Libertar Guidage
ALMEIDA BRUNO
Spínola chegou à Guiné quando havia um empate militar com o PAIGC e quis retomar a iniciativa para negociar a paz numa posição de força. A solução política passava pelo diálogo com Amílcar Cabral, Leopold Senghor como intermediário, e pela eleição de Spínola para presidente da República: o desejado De Gaulle português. No chão manjaco, com a morte dos três majores que negociavam com bigrupos do PAIGC, passou-se simbolicamente dos centuriões para os pretorianos.
O general João de Almeida Bruno foi um dos mais dilectos colaboradores de Spínola na Guiné e comandou o batalhão de comandos africanos. Participou em numerosas acções, entre as quais a Operação Ametista Real, para libertar a guarnição de Guidage. Desmente o controlo territorial que foi apregoado pelo PAIGC, mas reconhece que a guerrilha ganhou credibilidade internacional. Ante o bloqueio de uma solução política, o derrube do regime foi para este spinolista a única saída.
O projecto spinolista Guiné Melhor incluiu uma intervenção específica no chão manjaco e negociações com bigrupos de guerrilha. O resultado foi a morte dos três majores encarregados do diálogo. Almeida Bruno esteve com o general na mata durante os contactos com os chefes do PAIGC. E veio a Lisboa lutar pela candidatura de Spínola à Presidência da República. Caetano não quis arriscar.
Em 1968, quando o brigadeiro chegou à Guiné, a situação militar caracterizava-se, do meu ponto de vista, da seguinte forma: as forças portuguesas tinham perdido a iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade de movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais - pára-quedistas, fuzileiros e alguns grupos de comandos. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura da área, o que implicou a disseminação da tropa ao de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção. Na visitei, com o então brigadeirobrigadeiro Spínola, todo o teatro de operações, todos os pontos ocupados pela tropa e todas as tabancas - mesmo as que não tinham tropa - e a noção que tenho é que as nossas unidades não saíam dos quartéis. Remetiam-se, com grande estoicismo e bravura, a serem bombardeadas dia sim, dia não, mas não havia da nossa parte a mais pequena iniciativa; os pára-quedistas, fuzileiros e comandos, esses sim, faziam operações. Mas na verdade podia dizer-se que estávamos empatados com o PAIGC. A primeira coisa a fazer era ganhar a iniciativa e, para isso, concentrar meios e remodelar o dispositivo. Logo nas primeiras directivas percebeu-se que era essa a ideia do brigadeiro António de Spínola: ter liberdade de acção, ou seja, capacidade de iniciativa, um dado essencial na guerra. Não se podia jogar à defesa - a defesa era um estado preparatório para a ofensiva. Na Guiné, estávamos na defensiva. Por isso, a doutrina militar de Spínola foi primeiro concentrar meios para depois ganhar a iniciativa. Ele dizia que, concentrados os meios, ganhávamos capacidade de acção e passaríamos ao ataque; porque só a ofensiva conduzia à vitória. Houve também uma reforma profunda nas forças especiais, que passaram para o comando directo do comandante-chefe.
O Luís Cabral afirma que Spínola não queria fazer a paz na Guiné, mas incrementar a guerra. É rigorosamente verdade o que ele diz. Mas tem de se perceber porque é que se devia passar à ofensiva: é que não se negoceia em situação de inferioridade. O nosso brigadeiro pretendia aumentar a actividade operacional e ela foi incrementada para que nós, ao retomarmos a iniciativa e ao dominarmos o teatro de operações pelas armas, pudéssemos dialogar com o PAIGC numa posição de força. Não era querer fazer a guerra pela guerra. Muita gente diz, por maldade, que António de Spínola acabou por ser arrastado por nós, os elementos do seu staff. Eu digo que é mentira. Conversei muitas vezes com o brigadeiro Spínola antes de embarcarmos e sei que ele, quando foi para a Guiné, levava já uma ideia que era consequência do que ele tinha vivido em Angola, de alguns anos de meditação aqui, do curso de altos comandos que fez para ser promovido a brigadeiro. Ou seja, ele reformulou as ideias que tinha quando tenente-coronel comandante de batalhão (fazia a guerra pela guerra) e quando foi nomeado por Salazar, já não estava totalmente de acordo com ele. Nós embarcámos em Maio de 1968 e dois meses antes, em Março, ele teve uma conversa com Salazar, em São Bento.
