ALPOIM CALVÃO
Ataque a Conakry
Tornou-se um especialista em missões especiais e dispunha de um singular estatuto operacional na Guiné e de um raio de autonomia conquistada pela sua ousadia no terreno. Só na sua primeira comissão esteve envolvido em 92 acções de fogo. Comandou a invasão de Conakry, levada a cabo em 22 de Novembro de 1970, e que teve profundas influências na evolução do conflito na Guiné. O comandante Guilherme de Alpoim Calvão tornou-se um dos membros da elite militar de que Spínola se socorreu para tentar conter o PAIGC, por vezes para além das fronteiras da Guiné. Trabalhou com oposicionistas a Sekou Touré, o presidente da República da Guiné-Conakry, em esforços de derrube que não resultaram. Estava em contacto directo com o ministro da Defesa, Silva Cunha.
Fez o curso de mergulhadores-sapadores na Marinha inglesa, em 1959, e especializou-se em submersíveis, em 1962. Em 1963, frequentou o curso de fuzileiros. Quis tirar o curso de fuzileiro com a condição de ir para a Guiné, onde chegou em Outubro de 1963. Apanhou o general Arnaldo Shultz e a sua concentração dos poderes de comandante-chefe e de governador. Era um adepto de acções militares fora da fronteira. Com a liderança de Spínola, mais meios e novos conceitos, sobreveio na Guiné um outro fôlego militar.
A Marinha já tinha começado a pensar, com grande antecedência e graças ao almirante Armando Reboredo e Silva, na formação de fuzileiros. Criou-se a Base de Metangula, no lago Niassa, em Moçambique, quando ninguém ainda pensava que poderia haver guerra. Antes de a guerra rebentar em Angola, houve o primeiro curso de fuzileiros em Inglaterra, para o qual eu me ofereci. Mas como já era especializado em submarinos e mergulho, não me deixaram ir. Para esse curso, em Inglaterra, foram um ou dois oficiais, uns sargentos e praças e, quando vieram, iniciaram a instrução de fuzileiros. O primeiro destacamento de fuzileiros, o n.° 1, foi comandado pelo Coelho Metzner e foi para Angola. Eu tive uma certa fricção com o comando das esquadrilhas submersíveis, porque queria sair dos submarinos e ir para os fuzileiros, o que era uma coisa raríssima, pois os submarinos tinham uma grande vantagem, pela especialização que exigiam e pela estabilidade de posição. Por exemplo, havia praças e sargentos que passavam a vida na Marinha e nunca tinham estado noutro sítio a não ser nos submarinos. E oficiais também. Só consegui ir para os fuzileiros porque pedi para ser recebido pelo almirante Reboredo e disse-lhe que queria tirar o curso de fuzileiro, com a condição de ser mandado para a Guiné. Foi em 1963. Autorizaram-me a frequentar o curso. Em Outubro de 1963 cheguei à Guiné, a comandar o destacamento de fuzileiros n.° 8. Já estava na Guiné o destacamento n.° 2, comandado pelo actual almirante Pedro Caeiro, e depois, na mesma altura que o meu destacamento, o n.° 7, comandado pelo actual chefe da Armada, Ribeiro Pacheco. Na altura, o destacamento n.° 2 já tinha outro comandante, o Faria de Carvalho. O Caeiro tinha sido ferido com um tiro num pé, na ilha de Como. Em 1963, os conflitos na Guiné começaram a aumentar muito rapidamente de intensidade e foram para lá mais dois destacamentos, o n.° 7 e o n.° 8. Logo a seguir, em Março de 1964, foi também o destacamento n.° 9. Eu desembarquei na Guiné no dia 4 de Outubro de 1963 e, dias depois, comecei a minha acção operacional. Eu era primeiro-tenente em 1963 e tinha 26 anos.
Na Guiné, a acção dos fuzileiros foi mais importante, exactamente pelas condições do terreno. Isto também tinha a ver com um conceito, que era o seguinte: os cursos de água, quer fluviais, quer marítimos, quer lacustres, quando eram vias de comunicação, eram da responsabilidade da Marinha, mas quando eram obstáculos eram da responsabilidade da Engenharia do Exército. Na Guiné, a maior parte dos cursos de água eram linhas de comunicação e, por conseguinte, a função básica dos fuzileiros era a de manter livres as linhas de comunicação, vitais para a província, para o reabastecimento das tropas, das populações. etc. Mantinham-se livres as vias de comunicação fluviais, mantendo as margens dos rios livres. A acção dos fuzileiros partia sempre do navio para terra, para empurrar o inimigo para fora da zona ribeirinha. Foi uma missão plenamente alcançada. O que costumo dizer é que nós fomos sempre onde quisemos, com maior ou menor dificuldade. Os navios eram emboscados, de facto, e até temos uma coisa que deve ser rara no mundo: uma lancha de desembarque que foi afundada por duas vezes. Os ataques aos navios sucediam-se. Quando cheguei à Guiné, o governador era um oficial da Marinha de grande gabarito, o comandante Vasco Rodrigues. O comandante-chefe era do Exército, o brigadeiro Louro de Sousa, que tinha a alcunha de «o Papagaio». Era um homem essencialmente de estado-maior - quando eu digo que era de estado-maior, não o faço com sentido depreciativo - e com pouca experiência de campo. Agarrava-se muito a conceitos teóricos. Lembro-me de um dia ele me ter perguntado se eu sabia qual era a frente que uma companhia ocupava. Eu não fazia a mínima ideia e, instintivamente, respondi-lhe que pensava que dependia do terreno. Lembro-me de ter acrescentado: «Senhor brigadeiro, quem é que ocupa a parte de trás?» Era uma pessoa muito agarrada a esses conceitos. Havia uma grande fricção entre ele e o governador.
A partir do general Shultz passou a haver na Guiné um governador e comandante-chefe. O que, dadas as dimensões do terreno e dada a gravidade da situação, era uma solução absolutamente aceitável. O poder estava todo nas mesmas mãos.
O general Shultz era um homem muito inteligente, um indivíduo que tinha muito senso, mas talvez fosse contemporizador, digamos que não tinha um grande espírito agressivo. Era um indivíduo que conseguia consensos, não entrava em conflito com os seus comandantes e conseguia pô-los a trabalhar como uma equipa. Isto era uma coisa positiva, mas também reconheço que lhe faltou espírito agressivo. Por exemplo, lembro-me que, quando cheguei à Guiné, o caso mais flagrante que havia era o aprisionamento do então sargento Lobato, um piloto que tinha caído dois ou três meses antes no Tombali. Tinha tido um acidente. Depois, esse homem foi levado para Conakry e lembro-me de ter perguntado se não se fazia nenhum esforço para ir buscar os nossos prisioneiros. Mas não havia respostas. Eu era um indivíduo interessado pela guerra, achava que devia cumprir o melhor possível. Estava sempre a propor operações. A partir de determinada altura comecei a fazer acções autonomamente, mas a minha foi uma autonomia conquistada. Não precisava que me mandassem fazer, fazia. Apanhei uma boa equipa na Guiné, na Marinha. Primeiro, era o comandante Manuel Lopes Mendonça, que tinha um chefe do estado-maior que era o Paulo Costa Santos. Era uma equipa muito boa e que dava iniciativa aos seus subordinados. A mim deram-me iniciativa, porque talvez eu tenha demonstrado que merecia que me dessem iniciativa, não sei. A seguir foi o comandante Francisco Caeiro, homem de grande energia e vontade de realização. Apesar do posto - logo a seguir foi promovido a oficial general - tirou um mini curso de fuzileiro connosco e sempre que podia acompanhava as operações de fuzileiros no terreno, o que moralizava imenso os homens. Deu-me plena liberdade de acção, a que eu correspondi produzindo intensa actividade operacional.
