcelino da Mata, guineense de etnia papel, tinha 19 anos quando um irmão, que andava fugido da tropa, lhe pediu que fosse ao Centro de Recrutamento em Bissau saber em que situação se encontrava. Marcelino foi e o sargento não perdeu tempo: "O teu irmão faltou, mas to ficas cá".
Assim começou a carreira militar de Marcelino da Mata. Foi incorporado nos comandos. Tornou-se numa verdadeira máquina de guerra. Começou no posto de soldado e, ao longo dos anos em que participou em 2.414 operações nas matas e bolanhas da Guine, nunca deixou de ser promovido, sempre por distinção. "O Marcelino era um combatente terrível. Não vi outro igual. O Rambo ao pé era uma criança. E não estou a ser espirituoso, é verdade", diz um oficial que o viu muitas vezes em acção. A sua extensa folha de serviços, de resto, não deixa mentir.
Hoje, com 63 anos, Marcelino da Mata é tenente-coronel na reforma. É o oficial mais condecorado do Exército: uma Torre e Espada, três Cruzes de Guerra de 1ª classe, uma de 2ª classe, e outra de 3ª classe. Aos louvores por actos de bravura em combate já lhes perdeu conta: são, seguramente, para cima de 40.
Ganhou as primeiras Cruzes de Guerra (uma de 1ª classe, outra de 2ª classe) na Operação Tridente, em 1964, no ataque a Ilha do Como, na Guiné. Mas a recebeu em 1967. Foi a primeira vez que pisou a Metropole. Nesse tempo, a 10 de Junho, comemorava-se o Dia da Raça. O regime condecorava os herois das campanhas de África numa monumental parada no Terreiro do Paço. Era a primeira vez que um negro recebia tão honrosas condecorações. E Salazar, que deixava a honraria da imposição das medalhas ao Presidente Américo Tomás, dessa vez fez questão de estar prresente - e foi ele quem condecorou Marcelino da Mata.


BIBLIOGRAFIA
OS ANOS DA GUERRA COLONIAL (1961 - 1974)
Manuel Catarino - Jornal 24 Horas

quarta-feira, 29 de julho de 2009

NOTÍCIAS



CNE revela resultados das eleições
Guiné-Bissau: Malam Bacai Sanhá é o novo Presidente guineense

Bissau - Bacai Sanhá, apoiado pelo PAIGC, venceu a segunda volta das eleições presidenciais antecipadas realizada no passado domingo, anunciou esta quarta-feira a Comissão Nacional de Eleições (CNE) guineense.Segundo a CNE, Malam Bacai Sanhá venceu com 224.259 votos, 63,52 por cento, contra os 129.963 obtidos por Kumba Ialá, apoiado pelo Partido de Renovação Social (PRS).
Os dois candidatos tinham assinado um memorando de entendimento em que se comprometem a aceitar o resultado da segunda volta do escrutínio.Taxa de abstenção foi de 39 por cento, ligeiramente à da primeira volta, realizada no dia 28 de Junho e que foi de cerca de 40 por cento. O candidato derrotado, Kumba Ialá, dará hoje à tarde uma conferência de imprensa, na sua residência.

NOTÍCIAS



Quero dar os parabéns ao meu amigo Carlos Ventura, enfermeiro da CCS do Batalhão de Caçadores 2885, pela sua persistência em adquirir uma sede para a Associação de Combatente do Concelho de Arganil.
O Ventura é um dos homens da comissão que organiza os encontros de confretanização do Batalhão, não querendo tirar mérito aos outros componentes da organização e o meu amigo Azevedo que me desculpe, mas o Ventura é a "alma" da organização.
Por tudo o que ele tem feito para honrar a memória dos Combarentes, principalmente do cocelho de Arganil, merece todos os elogios que lhe possam ser dirigidos. Conheço o Ventura desde a especialidade em Coimbra, já lá vão muitos anos.
Mais uma vez, parabéns Ventura