Eu fiquei cá fora, não assisti à conversa, mas acompanhei o senhor brigadeiro porque nessa altura já tinha sido convidado por ele para ajudante-de-campo. Chegámos a casa dele e, no escritório, ele disse-me «O presidente do Conselho continua a pensar que é matando pretos que se ganha a guerra. Eu até lhe contei a história das pulgas. Disse-lhe: "O senhor presidente do Conselho, sabe que este tipo de guerra é muito complicado. Suponha que há um palheiro que não arde e senhor presidente do Conselho está a dormir no palheiro. E duas pulgas mordem-no. O senhor não pegar fogo ao palheiro porque ele não arde, e anda à procura das pulgas. Já viu o que é descobrir duas pulgas num palheiro? A guerra subversiva é assim: nós somos poderosíssimos, só que as pulgas passam vida a morder-nos. Como não conseguimos destruir o palheiro, acabamos por abandoná-lo todos picados e não resolvemos nada.” Está a ver ó Bruno? O presidente do Conselho é mesmo do século passado.»
Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da Guine Melhor é dele e o único caminho para a vitória final. Mas é evidente que teve um staff excepcional, com homens de grande gabarito, como Saraiva de Carvalho, que foi esplêndido naquilo que fez, o Firmino Miguel, o Carlos Fabião e muitos outros. Mas a ideia era genuinamente dele porque a aprendeu. Estudou, leu, quando se preparou para o curso de altos comandos. Salazar viu em Spínola o tenente-coronel António Sebastião que, em tronco nu. de monóculo e pingalim, arrasava completamente a mata aos tiros. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem que já tinha meditado muito sobre esta «nova» guerra. O nosso Marechal fez asneiras políticas de palmatória. Mas não lhe podemos tirar a virtude - ele viu muito bem que aquela guerra só se resolvia no plano político. Aliás, era fácil conclir isso porque bastava meditar sobre o que se tinha passado no Vietname, na Argélia, ou no Quénia, onde houve soluções mas políticas. Foi teimozia da classe política portuguesa, aqui de Lisboa, que não quis meditar sobre isto. De facto, a actividade operacional foi incrementada - o PAIGC tem razão - porque o nosso brigadeiro queria estar por cima para poder negociar. Ninguém negoceia de cócoras, senão fazem-nos chichi em cima.
Estávamos fora de Bissau, em Bigene, quando veio a comunicação de que Salazar teve o acidente vascular cerebral. Regressámos logo a Bissau. O desaparecimento de Salazar da cena abriu perspectivas a Spínola, que foi promovido a general e pôs de pé o seu projecto. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970: tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias. A estratégia de Spínola era pôr de pé o sonho que ele e o grupo que o acompanhou na Guiné tiveram para resolver o problema colonial português: era a independência dos territórios, a seu tempo, gradualmente, step by step, de acordo com a dimensão territorial e desenvolvimento social, económico e financeiro. Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios, não como foi feita, mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano. O nosso general pensou que era vantajosa a situação política já que Marcello Caetano, muitos anos antes, tinha dito a Salazar que a solução para o império português era uma solução de descentralização numa primeira fase, de federação numa segunda, e logicamente de independência e de criação da comunidade lusófona. Este era o projecto do general Spínola, que o Portugal e o Futuro não desmentiu.
Claro que foi muito atacado, e hoje dizem que saiu fora de tempo, e há quem defenda que devíamos ter combatido até ao último homem, ou que se deveria ter entregue tudo. Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos, e para nós também. Em resumo, o dispositivo foi concentrado, fizemos várias acções fora do nosso território nacional, e retomámos a iniciativa. Eu fiz algumas operações fora do território nacional, a última das quais foi a Operação Ametista Real, sobre a base de Kumbamory. Tudo isto com um só objectivo - colocar o PAIGC em inferioridade militar acentuada, para podermos negociar numa posição de força.