Andávamos sempre atrás do inimigo mas, como na Guiné as fronteiras não se fecham, era como estar a esvaziar uma banheira sem fechar a torneira. E então propunha sempre operações ofensivas, para lá das fronteiras. Em relação a isto nunca obtive concordância da parte do general Shultz. Lembro-me que tentei fazer operações de emboscadas no Sul, na ilha de Canefaque e a certa altura, como era muito em cima da fronteira, ele mandou parar. Acho que essa actividade operacional era bastante apreciada. Mas estes lugares de comando desgastavam muito, sobretudo ao nível de comandante-chefe e, ainda por cima, também governador. Eram indivíduos que estavam no meio do jogo. Por cima, tinham o Conselho Superior de Defesa, o ministro da Defesa, o chefe de Estado-Maior General; por baixo, tinham um saco de gatos que tinham de pôr muitas vezes de acordo entre si. As vezes eles começavam com entusiasmo mas, a certa altura, arranjavam uma posição de comodidade, que dava para cumprir a missão. Nós sabíamos, da teoria e da prática, que as guerras subversivas eram guerras muito prolongadas, por isso o desgaste próprio também tinha que ser limitado. Tínhamos aquele conceito estratégico de que às Forças Armadas competia arranjar espaço e tempo para que as forças políticas arranjassem soluções. Por conseguinte, tinham de ser coisas que mantivessem o melhor possível o nosso sistema de soberania e que, ao mesmo tempo, isto não poderia custar muito porque, de outra forma, o esforço, que se previa prolongado e que mesmo assim durou treze anos, poderia sofrer grandemente.
A substituição do general Shultz pelo general Spínola foi um pouco como a mudança de liderança de um partido político. Apesar do que se fez, chega-se a uma certa altura em que se é o primeiro a reconhecer: «Tenho que sair daqui, porque não consigo puxar mais esta carroça.» Talvez tenha havido um acomodamento. No caso da Marinha, procurávamos desembarcar indetectados mas, evidentemente, passado um tempo, éramos detectados e o inimigo já sabia que estávamos ali e, ou ele nos encontrava ou nós o encontrávamos. Criou-se um espírito deste tipo: nós desembarcávamos, três quartos de hora depois ouvia-se um tiro e pensávamos «fomos detectados, vamos embora». Se da parte do comandante-chefe houvesse um espírito agressivo e dissesse que o primeiro que fizesse isto teria 10 dias de prisão, isso acabava. Mas não, houve um certo acomodamento. Manteve-se a soberania em todo o território, as coisas iam-se fazendo, mas foi-se perdendo élan, um pouco dessa necessidade que o chefe tem de empurrar as coisas para a frente. O general Spínola tinha uma vantagem sobre o general Shultz: tinha comandado um batalhão na guerra em Angola, coisa que o general Shultz, por ser do Estado-Maior e por ser general há mais tempo, nunca fez. Tenho grande consideração pelo general Shultz. Era um homem inteligente e que conseguia soluções de consenso. O general Spínola foi escolhido pessoalmente por Salazar, levou quase uma carta de prego para descobrir uma solução. Era um homem com prestígio militar, justamente conquistado em Angola. Ele entusiasmou uns e desanimou outros. Havia alguns que estavam instalados e que tiveram que mudar os hábitos. Por exemplo, uma patrulha ia buscar lenha e no SINTREP saía: «Operação de patrulhamento a tal sítio, não se encontrou nada» ... e iam buscar lenha. Eu não estou a criticar ninguém. De facto, quando uma patrulha vai buscar lenha a quatro quilómetros não deixa de ser uma patrulha.
Spínola conseguiu talvez mais meios e desenvolveu a sua actividade dentro do conceito da conquista das populações. Incrementou extraordinariamente a parte da acção psicológica, a parte de apoio às populações, a construção dos aldeamentos, etc. Lançou uma actividade militar muito grande, agitou militarmente. De facto, uma situação que estava estática levou uma sacudidela e começou tudo a andar. Depois, Spínola tinha métodos de comando menos consensuais, «mais à tropa», disse que não tirava nenhuns méritos ao general Shultz, porque os tinha tido. Depois eles zangaram-se. Talvez o general Spínola tivesse dito algumas coisas menos amáveis sobre o general Shultz. Sei até que eles tiveram uma cena extraordinariamente desagradável no gabinete dos ajudantes do ministro da Defesa, em que quase se envolveram à pancada. Eu gostava do que fazia e tenho a sensação de que consegui transmitir isso aos meus homens, que corresponderam. Eu tinha, de facto, uma unidade excepcional. A administração, seja em que sítio for, é a arte de, através da organização, do planeamento, da direcção e da fiscalização, distribuir tarefas pelas pessoas. A minha actividade operacional foi muito grande. Só na minha primeira comissão estivemos envolvidos em 92 acções de fogo, distribuídas ao longo de 47 operações, entre elas a da ilha de Como, que durou muitos dias. Dessas acções resultaram, para as forças inimigas, 146 mortos e 38 prisioneiros, além de 89 embarcações destruídas ou recuperadas. Sofremos quatro mortos, e 31 feridos, num efectivo de 75 homens. A unidade recebeu 40 condecorações.
Eu era o único oficial superior na Escola de Fuzileiros, em Vale do Zebro, quando assumi o comando das instalações navais e cheguei a ter 2033 homens sob as minhas ordens. Naquela altura, a Escola de Fuzileiros funcionava como escola e como força operacional. Recebíamos as unidades, treinávamo-las, dávamos instrução, fazíamos a recruta. Dentro das câmaras dos navios, dentro da Marinha, nós dizíamos o que queríamos, dizíamos mal do Governo, dizíamos bem, mas nunca ninguém foi chateado. Dentro deste espírito nós dizíamos o que pensávamos. Havia um oficial aluno, um tal Nelson Trindade, que por onde passava criava problemas. Um dia puseram-no lá para tirar o curso de fuzileiro. Esse tipo começou a levantar problemas e a dizer que nós andávamos a matar pretos em África. Uma unidade daquele tamanho tinha que ter disciplina e funcionava lindamente. Havia oficiais, cadetes, sargentos e praças. Os elementos regressados do Ultramar, onde tinham juntado uns dinheiros, compravam uns rádios e umas coisas do género. Eles coexistiam algum tempo na escola com recrutas, rapazes de 18 ou 19 anos, pouco abonados de dinheiro. Viam aquelas coisas e, de vez em quando, lá havia um que não resistia e roubava um rádio. Para evitar este tipo de situação, eu tinha uma regra de ouro: quem fosse apanhado a roubar qualquer coisa, levava 30 dias de prisão, o que lhes dava logo direito a ir para o Forte de Elvas. Parava-se o que se estivesse a fazer, os dois mil homens formavam na parada e o tipo que tinha sido apanhado já ia com o cabelo rapado, como era próprio do regulamento da prisão. Punha-se em cima de um banco e lia-se a punição. Nas quatro ou cinco vezes que isto sucedeu correu tudo bem. Quem era roubado via que havia uma actuação rápida e quem tinha tentações pensava três vezes antes de o fazer. E mantinha-se o equilíbrio disciplinar.