sábado, 25 de julho de 2009

DEPOIMENTOS


Libertar Guidage

ALMEIDA BRUNO

Spínola chegou à Guiné quando havia um empate militar com o PAIGC e quis retomar a iniciativa para negociar a paz numa posição de força. A solução política passava pelo diálogo com Amílcar Cabral, Leopold Senghor como intermediário, e pela eleição de Spínola para presidente da República: o desejado De Gaulle português. No chão manjaco, com a morte dos três majores que negociavam com bigrupos do PAIGC, passou-se simbolicamente dos centuriões para os pretorianos.
O general João de Almeida Bruno foi um dos mais dilectos colaboradores de Spínola na Guiné e comandou o batalhão de comandos africanos. Participou em numerosas acções, entre as quais a Operação Ametista Real, para libertar a guarnição de Guidage. Desmente o controlo territorial que foi apregoado pelo PAIGC, mas reconhece que a guerrilha ganhou credibilidade internacional. Ante o bloqueio de uma solução política, o derrube do regime foi para este spinolista a única saída.
O projecto spinolista Guiné Melhor incluiu uma intervenção específica no chão manjaco e negociações com bigrupos de guerrilha. O resultado foi a morte dos três majores encarregados do diálogo. Almeida Bruno esteve com o general na mata durante os contactos com os chefes do PAIGC. E veio a Lisboa lutar pela candidatura de Spínola à Presidência da República. Caetano não quis arriscar.
Em 1968, quando o brigadeiro chegou à Guiné, a situação militar caracterizava-se, do meu ponto de vista, da seguinte forma: as forças portuguesas tinham perdido a iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade de movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais - pára-quedistas, fuzileiros e alguns grupos de comandos. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura da área, o que implicou a disseminação da tropa ao de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção. Na visitei, com o então brigadeirobrigadeiro Spínola, todo o teatro de operações, todos os pontos ocupados pela tropa e todas as tabancas - mesmo as que não tinham tropa - e a noção que tenho é que as nossas unidades não saíam dos quartéis. Remetiam-se, com grande estoicismo e bravura, a serem bombardeadas dia sim, dia não, mas não havia da nossa parte a mais pequena iniciativa; os pára-quedistas, fuzileiros e comandos, esses sim, faziam operações. Mas na verdade podia dizer-se que estávamos empatados com o PAIGC. A primeira coisa a fazer era ganhar a iniciativa e, para isso, concentrar meios e remodelar o dispositivo. Logo nas primeiras directivas percebeu-se que era essa a ideia do brigadeiro António de Spínola: ter liberdade de acção, ou seja, capacidade de iniciativa, um dado essencial na guerra. Não se podia jogar à defesa - a defesa era um estado preparatório para a ofensiva. Na Guiné, estávamos na defensiva. Por isso, a doutrina militar de Spínola foi primeiro concentrar meios para depois ganhar a iniciativa. Ele dizia que, concentrados os meios, ganhávamos capacidade de acção e passaríamos ao ataque; porque só a ofensiva conduzia à vitória. Houve também uma reforma profunda nas forças especiais, que passaram para o comando directo do comandante-chefe.
O Luís Cabral afirma que Spínola não queria fazer a paz na Guiné, mas incrementar a guerra. É rigorosamente verdade o que ele diz. Mas tem de se perceber porque é que se devia passar à ofensiva: é que não se negoceia em situação de inferioridade. O nosso brigadeiro pretendia aumentar a actividade operacional e ela foi incrementada para que nós, ao retomarmos a iniciativa e ao dominarmos o teatro de operações pelas armas, pudéssemos dialogar com o PAIGC numa posição de força. Não era querer fazer a guerra pela guerra. Muita gente diz, por maldade, que António de Spínola acabou por ser arrastado por nós, os elementos do seu staff. Eu digo que é mentira. Conversei muitas vezes com o brigadeiro Spínola antes de embarcarmos e sei que ele, quando foi para a Guiné, levava já uma ideia que era consequência do que ele tinha vivido em Angola, de alguns anos de meditação aqui, do curso de altos comandos que fez para ser promovido a brigadeiro. Ou seja, ele reformulou as ideias que tinha quando tenente-coronel comandante de batalhão (fazia a guerra pela guerra) e quando foi nomeado por Salazar, já não estava totalmente de acordo com ele. Nós embarcámos em Maio de 1968 e dois meses antes, em Março, ele teve uma conversa com Salazar, em São Bento.
Eu fiquei cá fora, não assisti à conversa, mas acompanhei o senhor brigadeiro porque nessa altura já tinha sido convidado por ele para ajudante-de-campo. Chegámos a casa dele e, no escritório, ele disse-me «O presidente do Conselho continua a pensar que é matando pretos que se ganha a guerra. Eu até lhe contei a história das pulgas. Disse-lhe: "O senhor presidente do Conselho, sabe que este tipo de guerra é muito complicado. Suponha que há um palheiro que não arde e senhor presidente do Conselho está a dormir no palheiro. E duas pulgas mordem-no. O senhor não pegar fogo ao palheiro porque ele não arde, e anda à procura das pulgas. Já viu o que é descobrir duas pulgas num palheiro? A guerra subversiva é assim: nós somos poderosíssimos, só que as pulgas passam vida a morder-nos. Como não conseguimos destruir o palheiro, acabamos por abandoná-lo todos picados e não resolvemos nada.” Está a ver ó Bruno? O presidente do Conselho é mesmo do século passado.»
Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da Guine Melhor é dele e o único caminho para a vitória final. Mas é evidente que teve um staff excepcional, com homens de grande gabarito, como Saraiva de Carvalho, que foi esplêndido naquilo que fez, o Firmino Miguel, o Carlos Fabião e muitos outros. Mas a ideia era genuinamente dele porque a aprendeu. Estudou, leu, quando se preparou para o curso de altos comandos. Salazar viu em Spínola o tenente-coronel António Sebastião que, em tronco nu. de monóculo e pingalim, arrasava completamente a mata aos tiros. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem que já tinha meditado muito sobre esta «nova» guerra. O nosso Marechal fez asneiras políticas de palmatória. Mas não lhe podemos tirar a virtude - ele viu muito bem que aquela guerra só se resolvia no plano político. Aliás, era fácil conclir isso porque bastava meditar sobre o que se tinha passado no Vietname, na Argélia, ou no Quénia, onde houve soluções mas políticas. Foi teimozia da classe política portuguesa, aqui de Lisboa, que não quis meditar sobre isto. De facto, a actividade operacional foi incrementada - o PAIGC tem razão - porque o nosso brigadeiro queria estar por cima para poder negociar. Ninguém negoceia de cócoras, senão fazem-nos chichi em cima.
Estávamos fora de Bissau, em Bigene, quando veio a comunicação de que Salazar teve o acidente vascular cerebral. Regressámos logo a Bissau. O desaparecimento de Salazar da cena abriu perspectivas a Spínola, que foi promovido a general e pôs de pé o seu projecto. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970: tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias. A estratégia de Spínola era pôr de pé o sonho que ele e o grupo que o acompanhou na Guiné tiveram para resolver o problema colonial português: era a independência dos territórios, a seu tempo, gradualmente, step by step, de acordo com a dimensão territorial e desenvolvimento social, económico e financeiro. Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios, não como foi feita, mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano. O nosso general pensou que era vantajosa a situação política já que Marcello Caetano, muitos anos antes, tinha dito a Salazar que a solução para o império português era uma solução de descentralização numa primeira fase, de federação numa segunda, e logicamente de independência e de criação da comunidade lusófona. Este era o projecto do general Spínola, que o Portugal e o Futuro não desmentiu.