Paralelamente foi desencadeada uma grande acção chamada «A Guiné Melhor», uma acção de natureza política que estava a ser ensaiada e concretizada no chão manjaco. Foi no chão manjaco que abrimos o diálogo com o PAIGC e foi no chão manjaco que se deu o primeiro encontro entre o governador e comandante-chefe das Forças Armadas e comandantes dos bigrupos do PAIGC que actuavam naquela área. Eu estive em duas dessas reuniões no mato, sozinho com o nosso marechal. Ali se iniciou o diálogo mas, entretanto, mantendo nós a posição de força. No teatro de operações, os vitoriosos da guerra éramos nós e não o PAIGC. A ideia era fazer, paralelamente, contactos com o Senghor. O embaixador João Diogo Nunes Barata e o José Blanco são homens que conhecem bem isto porque trabalhavam directamente com Spínola. Eu nessa altura já estava um pouco à margem do plano político, já que regressei à Guiné para ser comandante do Batalhão de Comandos e chefe do Centro de Operações Especiais. A minha actividade operacional era muito intensa e as minhas preocupações já não eram tão políticas como nos primeiros dois anos, em que fui chefe de gabinete e ajudante-de-campo de Spínola. A operação no chão manjaco era vital para nós: era começar a puxar a ponta, contactar o Léopold Senghor, os bigrupos, usar o prestígio do agrupamento operacional comandado pelo coronel Alcínio Ribeiro, pára-quedista, que já morreu. E três pedras basilares, três majores fundamentais: um de intelligence, um sonhador, o Pereira da Silva; um operacional, o homem que puxava os cordéis da «guerra», o Osório; e um major de eleição, sonhador mas pragmático, o Passos Ramos. Estes três homens eram peças fundamentais da política de abertura ao diálogo com o PAIGC.
O Luís Cabral mente quando diz que o PAIGC nos enganou na questão do chão manjaco. O chão manjaco foi completamente dominado por nós e a morte dos majores foi uma barbaridade cometida pelo PAIGC que, reconheço, não tinha outra saída. Eu acho que ele mente porque não tem a coragem de dizer: «Nós não tínhamos outra saída senão decapitar aqueles senhores que nos estavam a prejudicar.» Como é que eles dizem que queriam prender o general Spínola e assassinaram cinco pessoas que foram ao encontro de chefes militares, completamente desarmados? Se um dia falar com Luís Cabral dir-lhe-ei: «O senhor, para além de mentir, não assume a responsabilidade dos actos do seu partido. Eu percebo perfeitamente que o senhor, com a corda na garganta como estava, não tinha outra saída: ou decapitava o comando do agrupamento operacional e dava cabo daquele grupo, ou tinha os bigrupos do chão manjaco a combater connosco. Tal como em Angola, o Savimbi combateu a nosso lado contra o MPLA.» O chão manjaco foi, quanto a mim, o fim dos centuriões e o começo dos pretorianos como nos livros do Lartéguv, que marcaram muito a minha geração. O PAIGC foi encostado à parede e não tinha outra saída senão aquela que foi catastrófica para nós, porque no plano político perdemos a capacidade de diálogo com o PAIGC Embora Spínola tivesse reiterado, com vigor, que não haveria alterações à política de diálogo com o PAIGC para encontrar uma plataforma negociada, nós perdemos uma boa oportunidade.