Um dia, quando o Nelson Trindade lá estava, sucedeu uma coisa destas. Procedemos da mesma maneira e ele fez uma participação contra mim, por utilizar «métodos do século XVIII», «com exposições no pelourinho». Mas enganou-se, ao pensar que a Escola de Fuzileiros estava integrada no grupo n.° 2 de escolas. Mas como era geograficamente afastada, estava integrada nas instalações navais de Vale do Zebro, de que eu era comandante e director de instrução da Escola de Fuzileiros que, escolarmente, dependia do grupo n.° 2 de escolas. Quando fez a participação contra mim, pensou que a tinha que mandar para o comandante do grupo n.° 2 de escolas. Mas não. Houve um auto de averiguações e puni-o com seis dias de prisão disciplinar agravada. Ele reclamou e eu confirmei, ele recorreu para o chefe do Estado-Maior, que me mandou levantar um auto, pelo Silva Horta. Ele foi cumprir a pena, foi para a Mariazinha, a prisão. Depois vieram as cunhas. Acabei por ser chamado ao ministro da Marinha, que era o almirante Manuel Pereira Crespo, um tipo muito porreiro, mas eu disse-lhe que não tirava a pena. Ele lembrou mesmo o facto de a mulher do Nelson Trindade estar à espera de uma criança e eu até fui um pouco inconveniente, o que levou o ministro a mandar-me sair do gabinete. Mas nada me fazia tirar a pena. Depois, houve uma sentença deste género: ele teve mais não sei quantos dias de prisão, e eu tive uma repreensão agravada, por ter dado publicidade exagerada a uma pena. Se há uma medalha que eu não tenho é a de comportamento exemplar. Portanto, fui castigado e segui para a Guiné. Deram-me a medalha de prata de serviços distintos pelo trabalho que tinha feito na Escola de Fuzileiros. Aconteceu tudo isto na mesma semana, o que deve ser único.
A partir da segunda comissão na Guiné, em 1969, Calvão tornou-se um operacional de missões especiais, a mais relevante das quais foi a invasão de Conakry. Um seu colega, Carlos Fabião, retratou-o como «um aventureiro ao estilo James Bond. Álvaro Pereira de Carvalho, então director de informações da PIDE-DGS, diz que Calvão gozava de «um estatuto especial». Spínola louvou a sua «serena energia debaixo de fogo». Participou em dezenas de acções arriscadas na Guiné.
Quando desembarquei em Bissau, em Fevereiro de 1969, encontrei-me, por acaso, com o general Spínola no aeroporto. Fomos apresentados, ele recebeu-me muito bem e disse-me que esperava que nos déssemos bem. Respondi-lhe que não sabia, porque eu tinha três defeitos muito grandes: era da Marinha, não era de Cavalaria e não era do Colégio Militar. Ele riu-se muito e perguntou-me quando é que podia entrar em funções. «Já!», respondi eu. Fui comandar um grupo com lanchas de desembarque, dois patrulhas e dois destacamentos de fuzileiros que estavam em Bolama e comecei a fazer acções à minha vontade, no rio Grande de Buba. Foi aí que conheci o meu grande amigo Carlos Azeredo, com quem tive, aliás, uma pega desgraçada. Eu era mais antigo que o Carlos Azeredo e o Spínola mandou-me levantar-lhe um auto. Foi uma daquelas casmurrices entre dois oficiais voluntariosos e de um certo mau génio. Levantei-lhe o auto, depois foi arquivado por proposta minha e ficámos amigos desde aí. Depois nunca mais parei, fui pau para toda a obra. Fui comandante do COP 3, comandei forças do Exército, da Marinha. Eu só sabia comandar dando o exemplo. Já tinha uma experiência muito grande de mato, e era uma das coisas que eu gostava de ensinar à malta nova. Eu tinha um grupinho que andava sempre comigo. Era capaz de dizer a um segundo-tenente para escolher três tipos e era capaz de ir com esse grupo em botes de borracha e enfiar-me no mato, para ensinar. Eu tinha uma teoria: tínhamos que andar com pouca gente no mato, porque era difícil andar no mato, podíamos perder-nos com facilidade. Eu queria entusiasmar os rapazes novos e por isso levava-os comigo. Em noites escuras, saíamos do navio em botes de borracha, metíamo-nos pelos rios e afluentes: «Isto é com carta, bússola, e bom senso.» Aproximávamo-nos dos acampamentos. Era aquele treino: «Ninguém se mexe, não há cigarro, não há nada!» Depois, esperávamos o cantar do primeiro galo, aí pelas três da manhã. Quando cantava o segundo, aos primeiros alvores, atacávamos.
Com o Patríce Lumumba, cheguei a estar oito dias sentado num bote de borracha. O Patrice Lumumba era um navio que apanhei na República da Guiné. Afundei-o. Mas eu sempre gostei de ir, para mostrar, para encorajar, para entusiasmar. Havia determinados serviços que eu gostava de fazer, de estar no terreno. Na Guiné, chove durante metade do ano, e não se pode intervir. Como é que então se faziam operações? Como é que se faziam apoios de fogo? Era preciso ter grande confiança na artilharia, nos morteiros. Então tinha de se ir para se dar o exemplo: «Isto é seguro porque eu estou cá!» Mandava fazer fogo a cinco ou seis quilómetros de distância. Era preciso dar confiança a quem estava no terreno. E à noite como é que era? Tínhamos de ter as coisas bestialmente bem treinadas. Eu, muitas vezes, embarcava com uma secção, com um morteiro 81, preparava tudo, mas às vezes via-me aflito, porque o inimigo atacava-me a mim. Mas, principalmente, o que eu gostava era de ensinar e dizer: «Podes fazer!» Era uma maneira de estar.
Também podia haver discussões, porque eu estava preparado. Na Guiné, com o general Spínola, todos os dias às seis e meia da tarde havia um briefing, sete dias por semana. Não havia férias para ninguém. Quando eu vinha do mato ia ao briefing e tinha discussões com os homens das informações. Lembro-me de que, uma vez, o chefe das informações disse: «Notícia A-I - era do mais alto grau - diz que há dois dias numa "cambança" (uma passagem) trinta homens passaram.» O general Spínola perguntou: «Está aí o comandante do COP 3? O que é que o senhor tem a dizer disto?» «É mentira!», respondi eu. O major das informações, o Pereira da Costa, perguntou: «Está a dizer que é mentira?» Eu disse: «Estou a dizer que o senhor major não esteve lá e eu estive! Passei por lá a pé e não vi cambança nenhuma.» O major Pereira da Costa era o «Astérix» e o homem da PIDE, o Matos Rodrigues, que pesava para aí cento e vinte quilos, era o «Obvie». Eles detestavam-se de morte.