Claro que foi muito atacado, e hoje dizem que saiu fora de tempo, e há quem defenda que devíamos ter combatido até ao último homem, ou que se deveria ter entregue tudo. Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos, e para nós também. Em resumo, o dispositivo foi concentrado, fizemos várias acções fora do nosso território nacional, e retomámos a iniciativa. Eu fiz algumas operações fora do território nacional, a última das quais foi a Operação Ametista Real, sobre a base de Kumbamory. Tudo isto com um só objectivo - colocar o PAIGC em inferioridade militar acentuada, para podermos negociar numa posição de força.
Paralelamente foi desencadeada uma grande acção chamada «A Guiné Melhor», uma acção de natureza política que estava a ser ensaiada e concretizada no chão manjaco. Foi no chão manjaco que abrimos o diálogo com o PAIGC e foi no chão manjaco que se deu o primeiro encontro entre o governador e comandante-chefe das Forças Armadas e comandantes dos bigrupos do PAIGC que actuavam naquela área. Eu estive em duas dessas reuniões no mato, sozinho com o nosso marechal. Ali se iniciou o diálogo mas, entretanto, mantendo nós a posição de força. No teatro de operações, os vitoriosos da guerra éramos nós e não o PAIGC. A ideia era fazer, paralelamente, contactos com o Senghor. O embaixador João Diogo Nunes Barata e o José Blanco são homens que conhecem bem isto porque trabalhavam directamente com Spínola. Eu nessa altura já estava um pouco à margem do plano político, já que regressei à Guiné para ser comandante do Batalhão de Comandos e chefe do Centro de Operações Especiais. A minha actividade operacional era muito intensa e as minhas preocupações já não eram tão políticas como nos primeiros dois anos, em que fui chefe de gabinete e ajudante-de-campo de Spínola. A operação no chão manjaco era vital para nós: era começar a puxar a ponta, contactar o Léopold Senghor, os bigrupos, usar o prestígio do agrupamento operacional comandado pelo coronel Alcínio Ribeiro, pára-quedista, que já morreu. E três pedras basilares, três majores fundamentais: um de intelligence, um sonhador, o Pereira da Silva; um operacional, o homem que puxava os cordéis da «guerra», o Osório; e um major de eleição, sonhador mas pragmático, o Passos Ramos. Estes três homens eram peças fundamentais da política de abertura ao diálogo com o PAIGC.
O Luís Cabral mente quando diz que o PAIGC nos enganou na questão do chão manjaco. O chão manjaco foi completamente dominado por nós e a morte dos majores foi uma barbaridade cometida pelo PAIGC que, reconheço, não tinha outra saída. Eu acho que ele mente porque não tem a coragem de dizer: «Nós não tínhamos outra saída senão decapitar aqueles senhores que nos estavam a prejudicar.» Como é que eles dizem que queriam prender o general Spínola e assassinaram cinco pessoas que foram ao encontro de chefes militares, completamente desarmados? Se um dia falar com Luís Cabral dir-lhe-ei: «O senhor, para além de mentir, não assume a responsabilidade dos actos do seu partido. Eu percebo perfeitamente que o senhor, com a corda na garganta como estava, não tinha outra saída: ou decapitava o comando do agrupamento operacional e dava cabo daquele grupo, ou tinha os bigrupos do chão manjaco a combater connosco. Tal como em Angola, o Savimbi combateu a nosso lado contra o MPLA.» O chão manjaco foi, quanto a mim, o fim dos centuriões e o começo dos pretorianos como nos livros do Lartéguv, que marcaram muito a minha geração. O PAIGC foi encostado à parede e não tinha outra saída senão aquela que foi catastrófica para nós, porque no plano político perdemos a capacidade de diálogo com o PAIGC Embora Spínola tivesse reiterado, com vigor, que não haveria alterações à política de diálogo com o PAIGC para encontrar uma plataforma negociada, nós perdemos uma boa oportunidade.
Eu tinha estado com o general Spínola no mato, em diálogo com PAIGC, sentado com uns três ou quatro. Estivemos a conversar. As conversas eram na base de que os bigrupos do PAIGC no chão manjaco acreditavam na nossa boa fé. Queríamos uma negociação dentro da perspectiva de que Amílcar Cabral seria o futuro governador da Guiné, substituindo ogeneral Spínola e, numa fase mais avançada, haveria autonomia e eleições no território, criando-se uma assembleia própria e, finalmente, a independência quando eles quisessem ou estivessem preparados. Nós tínhamos que começar por uma ponta. É evidente que isso seria um grande desequilíbrio no plano militar: se no teatro de operações o PAIGC soubesse que dois bigrupos do chão manjaco se passavam para o nosso lado, aquilo tudo caía como um baralho de cartas. Mas foi a partir do desaparecimento daquela equipa que tudo começou a correr mal. Se eu estivesse do lado de lá, eu era capaz, infelizmente, de ter feito a mesma coisa. Eles estavam muito receosos. Fiz estudos profundos sobre o perfil psicológico do grande líder do PAIGC que foi o Amilcar Cabral. Nem o Luís Cabral nem o Nino Vieira valiam uma unha do pé do Amílcar Cabral. O Nino valia só para dar tiros. Amílcar Cabral era um homem profundamente português, tinha a visão de que, sendo independente, podia continuar a ser português. Mas a ala mais pró-soviética e mais agressiva do PAIGC receou que o Amílcar fosse à fala com Spínola porque a ponte era feita por um homem de alto prestígio na África negra, o presidente Leopold Senghor, que estava interessado em juntar António de Spínola e Amilcar Cabral. A ala soviética, quanto a mim, era dirigida por José Araújo, que devia ser do KGB. Se não era, era pelo menos o mais pró-soviético, o mais antiportuguês e o mais raivoso. Até o Pedro Pires era mais flexível, como vim a verificar anos mais tarde quando em Londres, integrado na comissão portuguesa chefiada por Mário Soares, tomei parte nas negociações Portugal-PAIGC.
Estou convencido de que o Amílcar apoiava o diálogo, mas não apoiaria o que nós queríamos fazer à nossa maneira, a começar pelo chão manjaco. O Amílcar queria encontrar-se no Senegal com Spínola e, a partir daí, dialogar, provavelmente criando uma plataforma de cessar-fogo e depois iniciar negociações onde ele, à partida, iria pôr em cima da mesa a independência. O Amílcar iria sentar-se do lado de lá e isso já seria uma vitória nossa. Mas quando ele se sentasse do lado de lá tinha que ter a noção que, no plano estritamente militar, nós estávamos por cima, ou ele jogava logo os jokers todos. É muito possível que pudéssemos entrar numa plataforma de entendimento neutral, tendo a guerra um ponto de paragem, estabelecendo-se um diálogo. Eu até aceito que fosse para a independência, mas de uma forma diferente daquela que foi feita na realidade. Mas, para isto se concretizar, era necessário que em Lisboa estivesse um De Gaulle. Lisboa não nos apoiava. Na Guiné, o staff que trabalhava com o nosso general sentiu isso. Então dissemos: «Se não temos em Lisboa um De Gaulle, estamos tramados porque, mesmo que se consiga um diálogo, vão-nos tirar o tapete. Não temos legitimidade para negociar com o PAIGC em nome do Estado português. Então, temos de pôr em Lisboa um De Gaulle que se chama António de Spínola.» Por isso preparámos a candidatura do general Spínola às eleições presidenciais de 1972, ganhas pelo Américo Tomás. Daí se explica termos tentado urdir uma teia por forma a que Marcello Caetano aceitasse Spínola como candidato à Presidência da República, porque ele ganhava as eleições, com batota ou sem batota. Naturalmente, naquela altura, até ganhava sem batota, porque era um homem com prestígio e principalmente porque iria dizer que uma das coisas que queria era resolver o problema do império através do diálogo. Esse tipo de contactos tive-os eu, pessoalmente, com o general Venâncio Deslandes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Deslandes apoiou.