Eu tinha estado com o general Spínola no mato, em diálogo com PAIGC, sentado com uns três ou quatro. Estivemos a conversar. As conversas eram na base de que os bigrupos do PAIGC no chão manjaco acreditavam na nossa boa fé. Queríamos uma negociação dentro da perspectiva de que Amílcar Cabral seria o futuro governador da Guiné, substituindo ogeneral Spínola e, numa fase mais avançada, haveria autonomia e eleições no território, criando-se uma assembleia própria e, finalmente, a independência quando eles quisessem ou estivessem preparados. Nós tínhamos que começar por uma ponta. É evidente que isso seria um grande desequilíbrio no plano militar: se no teatro de operações o PAIGC soubesse que dois bigrupos do chão manjaco se passavam para o nosso lado, aquilo tudo caía como um baralho de cartas. Mas foi a partir do desaparecimento daquela equipa que tudo começou a correr mal. Se eu estivesse do lado de lá, eu era capaz, infelizmente, de ter feito a mesma coisa. Eles estavam muito receosos. Fiz estudos profundos sobre o perfil psicológico do grande líder do PAIGC que foi o Amilcar Cabral. Nem o Luís Cabral nem o Nino Vieira valiam uma unha do pé do Amílcar Cabral. O Nino valia só para dar tiros. Amílcar Cabral era um homem profundamente português, tinha a visão de que, sendo independente, podia continuar a ser português. Mas a ala mais pró-soviética e mais agressiva do PAIGC receou que o Amílcar fosse à fala com Spínola porque a ponte era feita por um homem de alto prestígio na África negra, o presidente Leopold Senghor, que estava interessado em juntar António de Spínola e Amilcar Cabral. A ala soviética, quanto a mim, era dirigida por José Araújo, que devia ser do KGB. Se não era, era pelo menos o mais pró-soviético, o mais antiportuguês e o mais raivoso. Até o Pedro Pires era mais flexível, como vim a verificar anos mais tarde quando em Londres, integrado na comissão portuguesa chefiada por Mário Soares, tomei parte nas negociações Portugal-PAIGC.
Estou convencido de que o Amílcar apoiava o diálogo, mas não apoiaria o que nós queríamos fazer à nossa maneira, a começar pelo chão manjaco. O Amílcar queria encontrar-se no Senegal com Spínola e, a partir daí, dialogar, provavelmente criando uma plataforma de cessar-fogo e depois iniciar negociações onde ele, à partida, iria pôr em cima da mesa a independência. O Amílcar iria sentar-se do lado de lá e isso já seria uma vitória nossa. Mas quando ele se sentasse do lado de lá tinha que ter a noção que, no plano estritamente militar, nós estávamos por cima, ou ele jogava logo os jokers todos. É muito possível que pudéssemos entrar numa plataforma de entendimento neutral, tendo a guerra um ponto de paragem, estabelecendo-se um diálogo. Eu até aceito que fosse para a independência, mas de uma forma diferente daquela que foi feita na realidade. Mas, para isto se concretizar, era necessário que em Lisboa estivesse um De Gaulle. Lisboa não nos apoiava. Na Guiné, o staff que trabalhava com o nosso general sentiu isso. Então dissemos: «Se não temos em Lisboa um De Gaulle, estamos tramados porque, mesmo que se consiga um diálogo, vão-nos tirar o tapete. Não temos legitimidade para negociar com o PAIGC em nome do Estado português. Então, temos de pôr em Lisboa um De Gaulle que se chama António de Spínola.» Por isso preparámos a candidatura do general Spínola às eleições presidenciais de 1972, ganhas pelo Américo Tomás. Daí se explica termos tentado urdir uma teia por forma a que Marcello Caetano aceitasse Spínola como candidato à Presidência da República, porque ele ganhava as eleições, com batota ou sem batota. Naturalmente, naquela altura, até ganhava sem batota, porque era um homem com prestígio e principalmente porque iria dizer que uma das coisas que queria era resolver o problema do império através do diálogo. Esse tipo de contactos tive-os eu, pessoalmente, com o general Venâncio Deslandes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Deslandes apoiou.