Eu procurava integrar-me nas directivas. Aconteceu, por exemplo, ter de reforçar a acção no CAOP, perto de Teixeira Pinto. Disseram-me: «Você tem que fazer uma série de acções, durante três semanas, na Caboiana.» Determinavam o meu território e eu ia. Eu ia, tinha a força naval que transportava os homens da minha base de Ganturé para a Cabotina - eram umas seis horas de rio - e depois estava ali três semanas em que não parava. A Operação Gata Pequena, por exemplo, foram três semanas de actuação constante. Sempre tive a percepção de que tínhamos que interceptar os apoios inimigos, os meios de abastecimento, os meios de comunicação, e tinha esta ideia desde o tempo do Shultz, mas nunca me deixaram fazer isso. Quando fui propor isso ao Spínola, uns diziam «mata» e outros «esfola», mas ele disse-me: «Faça o que quiser.» Havia lá um organismo, a CHERETT, que fazia a intercepção de comunicações e que funcionava bem. Nós tínhamos autênticos génios a furar códigos. Havia lá um homem de Cavalaria com uma habilidade enorme para furar códigos. A primeira vez que fiz uns reconhecimentos no rio Inxanxe, na fronteira com a Guiné-Conakry, descobri lá um ilhéu, Calebe. Achei que podia ali ficar. Fui buscar informações por ali a um pescador, que me disse que eles estavam em Kadigne - aquela população não tinha nada a ver com a guerra, estava no outro lado. Fiquei com esta ideia: eles desciam o rio, entravam em Kadigne e, à noite, transportavam as coisas, em cambava, de Kadigne para Canefaque, do nosso lado. Comecei a pensar e resolvi interceptar o navio, o Patrice Lumumba, que era da Guiné-Conakry. Assim foi. Fui com quatro botes de borracha e levava dezasseis homens. O Rebordão de Brito ia comigo. Navegámos de noite, até chegarmos ao tal ilhéu Calebe. Levávamos uns panos de tenda, umas catanas, abrimos uma «garagem» no tarafe (mangais localizados principalmente nas margens dos rios) e ficámos lá oito dias. Levava uns sacos de ração de combate. Ia preparado para estar quinze dias. Nós para fazermos isto tivemos que ir com a maré cheia: iam quatro homens em cada bote, os sacos, as rações. Como chegámos de noite, com a maré cheia, pendurámos os sacos das rações nos ramos das árvores. De manhã, a maré estava vazia e os sacos estavam a cinco metros de altura.
Vivíamos nos botes de borracha. A minha primeira ideia foi acampar em terra mas, se passasse alguém, levava quase uma hora a chegar ao bote. Também não podíamos fazer barulho porque eles passavam ali perto, em canoas. Depois chovia, havia os mosquitos. O tempo passava-se a conversar baixinho, a contar uma história, a dormir, a limpar as armas. Quando chovia e havia trovões punham-se os motores a funcionar para secar a humidade. De dia podia-se fumar, à noite não. O Diogo Neto, de vez em quando, passava lá por cima e perguntava se estava tudo bem. Eu levava comigo um tipo que tinha sido feito prisioneiro, o Abou Camará, que era sosso, uma etnia do Sul da Guiné, e não falava outra coisa que não fosse sosso. Por isso, tive que levar um homem das oficinas que falava sosso. No meu bote estava eu, o «Setúbal», o Abou Camará. Éramos quatro ao todo. Esse Abou Camará tinha trabalhado no Patrice Lumumba, que transportava sempre carga e gente do PAIGC, para cima e para baixo, e por isso conhecia o barco. Ouvimos o barulho de um motor, e apareceu o barco, que tinha o tamanho de um cacilheiro pequeno. O barco aproximou-se, pusemo-nos em posição de tirar os ramos que ocultavam a «garagem», ligámos os motores e lançámo-nos para cima dele. O motor do meu bote, que era o que estava à saída, pegou, arrancou e largou, mas os outros não largaram. Os motores não pegaram logo. Fui sozinho, com o tipo que era um ex-turra, com o mecânico, que ia cheio de medo, e com o «Setúbal», o Guerreiro Tristão. Eu, que estava convencido que a minha malta vinha toda atrás, quando disse «atacar»... estava sozinho. Os outros estavam muito lá para trás. Claro que os gajos do Patrice Lumumba aceleraram, fomos atrás deles, começaram a abrir fogo sobre nós. Tinham umas armas ligeiras, nós tínhamos as C-3.
Lancei-me atrás do navio. O que queria era apanhar o navio e o seu pessoal, não queria matar ninguém. Levava granadas de gás lacrimogéneo. Estávamos eu e o «Setúbal» praticamente sozinhos, atirei a fateixa de abordagem, ele lançou duas granadas de gás lacrimogéneo para a parte de baixo e entrou atrás das granadas, mas estava um sacana de um gajo com uma Simonov apontada para mim. Disparou cinco tiros contra mim, a uns três metros de distância, mas falhou todos. Quando ele acabou o carregador eu subi para o barco, mas não levei arma e despachei o gajo com dois murros. Depois tive também um corpo-a-corpo rápido com o homem do leme e, entretanto, chegou a outra malta e então capturámos o navio com trinta homens lá dentro. Apanhámos o navio e seguimos com ele para o nosso lado. Ele já estava quase a entrar em Kadigne. Saímos dali em grande velocidade para nos irmos encontrar com o nosso navio de apoio, que estava fora. Apanhámos trinta homens, alguns não tinham nada a ver com a história, mas outros eram do PAIGC e foram entregues aos homens das informações. Nessa altura, o Spínola estava em Portugal, na Curia. Trouxemos o Patrice Lumumba de braço dado com o navio de apoio. Só que, depois, começou a meter água, talvez por causa dos tiros, dos choques, deve ter batido em alguns bancos de areia, e deixámo-lo ir ao fundo por altura do Tombali. Houve protestos e eu fui ao briefing a Bissau. Nessa altura, o comandante-chefe interino era o comodoro Luciano Bastos, pessoa que me apoiava muito. Apareceu o «Astérix», que disse: «Interceptaram umas mensagens - movimentos das tropas de Conakry para a fronteira.» Eu perguntei-lhe: «Senhor major, quantos grupos do Exército tem Conakry, quantos corpos, quantas divisões? Afinal, o que é que foi deslocado para a fronteira?» Ele respondeu: «Dois pelotões.» «Então foi a deslocação de dois pelotões para a fronteira?», perguntei. «Se a deslocação de dois pelotões para a fronteira lança esse pânico todo, não sei como vai ser.» Resultado: mais uma guerra do «Astérix» comigo. Como o Spínola estava em Portugal, mandaram-me cá para lhe contar o que é que se tinha passado. Ele achou muito bem. Fiz outras acções fora da fronteira. A Operação Gata Brava foi feita dentro de Kadigne. Foi uma intercepção de um barco, em que ia um agente do PAIGC, com o nome de código «Marcel». Ia dentro do barco e eu só tive uma solução - matá-lo. É que, tanto do lado da República da Guiné, como do lado do PAIGC, em Canefaque, onde também puseram uma série de metralhadoras pesadas, houve grande tiroteio para cima de nós. Quando apanhei o tipo nem se imagina o «fogaréu» que vinha das margens. Vínhamos nos botes de borracha e os tiros passavam a três ou quatro metros de distância. Fiz várias incursões, também, no território do Senegal. Fui lá uma vez incendiar uma aldeia do outro lado. Eram aquelas retaliações que o Spínola mandava fazer, contra todas as directivas.