Essas ligações foram feitas através de vários emissários que chegaram a Marcello Caetano. E quando Marcelo Caetano recebeu o projecto para a solução do problema ultramarino, era no pressuposto de que o presidente da República fosse o homem que tinha capacidade de, em termos de Estado, assumir o diálogo não só com o PAIGC, mas também com os outros grupos de Angola e Moçambique. Eu tive uma reunião em casa do Francisco Pinto Balsemão, em que estava este, Magalhães Mota e Rogério Martins. Disse-lhes o que pensávamos e a necessidade de fazermos de Spínola presidente da República, para depois agarrar no problema do Ultramar. No Porto, Carlos Azeredo falou com Francisco Sá Carneiro, e pôs a mesma questão. Eu próprio fui ao Porto. Entreguei a Marcello Caetano, em casa dele, o nosso projecto da solução para o Ultramar, que em linhas muito gerais apontava para negociações destinadas a encontrar a tal plataforma: regiões autónomas, uma federação de estados. O Francisco Sã Carneiro defendia que se tinha que encontrar uma solução política para o Ultramar. Eu disse-lhe: «Nós também pensamos isso. Não é aos tiros que nós resolvemos o problema do Ultramar. Mas é necessário que o general Spínola seja o presidente da República porque é o nosso De Gaulle. Cá não temos o De Gaulle, mas Casal-Ribeiro e companhia limitada.» Tudo isto falhou porque Marcello Caetano não quis correr o risco. Foi sempre um homem muito hesitante. De tal modo que as cartas trocadas entre ele e Spínola foram mudando de tom, até Spínola receber mesmo uma directiva concreta de encerrar as negociações com o PAIGC. Mas as primeiras cartas entre eles não foram assim. Marcello Caetano foi à Guiné - a Ana Maria Caetano foi com ele - e lembro-me perfeitamente de que as conversas foram boas entre os dois, até porque o Marcello tinha tido um pensamento idêntico ao de Spínola. Eu penso que Marcello teve receio de que se Spínola fosse eleito presidente o demitiria das suas funções, e iria buscar para presidente do Conselho Adriano Moreira ou Veiga Simão.
Nega que o PAIGC tivesse um governo no Boé e que dominasse as áreas territoriais que reivindicava. Mas o movimento de Amílcar Cabral fortaleceu-se no plano internacional, enquanto Lisboa rejeitava uma solução política para a Guiné. Os comandos africanos usavam armas soviéticas capturadas ao PAIGC. O fim da supremacia aérea ocorreu com a entrada em acção dos Strela.
Fui para a Guiné em 1968 como secretário e ajudante-de-campo de Spínola. Depois estiveram como secretários, o Neto, Nunes Barata e José Blanco. Vim ao Continente fazer umas férias e regressei, já major, como chefe do Centro de Operações Especiais. Levantei o batalhão de comandos africanos. Fui o seu primeiro comandante, entre Maio de 1968 e Julho de 1970. Acho que o Exército português estava bem equipado para o tipo de guerra no teatro de operações da Guiné.
A Força Aérea estava bem, a Marinha e as forças terrestres também. O meu batalhão de comandos africanos estava muito bem equipado. Todo o material que tínhamos era o melhor material soviético que existia, e que foi capturado ao inimigo. A razão é muito simples: nós actuávamos quer dentro do Senegal quer dentro da Guiné-Conakry e não podíamos ir com armamento português. A Kalashnikov, a Degtyarev e os RPG 3 e 7 eram excelentes armas. As milícias também estavam equipadas com armamento capturado. Militarmente nós atingimos o topo no teatro de operações, de tal maneira que conseguimos reequiparmo-nos com o material capturado ao PAIGC em combate.
A acção mais significativa do batalhão de comandos africanos foi a Operação Ametista Real. Mas fiz dezenas de operações importantes, largas dezenas de minioperações com o Centro de Operações Especiais, quer no Senegal quer na Guiné-Conakry. Foram acções com um grande êxito, porque criavam um clima de instabilidade junto da fronteira, na medida em que minávamos os acessos à nossa fronteira do lado de lá e destruíamos algumas pontes. As operações eram comandadas por mim, directa ou indirectamente, ou pelo António Ramos do COE e Matos Gomes ou Raul Folques do Batalhão de Comandos. Mas as operações do batalhão foram quase todas comandadas por mim, no terreno. No COE, algumas eram comandadas por mim, outras pelo António Ramos e sempre com o Marcelino da Mata. As operações de comandos com nomes de pedras preciosas foram todas comandadas por mim: Ametista Real, Safira, Diamante, etc. Era uma mania. As do COE tinham outros nomes, porque o António Ramos gostava dos nomes «esquisitos»: Operação Nadia, em Agosto de 1971, Operação Zavenda, em Maio de 1972. O PAIGC tinha mérito, eles não brincavam em serviço. Destaco a Operação Ametista Real, a última que comandei. Em 16 de Maio de 1973 fui chamado de urgência ao comandante-chefe que me traçou o panorama da guarnição militar de Guidage, na fronteira norte com a República do Senegal: estava isolada por via terrestre, dados os fortíssimos campos de minas lançados pelo inimigo. Tinham resultado daí dois insucessos com colunas logísticas, enquadradas por tropas pára-quedistas, e havia grandes dificuldades no reabastecimento aéreo e na evacuação de feridos, dado o dispositivo antiaéreo montado pelo inimigo com mísseis terra-ar Strela. Havia ainda um grande desgaste físico e psicológico da guarnição militar. Era por demais evidente que o PAIGC pretendia levar a efeito um assalto final a Guidage, para retirar dividendos políticos internos e externos.
Tornava-se necessário efectuar uma operação que aliviasse a pressão sobre Guidage e só um ataque à base inimiga de Kumbamory, situada em território senegalês, junto à fronteira (quatro a seis quilómetros) teria resultado. A missão foi dada de forma clara e simples - atacar a base de Kumbamory para, no mínimo, desarticular o dispositivo inimigo. Sendo possível, destruir a base ou, no mínimo, provocar o maior número de baixas em pessoal e destruição de material. Decidiu-se transportar a unidade por meios navais de Bissau para Bigene, lançar uma operação de curta duração, por infiltração terrestre, por forma a atacar a base inimiga a partir de uma base de ataque situada já em território senegalês, se possível de oeste para leste. Posteriormente, deveria fazer-se a limpeza da região de acesso a Guidage. Viu-se que não eram possíveis as evacuações por helicóptero e decidiu-se que feridos e mortos teriam que ser transportados para Guidage sem meios auxiliares e que o reabastecimento em munições, a ser feito, teria de se realizar por aproveitamento dos paióis inimigos detectados. Quanto à localização pontual do objectivo, como era normal, nada se sabia. Era na área da povoação de Kumbamory. Chegados lá, havia que o descobrir. Assim, na tarde de 19 de Maio o batalhão de comandos embarcou para Bigene, via marítima, tendo chegado ao local ao fim da tarde. Foram constituídos três agrupamentos, com uma companhia de comandos africanos cada, comandados pelo capitão Raul Folques, capitão Matos Gomes e capitão António Ramos. Neste último estava integrado o Grupo Especial do COE (25 homens) especialista em demolições. Foi também neste terceiro agrupamento que me integrei. O batalhão entrou em território senegalês às seis horas. Entretanto, a artilharia de Bigene desencadeou várias concentrações sobre a área do objectivo, mais como manobra de diversão do que como forma de destruição, dado que não se conhecia exactamente a localização da base inimiga. Pelas sete e meia os agrupamentos estavam dispostos na base de ataque escolhida, a sul da povoação senegalesa, e foi preciso cortar a estrada paralela à fronteira e reter o comandante senegalês de pára-quedistas, que chegara em missão de reconhecimento à fronteira. A conversa com ele foi cordial. Aliás, o comandante pára-quedista senegalês sabia bem da existência da base do PAIGC e afirmou que, no seu entender, ela se encontrava em território português, pelo que pedia que abandonássemos rapidamente o seu território. Queria isto dizer que não haveria nenhum incidente diplomático. E não houve. Às oito horas, a Força Aérea efectuou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto à área onde se presumia que estivesse a base.