Essas ligações foram feitas através de vários emissários que chegaram a Marcello Caetano. E quando Marcelo Caetano recebeu o projecto para a solução do problema ultramarino, era no pressuposto de que o presidente da República fosse o homem que tinha capacidade de, em termos de Estado, assumir o diálogo não só com o PAIGC, mas também com os outros grupos de Angola e Moçambique. Eu tive uma reunião em casa do Francisco Pinto Balsemão, em que estava este, Magalhães Mota e Rogério Martins. Disse-lhes o que pensávamos e a necessidade de fazermos de Spínola presidente da República, para depois agarrar no problema do Ultramar. No Porto, Carlos Azeredo falou com Francisco Sá Carneiro, e pôs a mesma questão. Eu próprio fui ao Porto. Entreguei a Marcello Caetano, em casa dele, o nosso projecto da solução para o Ultramar, que em linhas muito gerais apontava para negociações destinadas a encontrar a tal plataforma: regiões autónomas, uma federação de estados. O Francisco Sã Carneiro defendia que se tinha que encontrar uma solução política para o Ultramar. Eu disse-lhe: «Nós também pensamos isso. Não é aos tiros que nós resolvemos o problema do Ultramar. Mas é necessário que o general Spínola seja o presidente da República porque é o nosso De Gaulle. Cá não temos o De Gaulle, mas Casal-Ribeiro e companhia limitada.» Tudo isto falhou porque Marcello Caetano não quis correr o risco. Foi sempre um homem muito hesitante. De tal modo que as cartas trocadas entre ele e Spínola foram mudando de tom, até Spínola receber mesmo uma directiva concreta de encerrar as negociações com o PAIGC. Mas as primeiras cartas entre eles não foram assim. Marcello Caetano foi à Guiné - a Ana Maria Caetano foi com ele - e lembro-me perfeitamente de que as conversas foram boas entre os dois, até porque o Marcello tinha tido um pensamento idêntico ao de Spínola. Eu penso que Marcello teve receio de que se Spínola fosse eleito presidente o demitiria das suas funções, e iria buscar para presidente do Conselho Adriano Moreira ou Veiga Simão.
Nega que o PAIGC tivesse um governo no Boé e que dominasse as áreas territoriais que reivindicava. Mas o movimento de Amílcar Cabral fortaleceu-se no plano internacional, enquanto Lisboa rejeitava uma solução política para a Guiné. Os comandos africanos usavam armas soviéticas capturadas ao PAIGC. O fim da supremacia aérea ocorreu com a entrada em acção dos Strela.
Fui para a Guiné em 1968 como secretário e ajudante-de-campo de Spínola. Depois estiveram como secretários, o Neto, Nunes Barata e José Blanco. Vim ao Continente fazer umas férias e regressei, já major, como chefe do Centro de Operações Especiais. Levantei o batalhão de comandos africanos. Fui o seu primeiro comandante, entre Maio de 1968 e Julho de 1970. Acho que o Exército português estava bem equipado para o tipo de guerra no teatro de operações da Guiné.
A Força Aérea estava bem, a Marinha e as forças terrestres também. O meu batalhão de comandos africanos estava muito bem equipado. Todo o material que tínhamos era o melhor material soviético que existia, e que foi capturado ao inimigo. A razão é muito simples: nós actuávamos quer dentro do Senegal quer dentro da Guiné-Conakry e não podíamos ir com armamento português. A Kalashnikov, a Degtyarev e os RPG 3 e 7 eram excelentes armas. As milícias também estavam equipadas com armamento capturado. Militarmente nós atingimos o topo no teatro de operações, de tal maneira que conseguimos reequiparmo-nos com o material capturado ao PAIGC em combate.
A acção mais significativa do batalhão de comandos africanos foi a Operação Ametista Real. Mas fiz dezenas de operações importantes, largas dezenas de minioperações com o Centro de Operações Especiais, quer no Senegal quer na Guiné-Conakry. Foram acções com um grande êxito, porque criavam um clima de instabilidade junto da fronteira, na medida em que minávamos os acessos à nossa fronteira do lado de lá e destruíamos algumas pontes. As operações eram comandadas por mim, directa ou indirectamente, ou pelo António Ramos do COE e Matos Gomes ou Raul Folques do Batalhão de Comandos. Mas as operações do batalhão foram quase todas comandadas por mim, no terreno. No COE, algumas eram comandadas por mim, outras pelo António Ramos e sempre com o Marcelino da Mata. As operações de comandos com nomes de pedras preciosas foram todas comandadas por mim: Ametista Real, Safira, Diamante, etc. Era uma mania. As do COE tinham outros nomes, porque o António Ramos gostava dos nomes «esquisitos»: Operação Nadia, em Agosto de 1971, Operação Zavenda, em Maio de 1972. O PAIGC tinha mérito, eles não brincavam em serviço. Destaco a Operação Ametista Real, a última que comandei. Em 16 de Maio de 1973 fui chamado de urgência ao comandante-chefe que me traçou o panorama da guarnição militar de Guidage, na fronteira norte com a República do Senegal: estava isolada por via terrestre, dados os fortíssimos campos de minas lançados pelo inimigo. Tinham resultado daí dois insucessos com colunas logísticas, enquadradas por tropas pára-quedistas, e havia grandes dificuldades no reabastecimento aéreo e na evacuação de feridos, dado o dispositivo antiaéreo montado pelo inimigo com mísseis terra-ar Strela. Havia ainda um grande desgaste físico e psicológico da guarnição militar. Era por demais evidente que o PAIGC pretendia levar a efeito um assalto final a Guidage, para retirar dividendos políticos internos e externos.