A Operação Mar Verde foi proposta por mim. A minha proposta era limitada à destruição dos navios e à libertação dos prisioneiros. Eu pertencia ao quartel-general do comandante-chefe, era comandante do Centro de Operações Especiais do comandante-chefe. Mas não sabia que havia uma organização chamada Front Natural de Libération de Ia Guinée (FNLG), que estava em ligação connosco. Eram os oposicionistas a Sekou Touré. Eu procurava saber desesperadamente onde é que estavam os nossos prisioneiros, chateava o homem da DGS, o Matos Rodrigues, mas a DGS sabia muito pouco. É interessante saber que o Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca permitiu que a polícia penetrasse dentro das embaixadas e dos consulados, o que foi péssimo, porque eles, além de serem uma Polícia judiciária para os crimes políticos, eram também um serviço de informações. Não tínhamos ninguém para dar informações, embora tivéssemos gente em toda a África. Havia só uns carolas, uns comerciantes. O treino dos oposicionistas a Sekou Touré teve a ver comigo porque foi incluído na minha operação. Quando fui propor a operação, o meu objectivo era afundar as vedetas, os meios de transporte do PAIGC e, ao mesmo tempo, fazer um golpe de mão para libertar os prisioneiros. Depois disseram-me que eu tinha que combinar isto e mais aquilo. Perguntei como. Disseram-me que tentaria ajudar o grupo de oposicionistas a fazer um golpe de Estado. Em relação ao Amílcar Cabral, a nossa ideia era prendê-lo. Mas mandámos umas bazucadas para a casa que se presumia ser dele. A ideia era capturá-lo, apesar de, em minha consciência, e se fosse necessário... Os meus homens perguntavam: «E se chegarmos lá e eles atirarem?» Eu disse: «Aí, é tiro contra tiro.»
A oposição mais séria que houve à nossa acção foi exactamente na zona das casas do PAIGC. Os oposicionistas a Sekou Touré iam todos connosco. Libertámos os que estavam na prisão da Guarda Republicana, que eram cerca de quatrocentos, um dos quais, o célebre capitão Abou Soumah, que era oposicionista do Sekou Touré, que eu libertei naquela altura. O objectivo estratégico falhou, não há dúvida nenhuma. A FNLG não foi capaz de derrubar o governo de Sekou Touré. Mas esta não era a minha função, a minha função era dar-lhes o impulso inicial. Nós tínhamos um problema muito grande, que era a nossa aviação, que não chegava lá. Havia a célebre questão dos MiG que não estavam em Conakry. Eu só vim a saber que dos MiG só voava um e mal, depois de ter o Lobato a bordo, às nove e meia da manhã. Como, no meu íntimo, o que me interessava era trazer os prisioneiros, os tipos da FNLG que se aguentassem. Eles ainda aguentaram a luta oito dias e depois foram apanhados e foi uma repressão tremenda. Até o arcebispo de Conakry foi dentro. O Sekou Touré aproveitou para matar uma data de pessoas, que nem sabiam que aquilo ia acontecer. Houve uma pessoa que morreu no meio disto, e era um inocente, um cidadão da República Federal Alemã, apanhado em fogo cruzado. O que sucedeu, de facto, foi que, às nove da manhã, estavam multidões nas ruas aclamando os nossos homens, que regressaram aos navios. Eu tive um problema grande com as forças africanas a trazerem lembranças - havia quem até trouxesse os trombones da Guarda Republicana, pessoas que traziam vinte armas às costas, iam carregados de tudo e mais alguma coisa.
Eu estava sentado à espera, a ver quando é que me caíam os MiG em cima, mas não queria deixar lá ninguém, excepto o Januário, que desertou, com medo entregou-se. O Januário era um tenente dos comandos, era africano. Era um tipo que o Marcelino da Mata não gramava nem com molho de tomate. Esse tipo entregou-se e os homens que iam com ele foram apanhados.
Eram uns quinze e foram apanhados por causa dele. De facto, psicologicamente, se os homens da FNLG estivessem melhor coordenados com a oposição, caso ela existisse em terra, como garantiram, aquilo seria para eles pão com manteiga. Os tipos traziam tantas coisas às costas, com gente da população a dizer «tome lá uma cerveja», «leve uma caixa». Então, os tipos que fizeram o ataque à Guarda Republicana, ao palácio presidencial, deitaram mão ao que puderam. Tive um grande problema, dizia-lhes para deixarem tudo em terra mas, mesmo assim, houve um que trouxe vinte pistolas. No meio disto, houve tipos que se distraíram, houve um que se distraiu de tal maneira que quando deu por ela já os navios se iam embora, um Francisco qualquer coisa, que era balanta. Ele sentiu-se sozinho, deitou-se à água e começou a nadar para a América. Nadou e, a três milhas da costa, foi recolhido por um navio holandês. Desembarcaram-no em Monróvia, na Libéria, onde pediu asilo político. Ninguém percebia nada do que ele dizia, mas havia lá um barco onde estava um brasileiro, ele falava português e foi trabalhar com o brasileiro. Havia uma lei na Libéria, que determinava que durante um ano os asilados políticos não podiam sair. Ele esteve lá um ano a trabalhar com o brasileiro, para juntar dinheiro para vir para Lisboa. Ao fim de um ano, foi dali para as Canárias. Nas Canárias tomou um avião para Espanha e de Espanha veio para Lisboa. Isto em princípios de 1972. Eu era comandante da Polícia Marítima, telefonaram-me do aeroporto, a DGS, a dizer que tinham lá uma pessoa que queria falar comigo, que não tinha documentos mas dizia que era português, que tinha estado na Guiné comigo. Lá fui e lá o recebi. Ele depois voltou para os comandos da Guiné.