O factor sorte foi decisivo. Os dois agrupamentos que actuaram em primeiro escalão detectaram de imediato uma série de depósitos de material de guerra e o terceiro agrupamento, que constituía a reserva, teve um violento combate frontal com um forte grupo inimigo que, apoiado por canhões sem recuo e metralhadoras pesadas, defendia o depósito principal - o de foguetões de 122 mm. A tónica fundamental foi a confusão, não só aquela que é própria da batalha, como a que foi consequência de se enfrentarem em combate próximo adversários da mesma cor, trajando de igual forma, com armas iguais e sem que se conseguisse delimitar claramente a frente. Cerca do meio-dia a missão estava cumprida. Mas o agrupamento comandado pelo capitão Raul Folques, que foi gravemente ferido, estava praticamente sem munições. Foi dada a ordem de retirada, ou melhor, de continuação da acção em direcção a Guidage. O movimento foi lento e interrompido por vários combates, até que. a partir das dezasseis horas, o inimigo abandonou o terreno. As nossas tropas chegaram a Guidage às dezoito horas. No dia seguinte deslocaram-se a pé para serem recolhidas a sul sobre o rio Cacheu, pela Marinha de Guerra. Os resultados obtidos foram assinaláveis, mas o mais importante é que a pressão sobre Guidage foi levantada, tendo a guarnição militar da povoação recuperado a iniciativa do combate, depois de rendidos os seus efectivos. Foram destruídos 22 depósitos de material, incluindo duas metralhadoras antiaéreas, 50 000 munições de armas ligeiras, 300 espingardas automáticas Kalashnikov; 112 pistolas-metralhadoras PPSH, 560 granadas de mão; 505 minas anticarro 400 minas antipessoal, 100 morteiros 60; 11 morteiros 82; 14 canhões sem recuo; 138 RPG 7; 450 RPG 1100 granadas de canhão sem recuo, 225 granadas de morteiro 60, 406 granadas de morteiro 82, 54 granadas de RPG 7; 21 rampas de foguete 122; 53 foguetes 122 (números estimados pelos combates referenciados). O inimigo sofreu 67 mortos confirmados. Posteriormente. verificou-se que o número de baixas foi bastante maior. As nossas tropas sofreram também pesadas baixas: 25 mortos (sendo dois oficiais); 23 feridos graves (sendo três oficiais e 7 sargentos). Nesta operação patente o espírito agressivo dos comandos africanos e a sua excepcional resistência física.
Abandonei a Guiné em Julho de 1973. Militarmente a situação estava mais complicada, porque o aparecimento dos mísseis terra-ar retirou-nos, em parte, a supremacia aérea. Assim se compreende a morte de dois comandantes de grupo em dez dias: o tenente-coronel Almeida Brito e o major Mantovani, que foram abatidos pelos Strela. Isto dificultou a liberdade que tínhamos, visto que a cobertura aérea era muito importante para aquele tipo de guerra. O PAIGC veio dizer que o Boé era dominado por eles e que tinham lá um governo, mas isso não era assim. Durante o ano de 1973 e até regressar, fiz duas ou três operações no Boé. Percorri o Boé praticamente todo e aquilo estava completamente deserto. Não havia lá ninguém. Fiz lá duas ou três vezes operações com o batalhão de comandos africanos. Com o COE fiz duas operações pontuais e nada vimos. O Boé não tinha significado para nós porque não era o território que tinha significado, para as populações. Em guerra subversiva não é o terreno que conta, mas a população. Será que eles, em fins de 1973 e princípios de 1974, fizeram lá uma tabanca e puseram lá o governo?
É possível, mas até eu me vir embora isso não era verdade. Que estavam na fronteira, isso estavam. E até podiam estar um bocado dentro do território, mas não tinha significado. Não havia parte nenhuma do teatro de operações onde nós não fôssemos.
Nem o célebre Morés. Isso é uma mera fantasia. Claro que eles tinham lá bigrupos, claro que nós íamos lá, claro que eles tinham baixas e nós também. Mas eles não dominavam. Em guerra subversiva a dominação é a dominação das populações. E as populações eram dominadas por nós, totalmente enquadradas com as milícias. Agora dizem-me: «Mas eles à noite iam às tabancas e pediam para eles lhes darem umas cervejas, e eles davam.»
É muito natural que isso acontecesse, não digo que não. Mas o Cacheu era nosso, Bigene também, todos os pontos fundamentais eram nossos. Aí, o PAIGC não tem razão. É evidente que eles tinham uma rede de intelligence dentro das nossas próprias milícias. Dentro do meu batalhão havia elementos que eu sabia que passavam informações ao PAIGC. O meu oficial de informações, que era o tenente Zacarias Saiegh, africano, mestiço, que foi fuzilado pelo PAIGC depois da independência, muitas vezes passava a estes notícias que nós inventávamos para contra-informação. Dentro das nossas tropas havia elementos do PAIGC e nós sabíamos e servíamo-nos deles. Mas no plano político internacional a posição portuguesa estava muito fragilizada e, por isso, aceito que o PAIGC estivesse a consolidar a sua posição. Quando eu saí, em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político porque Lisboa tinha tirado o tapete ao general Spínola. E isto teve reflexos na guerra. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha porque não tínhamos o «De Gaulle» aqui em Lisboa e o próprio governo de Marcello nos tinha retirado o tapete, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra. E a guerra pela guerra a nós não nos convencia.
Não sei porque é que o Bethencourt Rodrigues foi indicado para lá. Penso que foi porque era um homem de perfil militar muito forte, com provas dadas em Angola. Já tinha sido ministro. Eu vim-me embora em Julho e o nosso general Spínola veio em Outubro. E de Outubro de 1973 a Abril de 1974, o general Bethencourt Rodrigues não teve tempo para fazer nada. Quem me substituiu no COE foi o tenente-coronel Veiga da Fonseca, já desaparecido, e que não fez alteração nenhuma à acção do COE. O meu substituto no batalhão de comandos, o Folques, também não fez alterações. O general Bethencourt Rodrigues não teve tempo para pôr o seu próprio selo na Guiné. Depois, a vinda do general Spínola para Lisboa deu-nos alguma esperança na modificação da situação política. Eu falo do tempo em que lá estive e acho que a Guiné não estava perdida militarmente. A Guiné estava perdida, sim, porque a solução não era militar mas política, e nós já tínhamos perdido a solução política. Ou seja, eu não acredito que o PAIGC destruísse o Exército português na Guiné, peça por peça, e ficasse implantado no território com as suas forças militares. Não acredito. O Bethencourt Rodrigues de certeza que também não acredita. A verdade era que tínhamos a noção de que íamos perder, já que politicamente não avançávamos. Acrescento a isto o meu convencimento pessoal de que o Governo era capaz de sacrificar militarmente a Guiné, perdendo-a, retirando tropas, e criando uma situação de fragilidade, como fez na Índia, para depois se concentrar na manutenção de Angola e Moçambique.
Mas daí até dizer que em Julho de 1973 estávamos à beira de uma derrocada, parece-me falso. Eu digo que é mentira, porque eu fui a Kumbamory, no Senegal, porque Guidage estava de tal maneira apertada que a situação da sua guarnição era extremamente complexa e difícil. Fui, rebentei com o Kumbamory, e Guidage passou a estar aberta. Nós só abandonámos Madina do Boé e Beli, não abandonámos os quartéis portugueses. Houve, no Sul, uma debandada de um quartel, que depois foi reassumido com a colocação lá do capitão Manuel Monge, graduado em major. Foi em Gadamael. Guilege, por exemplo, nunca foi abandonado e o PAIGC nunca entrou no Guilege. Se saíssem aviões da Guiné-Conakry para nos bombardear, lá teríamos que fazer a segunda Operação Mar Verde. E se viessem MiG da Guiné-Conakry, o Governo teria de comprar Mirage que pudessem ir à Guiné bombardear. E estavam a ser negociados. O PAIGC sabe que este tipo de guerra perde-se politicamente. Ou seja, na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu na Guiné tinha que ser Bissau e Bissau, porque está. encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa, o que me parece absolutamente impensável. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime por razões de seriedade para comigo próprio, e para com todos quantos sob o meu comando combateram e morreram em África. Vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia. Será um sonho? A História o dirá.[1]