Tornava-se necessário efectuar uma operação que aliviasse a pressão sobre Guidage e só um ataque à base inimiga de Kumbamory, situada em território senegalês, junto à fronteira (quatro a seis quilómetros) teria resultado. A missão foi dada de forma clara e simples - atacar a base de Kumbamory para, no mínimo, desarticular o dispositivo inimigo. Sendo possível, destruir a base ou, no mínimo, provocar o maior número de baixas em pessoal e destruição de material. Decidiu-se transportar a unidade por meios navais de Bissau para Bigene, lançar uma operação de curta duração, por infiltração terrestre, por forma a atacar a base inimiga a partir de uma base de ataque situada já em território senegalês, se possível de oeste para leste. Posteriormente, deveria fazer-se a limpeza da região de acesso a Guidage. Viu-se que não eram possíveis as evacuações por helicóptero e decidiu-se que feridos e mortos teriam que ser transportados para Guidage sem meios auxiliares e que o reabastecimento em munições, a ser feito, teria de se realizar por aproveitamento dos paióis inimigos detectados. Quanto à localização pontual do objectivo, como era normal, nada se sabia. Era na área da povoação de Kumbamory. Chegados lá, havia que o descobrir. Assim, na tarde de 19 de Maio o batalhão de comandos embarcou para Bigene, via marítima, tendo chegado ao local ao fim da tarde. Foram constituídos três agrupamentos, com uma companhia de comandos africanos cada, comandados pelo capitão Raul Folques, capitão Matos Gomes e capitão António Ramos. Neste último estava integrado o Grupo Especial do COE (25 homens) especialista em demolições. Foi também neste terceiro agrupamento que me integrei. O batalhão entrou em território senegalês às seis horas. Entretanto, a artilharia de Bigene desencadeou várias concentrações sobre a área do objectivo, mais como manobra de diversão do que como forma de destruição, dado que não se conhecia exactamente a localização da base inimiga. Pelas sete e meia os agrupamentos estavam dispostos na base de ataque escolhida, a sul da povoação senegalesa, e foi preciso cortar a estrada paralela à fronteira e reter o comandante senegalês de pára-quedistas, que chegara em missão de reconhecimento à fronteira. A conversa com ele foi cordial. Aliás, o comandante pára-quedista senegalês sabia bem da existência da base do PAIGC e afirmou que, no seu entender, ela se encontrava em território português, pelo que pedia que abandonássemos rapidamente o seu território. Queria isto dizer que não haveria nenhum incidente diplomático. E não houve. Às oito horas, a Força Aérea efectuou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto à área onde se presumia que estivesse a base.