Vim para Lisboa um mês depois. Acabei a comissão. Devia fazer vinte e quatro meses e fiz só vinte e dois. Vim em Dezembro de 1970. Depois, o almirante Malheiro do Vale entusiasmou-me para eu ir para a Polícia Marítima e inscrevi-me. A Polícia Marítima estava na capitania do porto de Lisboa. Mandaram-me para a capitania e, passados uns quinze dias, chamaram-me e disseram-me que não podia ficar... eu era demasiado conhecido por causa do caso de Conakry para estar na Polícia Marítima... E eu disse: «Senhor ministro, o senhor é que me disse que eu ia para comandante da Polícia Marítima!» Disse-me que eu ia para segundo-comandante da força dos fuzileiros, cujo comandante era o Pinheiro de Azevedo, ou para o estado-maior do Comando Naval do Continente. Eu preferi ir para o estado-maior do Comando Naval do Continente. Disse-lhe que ele é que tinha dito que eu ia para comandante da Polícia Marítima e ele disse-me para eu lá ir daí a um ano. Passei um ano no Comando Naval, era sub-chefe do estado-maior e chefe das operações e, no dia 15 de Janeiro de 1972 pedi para ser recebido pelo ministro. Ele cumpriu a promessa e fui comandar a Polícia Marítima, onde estive dois anos, até Maio ou Junho de 1974. Mas nunca esqueci a guerra de África e comecei a pensar como é que podia participar. Apercebi-me que a Marinha Mercante ia a toda a parte e tinha pessoas de todas as naturalidades - eu podia fazer uma rede de informações. Então, fiz um memorando para o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Deslandes. Fui falar com ele e contei-lhe a minha ideia. Ele achou muita piada. Pedi-lhe que, na Marinha, só o ministro soubesse. Passei a depender do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas para um serviço de informações que fui montando, primeiro através dos navios - havia navios nossos que levavam portugueses a Dakar, andavam por ali...
Aí começaram as minhas operações Dragão Marinho e Furão Curioso. Comecei a movimentar-me nesse aspecto. Por exemplo, pedi para me arranjarem as listas telefónicas de Dakar. Para quê? Porque as listas telefónicas dão noventa por cento da organização de qualquer organismo do Estado! Lá consegui as listas. Rapidamente, através das listas, tínhamos a organização do Estado, a organização do Exército, onde é que estava o PAIGC, as moradas deles todos. Comecei a arranjar passaportes de várias nacionalidades. Havia uns tipos no Cais do Sodré que os roubavam porque sabiam que eu pagava quinhentos escudos por cada passaporte. Cheguei a ter bastantes passaportes de diversas nacionalidades. Esse serviço funcionou bem e, mais tarde, até foi muito elogiado pelo general Costa Gomes. Mas tudo foi feito sem directivas. A primeira directiva terá sido a do Costa Gomes, que era uma anedota: «Os resultados, embora interessantes, não eram directamente úteis à defesa nacional.» Evidentemente, eu contactava com os casos mais diversos tinha tipos que se introduziam na Organização dos Estados Africanos, recebia as actas dos Conselhos de Ministros da OUA. Pode ser que não tivesse efeito directo para a defesa nacional, mas tinha interesse geral para o País. Nessa directiva, ele defendia «maiores preocupações tácticas». Era eu, em Lisboa, que ia ter informações tácticas sobre o que se passava directamente nos teatros de operações! Isso não era comigo! Depois, tive de dizer isto e arranjei um inimigo para o resto da vida. Mas há mais: «Reitera-se a sugestão do estudo da hipótese da criação de uma linha de vigilantes» - é a ignorância completa a falar - «no interior dos países inimigos, linhas de acesso às nossas fronteiras, em condições de informarem com oportunidade, de preferência com ligação rádio com as nossas forças de fronteira que nos permitisse fazer a intercepção das infiltrações.» Eu fiz-lhe notar que ele sabia como era uma fronteira africana. E acrescentei: «Na mata, eu ponho um homem em cima de cada árvore com o walkie-tplkie... está a brincar!» Como é que uma pessoa em Lisboa ia arranjar um serviço de informações tácticas? Tácticas é no terreno!
Nessa altura, o capitão Abou Soumah quis saber quem é que o tinha tirado da prisão - ele tinha sido protegido do Sekou Touré e depois tinha caído em desgraça e tinha estado oito anos na cadeia, sem ver a luz do dia. Veio ter comigo, eu arranjei-lhe aqui um apartamento. Com esta intenção de arranjar informações tácticas. Nessa altura comecei a ficar mesmo chateado com o Costa Gomes e a certa altura disse que não queria mais. Depois, o Silva Cunha foi para ministro da Defesa e mandou chamar-me, e eu passei a contactar directamente com o ministro da Defesa. Foi nessa altura que comecei a editar um jornal em França, o La Guinée Lebre, de que o tal Abou Soumah era o director. O Silva Cunha queria mais, queria uma informação mais ao nível estratégico. Agora, havia essa ponta de lança junto da comunidade guineense, que era o jornal. Assim é que se começam a fazer as coisas, eu nunca deixei de fazer coisas. Lembro-me que uma vez recebi uns documentos do Conselho de Ministros da OUA, que era em Adis-Abeba, e achei que eram informações importantes sob o ponto de vista técnico. Mais tarde, na Liga dos Combatentes, encontrei-me com Marcello Caetano, que me falou de um zunzum de que eu tinha uma coisa destas. Mostrei-me muito admirado por ele não conhecer essas informações e aconselhei-o mesmo a saber as razões junto do chefe do Estado-Maior. Era o tal saco de gatos que Marcello Caetano nunca conseguiu controlar. Passa pela cabeça de alguém que um ministro da Defesa tem que curto-circuitar o chefe do Estado-Maior, em vez de lhe dizer: «isto é para andar para a frente!»?
Por essa altura, deu-se o célebre caso do Esperanza II, o tal navio que veio para aí carregado de armas. Uma parte ficava cá em Portugal, na Norte Importadora, e a outra parte era para Dar es-Salaam, segundo o manifesto de carga. Na altura, recebi uma informação da DGS, que me disse que aquilo era para a Frelimo. Eu disse que não tinha nada com isso, a única preocupação que eu tinha era que não rebentasse debaixo dos pilares da ponte - eram umas 500 toneladas de munições. Depois, telefonou-me o Silva Pais e eu disse-lhe que ia falar com o ministro da Defesa, que me disse que estava muito preocupado e que tinha a certeza absoluta de que aquilo ia para a Frelimo. Então, propus mandar descarregar o navio, por causa do perigo que ele representava para a navegação do Tejo. «Temos que pôr isto em paióis militares e posso garantir-lhe que os estivadores nunca mais carregam isto», disse eu ao ministro. A minha ideia era descarregar o navio, porque depois os estivadores recusavam-se a carregar. O ministro da Marinha chamou-me e disse-me para não descarregar. O ministro da Defesa ficou aflito e eu disse-lhe: «Eu vou fazer isto. » Foi em Fevereiro de 1974. A operação foi muito bem montada e executada. Pusemos uns petardos dentro do navio, transportados em duas malas. Supostamente, houve um alarme de bomba a bordo e fomos fazer uma revista. Os que entraram levaram aquilo, deixaram uma mala com uns quilos de trotil russo, com um relógio eléctrico e com um sistema de accionamento de fora. Depois, não posso dizer que foi a bomba que rebentou, o navio é que desapareceu. O navio saiu da barra e desapareceu... não sei se foi a bomba que rebentou. Era o Esperanza II, que tinha bandeira panamiana. Eu já tinha, anteriormente, em 1972, apanhado uma série de coisas do MPLA a bordo de outro navio, o Bretagne, de bandeira dinamarquesa. O material que tinha não eram armas, era material de instrução. Substituímos esse material, nos caixotes, por areia.