[1] Testemunho oral de Almeida Bruno, Lisboa, 2 de Março de 1995. General do Exército, nasceu em 1935. Serviu em Angola (1951-1963) e 1965-1968) e na Guiné (1968-1971 e 1971-1973). Era presidente do Supremo Tribunal Militar quando foi entrevistado.
BIBLIOGRAFIA
A GUERRA DE ÁFRICA (1961-1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL II

sexta-feira, 24 de julho de 2009

AS GRANDES OPERAÇÕES

O inferno de Guileje

O PAIGC contava com generosos apoios da República da Guiné, onde tinha as suas bases, como a de Kandiafra, a mais importante. O aquartelamento português em Guidage, a escassos 10 quilómetros da fronteira, servia de tampão às ofensivas da PAIGC contra o interior da província. Foi nesta região, no Sul da Guine, que as nossas tropas obtiveram os maiores êxitos militares de toda a guerra de África.
Nos difíceis terrenos do sul da Guiné, entrecortados por rios e salteados ora por bolanhas e tarrafos ora por mata densa e traiçoeira, as tropas portuguesas obtiveram a partir de 1969, imediatamente após a chegada de Spinola, os maiores êxitos militares de toda a guerra de África - acções que impediram os guerrilheiros do PAIGC de conquistar terreno que lhes permitiria, a partir das bases instaladas na vizinha República da Guiné, acesso mais facilitado ao interior da província.
Nesta região do Sul, as nossas tropas receavam sobretudo as minas, que quase sempre semeavam a mutilação e a morte. A guerrilha do PAIGC, aqui sob as ordens de um combatente de eleição, João Bernardo "Nino" Vieira, temia as operações levadas a cabo por unidades especiais com grande capacidade destrutiva, como pára-quedistas, comandos e fuzileiros - que actuavam quase sempre apoiados por bombardeamentos executados pela Força Aérea. O domínio do ar era, por isso, um bem inestimável.
Era uma zona particularmente difícil para as tropas portuguesas. Até para as unidades de elite. Os comandantes de companhia sentiam o peso da responsabilidade. Os, jovens capitães não podiam errar: a sobrevivência dos soldados dependia de decisões tácticas acertadas e o mais pequeno erro pagava-se com a vida. As forças do PAIGC, sob as ordens de "Nino" Vieira com a ajuda de instrutores chineses e cubanos, exerciam uma tremenda pressão - a fim de não deixarem que os portugueses se sentissem à vontade.
O comandante-chefe da Guiné estava apostado em intensificar as acções no Sul da província - e, na verdade, as nossas tropas provocaram pesadas baixas entre os assanhados grupos de guerrilha. A fronteira era-nos hostil. O PAIGC contava com generosos apoios da República da Guiné, onde tinha as suas bases, como a de Kandiafra. Era intenção de Spínola dificultar-lhes o caminho para o interior da província - que o comandante-chefe conseguiu com assinalável êxito. E, para esta manobra, tinha papel relevante a permanência portuguesa no aquartelamento de Guilege, a escassos 10 quilómetros da fronteira.

O Corredor da Morte
Um trilho marcado por entre densa vegetação ligava a base do PAIGC em Kandiafra, na República da Guiné, ao interior da Guiné Portuguesa. Chamavam-lhe o corrector de Guilege - ou o Corrector da Morte, como era conhecido entre as nossas tropas. Os guerrilheiros utilizavam este caminho.
Na primeira semana de Novembro de 1969, uma fuga de informação a partir de Conacri deixou o quartel-general português em Bissau a ferver de impaciência: o governador e comandante-chefe ficou a saber que uma importante coluna do PAIGC encabeçada por “Nino” Vieira se preparava para a cruzar o Corredor da Morte. António de Spínola atribui ao Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 12, comandado pelo então tenente-coronel Fausto Marques, a delicada operação de atacar a coluna de guerrilheiros - e capturar "Nino" Vieira.
Fausto Marques destaca para a missão a Companhia 122, comandada pelo capitão João Bessa. Trata-se da Operação Jove. João Bessa reúne a companhia, explica os objectivos da acção militar - e, perante os elevados riscos, pede voluntários.
Dias antes da partida para a operação, um avião pilotado pelo comandante da Região Aérea da Guiné, o então coronel Diogo Neto, sobrevoa o Corrector de Guilege. A bordo seguem o comandante do batalhão, tenente-coronel Fausto Marques, e o comandante da operação, capitão João Bessa. Observam o trilho por onde vão passar os guerrilheiros - e escolhem o melhor local para a emboscada à coluna militar do PAIGC encabecada por "Nino" Vieira.
Às primeiras horas da manhã de 17 de Novembro de 1969, um grupo de 40 voluntários da Companhia 122, reforçado com mais 10 voluntários da Companhia 122, embarcam em dez helicópteros Alouette III da Forca Aérea - e foram colocados um ponto ainda longe do local previsto para a emboscada. Levam rações de combate para três dias. Em vez de caminharem por trilhos que levavam à zona de acção, vão a pé por entre a mata densa para não serem detectados.
Cerca das dez horas da manha de 18 de Novembro, os militares portugueses chegam ao ponto de emboscada - e procuram tomar as meIhores posicoes no terreno. Ainda não estavam preparados, ouvem vozes ao longe. A coluna do PAIGC aproxima-se. Os soldados portugueses aguardam as ordens do comandante - que vê um dos guerrilheiros da frente sacar uma pistola do coldre. Estala então, violento tiroteio. Um dos homens da coluna foge para o interior da mata. O capitão João Bessa dá ordens para que o persigam. O fugitivo está ferido e os para-quedistas seguem-lhe o rasto de sangue.
"Nino" Vieira, o homem que António de Spinola tanto queria deitar a mão, ficara retido num combate que se travava na região de Bedanda, no Sudoeste da Guiné - e não fazia parte daquele grupo que seguia pelo Corrector da Morte e fora emboscado pelas nossas tropas. O homem que os para-quedistas portugueses perseguiram na mata não era ele. Encontraram quem menos esperavam: o capitao cubano Pedro Rodriguez Peralta. Estava gravemente ferido, com um bravo esfacelado. Deram-lhe injecções de morfina para o aliviar das dores. Os helicóopteres resgataram os para-quedistas e o ferido foi internado no Hospital de Bissau e, mais tarde, transferido para Lisboa. Esteve preso durante seis anos. Apenas foi libertado e enviado para Cuba seis meses após a Revolução de 25 de Abril de 1974: foi trocado por um agente da CIA, Kirby Hunt, que cumpria em Havana uma pesada pena de cadeia por espionagem.