O factor sorte foi decisivo. Os dois agrupamentos que actuaram em primeiro escalão detectaram de imediato uma série de depósitos de material de guerra e o terceiro agrupamento, que constituía a reserva, teve um violento combate frontal com um forte grupo inimigo que, apoiado por canhões sem recuo e metralhadoras pesadas, defendia o depósito principal - o de foguetões de 122 mm. A tónica fundamental foi a confusão, não só aquela que é própria da batalha, como a que foi consequência de se enfrentarem em combate próximo adversários da mesma cor, trajando de igual forma, com armas iguais e sem que se conseguisse delimitar claramente a frente. Cerca do meio-dia a missão estava cumprida. Mas o agrupamento comandado pelo capitão Raul Folques, que foi gravemente ferido, estava praticamente sem munições. Foi dada a ordem de retirada, ou melhor, de continuação da acção em direcção a Guidage. O movimento foi lento e interrompido por vários combates, até que. a partir das dezasseis horas, o inimigo abandonou o terreno. As nossas tropas chegaram a Guidage às dezoito horas. No dia seguinte deslocaram-se a pé para serem recolhidas a sul sobre o rio Cacheu, pela Marinha de Guerra. Os resultados obtidos foram assinaláveis, mas o mais importante é que a pressão sobre Guidage foi levantada, tendo a guarnição militar da povoação recuperado a iniciativa do combate, depois de rendidos os seus efectivos. Foram destruídos 22 depósitos de material, incluindo duas metralhadoras antiaéreas, 50 000 munições de armas ligeiras, 300 espingardas automáticas Kalashnikov; 112 pistolas-metralhadoras PPSH, 560 granadas de mão; 505 minas anticarro 400 minas antipessoal, 100 morteiros 60; 11 morteiros 82; 14 canhões sem recuo; 138 RPG 7; 450 RPG 1100 granadas de canhão sem recuo, 225 granadas de morteiro 60, 406 granadas de morteiro 82, 54 granadas de RPG 7; 21 rampas de foguete 122; 53 foguetes 122 (números estimados pelos combates referenciados). O inimigo sofreu 67 mortos confirmados. Posteriormente. verificou-se que o número de baixas foi bastante maior. As nossas tropas sofreram também pesadas baixas: 25 mortos (sendo dois oficiais); 23 feridos graves (sendo três oficiais e 7 sargentos). Nesta operação patente o espírito agressivo dos comandos africanos e a sua excepcional resistência física.
Abandonei a Guiné em Julho de 1973. Militarmente a situação estava mais complicada, porque o aparecimento dos mísseis terra-ar retirou-nos, em parte, a supremacia aérea. Assim se compreende a morte de dois comandantes de grupo em dez dias: o tenente-coronel Almeida Brito e o major Mantovani, que foram abatidos pelos Strela. Isto dificultou a liberdade que tínhamos, visto que a cobertura aérea era muito importante para aquele tipo de guerra. O PAIGC veio dizer que o Boé era dominado por eles e que tinham lá um governo, mas isso não era assim. Durante o ano de 1973 e até regressar, fiz duas ou três operações no Boé. Percorri o Boé praticamente todo e aquilo estava completamente deserto. Não havia lá ninguém. Fiz lá duas ou três vezes operações com o batalhão de comandos africanos. Com o COE fiz duas operações pontuais e nada vimos. O Boé não tinha significado para nós porque não era o território que tinha significado, para as populações. Em guerra subversiva não é o terreno que conta, mas a população. Será que eles, em fins de 1973 e princípios de 1974, fizeram lá uma tabanca e puseram lá o governo?
É possível, mas até eu me vir embora isso não era verdade. Que estavam na fronteira, isso estavam. E até podiam estar um bocado dentro do território, mas não tinha significado. Não havia parte nenhuma do teatro de operações onde nós não fôssemos.
Nem o célebre Morés. Isso é uma mera fantasia. Claro que eles tinham lá bigrupos, claro que nós íamos lá, claro que eles tinham baixas e nós também. Mas eles não dominavam. Em guerra subversiva a dominação é a dominação das populações. E as populações eram dominadas por nós, totalmente enquadradas com as milícias. Agora dizem-me: «Mas eles à noite iam às tabancas e pediam para eles lhes darem umas cervejas, e eles davam.»