Fui convidado para participar num esquema, mais tarde conhecido como a revolução do 25 de Abril. Fui almoçar à força de fuzileiros com o Pinheiro de Azevedo e com o segundo-comandante da força, o Augusto Teixeira Machado, que me sugeriram a participação. Eu disse ao Pinheiro de Azevedo: «Tudo o que seja para melhorar eu estou de acordo. Mas o problema do Ultramar?» Ele respondeu: «Isso é uma coisa que depois se resolve. » Eu disse: «Não, isso é que é para mim o problema.» Não aderi e pus-me completamente de parte. Fiz de conta que não sabia de nada.
Fez o curso de mergulhadores-sapadores na Marinha inglesa, em 1959, e especializou-se em submersíveis, em 1962. Em 1963, frequentou o curso de fuzileiros. Quis tirar o curso de fuzileiro com a condição de ir para a Guiné, onde chegou em Outubro de 1963. Apanhou o general Arnaldo Shultz e a sua concentração dos poderes de comandante-chefe e de governador. Era um adepto de acções militares fora da fronteira. Com a liderança de Spínola, mais meios e novos conceitos, sobreveio na Guiné um outro fôlego militar.
A Marinha já tinha começado a pensar, com grande antecedência e graças ao almirante Armando Reboredo e Silva, na formação de fuzileiros. Criou-se a Base de Metangula, no lago Niassa, em Moçambique, quando ninguém ainda pensava que poderia haver guerra. Antes de a guerra rebentar em Angola, houve o primeiro curso de fuzileiros em Inglaterra, para o qual eu me ofereci. Mas como já era especializado em submarinos e mergulho, não me deixaram ir. Para esse curso, em Inglaterra, foram um ou dois oficiais, uns sargentos e praças e, quando vieram, iniciaram a instrução de fuzileiros. O primeiro destacamento de fuzileiros, o n.° 1, foi comandado pelo Coelho Metzner e foi para Angola. Eu tive uma certa fricção com o comando das esquadrilhas submersíveis, porque queria sair dos submarinos e ir para os fuzileiros, o que era uma coisa raríssima, pois os submarinos tinham uma grande vantagem, pela especialização que exigiam e pela estabilidade de posição. Por exemplo, havia praças e sargentos que passavam a vida na Marinha e nunca tinham estado noutro sítio a não ser nos submarinos. E oficiais também. Só consegui ir para os fuzileiros porque pedi para ser recebido pelo almirante Reboredo e disse-lhe que queria tirar o curso de fuzileiro, com a condição de ser mandado para a Guiné. Foi em 1963. Autorizaram-me a frequentar o curso. Em Outubro de 1963 cheguei à Guiné, a comandar o destacamento de fuzileiros n.° 8. Já estava na Guiné o destacamento n.° 2, comandado pelo actual almirante Pedro Caeiro, e depois, na mesma altura que o meu destacamento, o n.° 7, comandado pelo actual chefe da Armada, Ribeiro Pacheco. Na altura, o destacamento n.° 2 já tinha outro comandante, o Faria de Carvalho. O Caeiro tinha sido ferido com um tiro num pé, na ilha de Como. Em 1963, os conflitos na Guiné começaram a aumentar muito rapidamente de intensidade e foram para lá mais dois destacamentos, o n.° 7 e o n.° 8. Logo a seguir, em Março de 1964, foi também o destacamento n.° 9. Eu desembarquei na Guiné no dia 4 de Outubro de 1963 e, dias depois, comecei a minha acção operacional. Eu era primeiro-tenente em 1963 e tinha 26 anos.
Na Guiné, a acção dos fuzileiros foi mais importante, exactamente pelas condições do terreno. Isto também tinha a ver com um conceito, que era o seguinte: os cursos de água, quer fluviais, quer marítimos, quer lacustres, quando eram vias de comunicação, eram da responsabilidade da Marinha, mas quando eram obstáculos eram da responsabilidade da Engenharia do Exército. Na Guiné, a maior parte dos cursos de água eram linhas de comunicação e, por conseguinte, a função básica dos fuzileiros era a de manter livres as linhas de comunicação, vitais para a província, para o reabastecimento das tropas, das populações. etc. Mantinham-se livres as vias de comunicação fluviais, mantendo as margens dos rios livres. A acção dos fuzileiros partia sempre do navio para terra, para empurrar o inimigo para fora da zona ribeirinha. Foi uma missão plenamente alcançada. O que costumo dizer é que nós fomos sempre onde quisemos, com maior ou menor dificuldade. Os navios eram emboscados, de facto, e até temos uma coisa que deve ser rara no mundo: uma lancha de desembarque que foi afundada por duas vezes. Os ataques aos navios sucediam-se. Quando cheguei à Guiné, o governador era um oficial da Marinha de grande gabarito, o comandante Vasco Rodrigues. O comandante-chefe era do Exército, o brigadeiro Louro de Sousa, que tinha a alcunha de «o Papagaio». Era um homem essencialmente de estado-maior - quando eu digo que era de estado-maior, não o faço com sentido depreciativo - e com pouca experiência de campo. Agarrava-se muito a conceitos teóricos. Lembro-me de um dia ele me ter perguntado se eu sabia qual era a frente que uma companhia ocupava. Eu não fazia a mínima ideia e, instintivamente, respondi-lhe que pensava que dependia do terreno. Lembro-me de ter acrescentado: «Senhor brigadeiro, quem é que ocupa a parte de trás?» Era uma pessoa muito agarrada a esses conceitos. Havia uma grande fricção entre ele e o governador.
A partir do general Shultz passou a haver na Guiné um governador e comandante-chefe. O que, dadas as dimensões do terreno e dada a gravidade da situação, era uma solução absolutamente aceitável. O poder estava todo nas mesmas mãos.
O general Shultz era um homem muito inteligente, um indivíduo que tinha muito senso, mas talvez fosse contemporizador, digamos que não tinha um grande espírito agressivo. Era um indivíduo que conseguia consensos, não entrava em conflito com os seus comandantes e conseguia pô-los a trabalhar como uma equipa. Isto era uma coisa positiva, mas também reconheço que lhe faltou espírito agressivo. Por exemplo, lembro-me que, quando cheguei à Guiné, o caso mais flagrante que havia era o aprisionamento do então sargento Lobato, um piloto que tinha caído dois ou três meses antes no Tombali. Tinha tido um acidente. Depois, esse homem foi levado para Conakry e lembro-me de ter perguntado se não se fazia nenhum esforço para ir buscar os nossos prisioneiros. Mas não havia respostas. Eu era um indivíduo interessado pela guerra, achava que devia cumprir o melhor possível. Estava sempre a propor operações. A partir de determinada altura comecei a fazer acções autonomamente, mas a minha foi uma autonomia conquistada. Não precisava que me mandassem fazer, fazia. Apanhei uma boa equipa na Guiné, na Marinha. Primeiro, era o comandante Manuel Lopes Mendonça, que tinha um chefe do estado-maior que era o Paulo Costa Santos. Era uma equipa muito boa e que dava iniciativa aos seus subordinados. A mim deram-me iniciativa, porque talvez eu tenha demonstrado que merecia que me dessem iniciativa, não sei. A seguir foi o comandante Francisco Caeiro, homem de grande energia e vontade de realização. Apesar do posto - logo a seguir foi promovido a oficial general - tirou um mini curso de fuzileiro connosco e sempre que podia acompanhava as operações de fuzileiros no terreno, o que moralizava imenso os homens. Deu-me plena liberdade de acção, a que eu correspondi produzindo intensa actividade operacional.