Mísseis Sam 7 chegam a Guiné
Apos a captura do capitão Peralta, as tropas portuguesas intensificaram as acções no Sul da Guiné contra o PAIGC. O movimento de guerriIha passou então por um período de grandes dificuidades. Sucediam-se as operações de grande violência lancadas por unidades especiais - sempre apoiadas bombardeamentos executados pela Forca Aérea. Os aviões e helicópteros semeavam o terror entre os guerrilheiros, abriam caminho as tropas terrestres, transportavam material de guerra, evacuavam os mortos e os feridos. A guerrilha dificilmente se movimentava.
Mas o PAIGC recebe mais apoio militar, sobretudo dos países do Leste da Europa, passa a ter melhores armas - e começa a equilibrar a sorte da guerra. As forcas portuguesas sentem crescentes dificuldades. O Sul da Guiné está a ferro e fogo. É um verdadeiro inferno. A guarnição do aquartelamento de Guidage, praticamente encostado à fronteira, vive tempos de grande sofrimento.
No inicio de 1973, um. acontecimento extraordinário anuncia que as nossas tropas correm sérios riscos de uma pesada derrota militar. Fazem-se ouvir, no Sul da Guiné, os primeiros disparos de misseis antiaereos Sam 7, mais conhecidos como mísseis "Strella", de fabrico sovietico, que passaram a equipar as forças do PAIGC. O movimento da guerrilha está a um passo de conseguir criar grandes obstáculos à Força Aérea, sem o domínio do ar, a capacidade de combate das nossas tropas terrestres ficaria seriamente comprometida.
Os primeiros mísseis foram disparados pelo PAIGC em Fevereiro. Sem êxito. No dia 25 de Marco de 1973, um avião Fiat G-91, pilotado pelo capitão Miguel Pessoa, preparava-se para regressar à base após ter executado uma missão de bombardeamento na zona do aquartelamento português de Guidage. Foi atingido. O PAIGC abateu o primeiro avião português com um míssil "Strella".
O piloto, ainda assim, conseguiu ejectar-se. Aterrou de pára-quedas na mata. A Força Aérea, apesar da ameaça dos temidos "Strella" sobrevoou a zona para localizar o piloto. Miguel Pessoa foi descoberto - e, no dia seguinte, resgatado da mata por uma força especial constituida por 30 comandos e para-quedistas. Portugal, a partir daqui, perdeu o dominio do ar: os aviões, sob a ameaca dos mísseis, praticamente não levantavam voo e as tropas terrestres, sem o apoio do fogo aéreo, perderam a inciativa da guerra. O PAIGC estava a beira da vitória militar. E, em Maio de 1973, tropas da guerrilha comandadas por "Nino" Vieira lancaram a "Operação Amílcar Cabral", o assalto final contra a nossa posição em Guidage.

Tropas Portuguesas em fuga
A guarnição do quartel de Guileje, perante os ataques da artilharia do PAIGC, abandonou a posição e, contrariando ordens de Spinola, retirou para Gadamael. Os guerrilheiros, embalados pela vitória fácil, atacaram Gadamael forte e feio. Os soldados portugueses, desmoralizados e em pânico, fugiram para a mata. Mas o comandante-chefe, que já tinha perdido Guileje, estava disposto a assegurar a domínio de Gadamael a qualquer custo. A resistência portuguesa teve um preço elevado: 25 mortos e 150 feridos.
O ano de 1973 não começou nada bem para as nossas tropas na Guiné. As forças do PAIGC receberam mais armamento dos países de Leste e, entre o material, vinham os poderosos mísseis antiaéreos Sam 7, ou Strella, como ficaram mais conhecidos. Os primeiros foram disparados ainda em Fevereiro, no Sul da Guiné, contra a aviação portuguesa. Ainda assim, sem êxito. Até que os guerrilheiros afinaram a pontaria.
O capitão piloto-aviador Miguel Pessoa havia de ficar na historia. Ele pilotava o primeiro avião abatido por um míssil Strella. Tinha executado uma missão de bombardeamento na zona do aquartelamento português de Guileje, no Sul da Guiné, a 25 de Marco de 1973, quando foi atingido. O piloto conseguiu ejectar-se e salvou-se com uma perna partida durante a aterragem de pára-quedas.
A utilização dos mísseis mudou por completo o curso da guerra. Até aqui, o comandante-chefe, António de Spínola, tinha conseguido no Sul da Guiné, onde os combates eram mais duros, os maiores êxitos militares de toda a guerra de África: impediu os guerrilheiros de conquistarem terreno que lhes permitiria acesso mais facilitado ao interior da província a partir das bases instaladas para lá da fronteira, na vizinha República da Guiné. O êxito destas operações militares, quase sempre executadas por unidades especiais com grande capacidade de combate, devia-se em grande parte a capacidade operacional da Força Aérea: a progressão das tropas terrestres eram apoiadas por bombardeamentos aéreos que semeavam o terror e a morte entre os combatentes do PAIGC.
A partir do momento em que as forcas de guerrilha começaram utilizar os mísseis Strella, a aviação perdeu capacidade operacional e sem apoio aéreo, as tropas terrestres perderam a iniciativa da guerra. Ate as unidades especiais de comandos, fuzileiros e pára-quedistas ficaram bloqueadas.