É muito natural que isso acontecesse, não digo que não. Mas o Cacheu era nosso, Bigene também, todos os pontos fundamentais eram nossos. Aí, o PAIGC não tem razão. É evidente que eles tinham uma rede de intelligence dentro das nossas próprias milícias. Dentro do meu batalhão havia elementos que eu sabia que passavam informações ao PAIGC. O meu oficial de informações, que era o tenente Zacarias Saiegh, africano, mestiço, que foi fuzilado pelo PAIGC depois da independência, muitas vezes passava a estes notícias que nós inventávamos para contra-informação. Dentro das nossas tropas havia elementos do PAIGC e nós sabíamos e servíamo-nos deles. Mas no plano político internacional a posição portuguesa estava muito fragilizada e, por isso, aceito que o PAIGC estivesse a consolidar a sua posição. Quando eu saí, em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político porque Lisboa tinha tirado o tapete ao general Spínola. E isto teve reflexos na guerra. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha porque não tínhamos o «De Gaulle» aqui em Lisboa e o próprio governo de Marcello nos tinha retirado o tapete, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra. E a guerra pela guerra a nós não nos convencia.
Não sei porque é que o Bethencourt Rodrigues foi indicado para lá. Penso que foi porque era um homem de perfil militar muito forte, com provas dadas em Angola. Já tinha sido ministro. Eu vim-me embora em Julho e o nosso general Spínola veio em Outubro. E de Outubro de 1973 a Abril de 1974, o general Bethencourt Rodrigues não teve tempo para fazer nada. Quem me substituiu no COE foi o tenente-coronel Veiga da Fonseca, já desaparecido, e que não fez alteração nenhuma à acção do COE. O meu substituto no batalhão de comandos, o Folques, também não fez alterações. O general Bethencourt Rodrigues não teve tempo para pôr o seu próprio selo na Guiné. Depois, a vinda do general Spínola para Lisboa deu-nos alguma esperança na modificação da situação política. Eu falo do tempo em que lá estive e acho que a Guiné não estava perdida militarmente. A Guiné estava perdida, sim, porque a solução não era militar mas política, e nós já tínhamos perdido a solução política. Ou seja, eu não acredito que o PAIGC destruísse o Exército português na Guiné, peça por peça, e ficasse implantado no território com as suas forças militares. Não acredito. O Bethencourt Rodrigues de certeza que também não acredita. A verdade era que tínhamos a noção de que íamos perder, já que politicamente não avançávamos. Acrescento a isto o meu convencimento pessoal de que o Governo era capaz de sacrificar militarmente a Guiné, perdendo-a, retirando tropas, e criando uma situação de fragilidade, como fez na Índia, para depois se concentrar na manutenção de Angola e Moçambique.
Mas daí até dizer que em Julho de 1973 estávamos à beira de uma derrocada, parece-me falso. Eu digo que é mentira, porque eu fui a Kumbamory, no Senegal, porque Guidage estava de tal maneira apertada que a situação da sua guarnição era extremamente complexa e difícil. Fui, rebentei com o Kumbamory, e Guidage passou a estar aberta. Nós só abandonámos Madina do Boé e Beli, não abandonámos os quartéis portugueses. Houve, no Sul, uma debandada de um quartel, que depois foi reassumido com a colocação lá do capitão Manuel Monge, graduado em major. Foi em Gadamael. Guilege, por exemplo, nunca foi abandonado e o PAIGC nunca entrou no Guilege. Se saíssem aviões da Guiné-Conakry para nos bombardear, lá teríamos que fazer a segunda Operação Mar Verde. E se viessem MiG da Guiné-Conakry, o Governo teria de comprar Mirage que pudessem ir à Guiné bombardear. E estavam a ser negociados. O PAIGC sabe que este tipo de guerra perde-se politicamente. Ou seja, na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu na Guiné tinha que ser Bissau e Bissau, porque está. encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa, o que me parece absolutamente impensável. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime por razões de seriedade para comigo próprio, e para com todos quantos sob o meu comando combateram e morreram em África. Vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia. Será um sonho? A História o dirá.[1]
[1] Testemunho oral de Almeida Bruno, Lisboa, 2 de Março de 1995. General do Exército, nasceu em 1935. Serviu em Angola (1951-1963) e 1965-1968) e na Guiné (1968-1971 e 1971-1973). Era presidente do Supremo Tribunal Militar quando foi entrevistado.
BIBLIOGRAFIA
A GUERRA DE ÁFRICA (1961-1974)
José Freire Antunes - Circulo dos Leitores - VOL II
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