Assalto final
O PAIGC tinha retirado aos portugueses o domínio do ar - e isso dava-Ihe uma vantagem avassaladora. As tropas portuguesas estavam agora em sérias dificuldades. Embalado pela vantagem militar, o PAIGC prepara o assalto final. Concentra tropas no Norte e cerca a guarnição portuguesa de Guidaje, mesmo em cima da fronteira com o Senegal. Mobiliza importantes efectivos no Sul e sufoca o nosso aquartelamento de Guileje, a cerca de uma dezena de quilómetros da fronteira com a Republica da Guiné. Os comandantes militares do PAIGC lançaram ao mesmo tempo estas duas operações de cerco - a 18 de Maio de 1973. O dispositivo militar português viu-se espartilhado por uma forte tenaz: uma ponta esmagava Guidaje, a Norte; enquanto a outra ponta apertava Guileje, a Sul.
A guarnição de Guidaje, no Norte, num total de 200 soldados, ficou completamente isolada por uma força de 700 guerrilheiros comandados por Francisco Mendes e Manuel dos Santos. A guerrilha montou o cerco inultrapassável a partir de uma importante base que possuíam na zona de Kumbamory, em pleno Senegal.
Mas uma unidade especial de comandos, sob as ordens directas de Almeida Bruno, foi enviada para libertar o quartel de Guidaje através de um ataque às forças de cerco lançado a partir de Kumbamory. Foi uma operação de grande dificuldade. As forcas portuguesas sofreram 25 mortos e 23 feridos num violento combate - que se prolongou por quatro horas. Mas resultou. A base que o PAIGC tinha no Senegal ficou arrasada e o quartel de Guidaje foi libertado.
Ao mesmo tempo que o comandante-chefe da Guiné conseguia sacu­dir a pressão que o PAIGC exercia sobre o Norte da Guiné, a outra ponta da tenaz montada pela guerrilha, a Sul, esmagava o aquartelamento português de Guileje.

O inferno do Sul
O PAIGC tinha mobilizado no Sul uma considerável força militar comandada por João Bernardo "Nino" Vieira. Objectivo: tomar de assalto a posição que as tropas portuguesas mantinham em Guileje. Tratava-se da Operação Amílcar Cabral. As forças da guerrilha, com 700 combatentes, eram apoiadas por unidades de artilharia pesada.
A guarnição de Guileje, comandada pelo major Coutinho Lima, era constituída pela Companhia de Cavalaria 8350, um pelotao de artilharia, uma secção de autometralhadoras Fox e um pelotao de milicias locais. O quartel estava instalado no interior de mata densa e o acesso fazia-se por uma picada estreita. Tinha um ponto forte: abrigos subterrâneos permitiam suportar fortes ataques da artilharia. Mas sofria de uma desvantagem considerável: o abastecimento de água era feito num poço localizado a cerca de dois quilómetros do quartel.
O ataque do PAIGC iniciou-se a 18 de Maio de 1973. Manhã cedo, os guerrilheiros emboscaram um grupo português empenhado em transportar água do poço para o quartel. Fizeram dois mortos e sete feridos. Na madrugada do dia 19, o aquartelamento foi atacado e o major Coutinho Lima pediu para se deslocar a Bissau, a fim de contar de viva voz o que se passava. Não foi autorizado. No dia seguinte, o comandante partiu para Cacine - e dai renovou o pedido de licença para ir a Bissau. Foi. E regressou a Cacine. No dia 21, as forças do PAIGC voltaram a atacar o quartel com nutrido fogo de artilharia. A guerrilha, surpreendentemente, atacava durante o dia porque sabia que a Forca Aérea, acossada pelos mísseis Strella, não arriscaria um bombardeamento.
Ainda em 1968, as tropas portuguesas abandonaram as posições de Gadamael e Sanganha, deixando a Guileje e a Gadamael, mais a sudoeste, no último braço de água do rio Cacine, o estatuto de tampão às tropas da guerrilha no Sul da Guine. Agora, segundo as teses de Spínola, eram as populações que mais justificavam a presença das nossas tropas: de outra forma, os guinéus, como o governador e comandante-chefe dizia, passariam a colaborar como movimento de libertação.

A grande retirada
O comandante der Guileje, o major Coutinho Lima, regressou de Bissau a 21 de Maio com indicações precisas para defender a posição portuguesa. Passou por Cacine e Gadamael e arrancou para Guileje com dois grupos de combate, um da Companhia de Caçadores 4743, estacionada em Gadamael, outra da Companhia de Caçadores 3520, da guarnição de Cacine.
Até esse dia, o quartel de Guileje, cercado pelas forças do PAIGC sofreu perto de 40 ataques da artilharia da guerrilha. As flagelações provocaram danos de monta ainda assim, não causaram vitimas. Valeram os abrigos subterrâneos. Mas as condições de vida no interior do aquartelamento eram difíceis: a população fugiu da mata, refugiou-se no quartel e os abrigos estavam à pinha. Os mantimentos não eram muitos e a água escasseava.
O alto comando de Bissau entendia que a posição de Guileje era defensável e foi isso que pediu ao comandante da guarnição. Coutinho Lima, vindo de Gadamael com dois grupos de combate, chegou ao aquartelamento ao fim da tarde do dia 21 de Maio. E, sem informar o quartel-general, decidiu que as tropas e a população deviam retirar para Gadamael.
A retirada iniciou-se por volta das três da manhã do dia 22. Deixaram tudo no quartel de Guileje: armas pesadas, mantimentos, viaturas e um mapa militar da região que, mais tarde, veio a ser util às forças do PAIGC no ataque com artilharia pesada a posições portuguesas. As colunas em fuga foram detectadas aos primeiros raios de sol por um avião da Força Aérea. Foi nesse exacto momento que Spínola soube da retirada. O general espumou de raiva. Enviou o coronel pára-quedista Raul Durão para Gadamael a fim de substituir Coutinho Lima no comando.
Quando as tropas em retirada chegaram a Gadamael, cerca da uma da tarde de 22 de Maio, Raul Durão já lá estava. Coutinho de Lima foi imediatamente enviado para Bissau, onde ficou em prisão preventiva. Ao contrário de Guileje, o quartel de Gadamael tinha menos condições para sobreviver a pesados ataques da artilharia: não tinha abrigos. Ali, a guarnição era constituída pela Companhia de Caçadores 4743, que dependia operacionalmente de Guileje. Se as condições do quartel já eram difíceis, pior ficaram com a chegada da coluna em fuga.
No dia 1 de Junho, deu-se o esperado: o PAIGC, moralizado pela vitória fácil obtida em Guileje, flagelou forte e feio o quartel de Gadamael, onde a duplicação de efectivos em espaço exíguo mais reduzia as hipóteses de sobrevivência. As primeiras descargas da artilharia fizeram 20 mortos. Os soldados, desmoralizados e em pânico, fugiram para as matas e bolanhas circundantes do quartel. Muitos foram recuperados por botes dos fuzileiros e transportados para Cacine.
Em Bissau, o comandante-chefe estrebuchava e brandia o pingalim. Spínola queria manter Gadamael, a qualquer custo. O capitão Manuel Monge (hoje, general da reforma), que comandava na região Sul um esquadrão de Cavalaria, recebe ordens para organizar em Cacine o regresso a Gadamael dos militares em fuga e foi isso que ele fez. O quartel, a pouco e pouco, começa a responder aos ataques da guerrilha. E nomeado novo comandante o tenente-coronel Araújo e Sá. A guarnição reformada por pára-quedistas e fuzileiros. E os guerrilheiros acabaram por retirar. Salvou-se Gadamael. A resistência portuguesa custou 24 mortos e 150 feridos.


BIBLIOGRAFIA
OS ANOS DA GUERRA COLONIAL (1961-1974)
Manuel Catarino - Jornal 24 Horas