Andávamos sempre atrás do inimigo mas, como na Guiné as fronteiras não se fecham, era como estar a esvaziar uma banheira sem fechar a torneira. E então propunha sempre operações ofensivas, para lá das fronteiras. Em relação a isto nunca obtive concordância da parte do general Shultz. Lembro-me que tentei fazer operações de emboscadas no Sul, na ilha de Canefaque e a certa altura, como era muito em cima da fronteira, ele mandou parar. Acho que essa actividade operacional era bastante apreciada. Mas estes lugares de comando desgastavam muito, sobretudo ao nível de comandante-chefe e, ainda por cima, também governador. Eram indivíduos que estavam no meio do jogo. Por cima, tinham o Conselho Superior de Defesa, o ministro da Defesa, o chefe de Estado-Maior General; por baixo, tinham um saco de gatos que tinham de pôr muitas vezes de acordo entre si. As vezes eles começavam com entusiasmo mas, a certa altura, arranjavam uma posição de comodidade, que dava para cumprir a missão. Nós sabíamos, da teoria e da prática, que as guerras subversivas eram guerras muito prolongadas, por isso o desgaste próprio também tinha que ser limitado. Tínhamos aquele conceito estratégico de que às Forças Armadas competia arranjar espaço e tempo para que as forças políticas arranjassem soluções. Por conseguinte, tinham de ser coisas que mantivessem o melhor possível o nosso sistema de soberania e que, ao mesmo tempo, isto não poderia custar muito porque, de outra forma, o esforço, que se previa prolongado e que mesmo assim durou treze anos, poderia sofrer grandemente.
A substituição do general Shultz pelo general Spínola foi um pouco como a mudança de liderança de um partido político. Apesar do que se fez, chega-se a uma certa altura em que se é o primeiro a reconhecer: «Tenho que sair daqui, porque não consigo puxar mais esta carroça.» Talvez tenha havido um acomodamento. No caso da Marinha, procurávamos desembarcar indetectados mas, evidentemente, passado um tempo, éramos detectados e o inimigo já sabia que estávamos ali e, ou ele nos encontrava ou nós o encontrávamos. Criou-se um espírito deste tipo: nós desembarcávamos, três quartos de hora depois ouvia-se um tiro e pensávamos «fomos detectados, vamos embora». Se da parte do comandante-chefe houvesse um espírito agressivo e dissesse que o primeiro que fizesse isto teria 10 dias de prisão, isso acabava. Mas não, houve um certo acomodamento. Manteve-se a soberania em todo o território, as coisas iam-se fazendo, mas foi-se perdendo élan, um pouco dessa necessidade que o chefe tem de empurrar as coisas para a frente. O general Spínola tinha uma vantagem sobre o general Shultz: tinha comandado um batalhão na guerra em Angola, coisa que o general Shultz, por ser do Estado-Maior e por ser general há mais tempo, nunca fez. Tenho grande consideração pelo general Shultz. Era um homem inteligente e que conseguia soluções de consenso. O general Spínola foi escolhido pessoalmente por Salazar, levou quase uma carta de prego para descobrir uma solução. Era um homem com prestígio militar, justamente conquistado em Angola. Ele entusiasmou uns e desanimou outros. Havia alguns que estavam instalados e que tiveram que mudar os hábitos. Por exemplo, uma patrulha ia buscar lenha e no SINTREP saía: «Operação de patrulhamento a tal sítio, não se encontrou nada» ... e iam buscar lenha. Eu não estou a criticar ninguém. De facto, quando uma patrulha vai buscar lenha a quatro quilómetros não deixa de ser uma patrulha.
Spínola conseguiu talvez mais meios e desenvolveu a sua actividade dentro do conceito da conquista das populações. Incrementou extraordinariamente a parte da acção psicológica, a parte de apoio às populações, a construção dos aldeamentos, etc. Lançou uma actividade militar muito grande, agitou militarmente. De facto, uma situação que estava estática levou uma sacudidela e começou tudo a andar. Depois, Spínola tinha métodos de comando menos consensuais, «mais à tropa», disse que não tirava nenhuns méritos ao general Shultz, porque os tinha tido. Depois eles zangaram-se. Talvez o general Spínola tivesse dito algumas coisas menos amáveis sobre o general Shultz. Sei até que eles tiveram uma cena extraordinariamente desagradável no gabinete dos ajudantes do ministro da Defesa, em que quase se envolveram à pancada. Eu gostava do que fazia e tenho a sensação de que consegui transmitir isso aos meus homens, que corresponderam. Eu tinha, de facto, uma unidade excepcional. A administração, seja em que sítio for, é a arte de, através da organização, do planeamento, da direcção e da fiscalização, distribuir tarefas pelas pessoas. A minha actividade operacional foi muito grande. Só na minha primeira comissão estivemos envolvidos em 92 acções de fogo, distribuídas ao longo de 47 operações, entre elas a da ilha de Como, que durou muitos dias. Dessas acções resultaram, para as forças inimigas, 146 mortos e 38 prisioneiros, além de 89 embarcações destruídas ou recuperadas. Sofremos quatro mortos, e 31 feridos, num efectivo de 75 homens. A unidade recebeu 40 condecorações.
Eu era o único oficial superior na Escola de Fuzileiros, em Vale do Zebro, quando assumi o comando das instalações navais e cheguei a ter 2033 homens sob as minhas ordens. Naquela altura, a Escola de Fuzileiros funcionava como escola e como força operacional. Recebíamos as unidades, treinávamo-las, dávamos instrução, fazíamos a recruta. Dentro das câmaras dos navios, dentro da Marinha, nós dizíamos o que queríamos, dizíamos mal do Governo, dizíamos bem, mas nunca ninguém foi chateado. Dentro deste espírito nós dizíamos o que pensávamos. Havia um oficial aluno, um tal Nelson Trindade, que por onde passava criava problemas. Um dia puseram-no lá para tirar o curso de fuzileiro. Esse tipo começou a levantar problemas e a dizer que nós andávamos a matar pretos em África. Uma unidade daquele tamanho tinha que ter disciplina e funcionava lindamente. Havia oficiais, cadetes, sargentos e praças. Os elementos regressados do Ultramar, onde tinham juntado uns dinheiros, compravam uns rádios e umas coisas do género. Eles coexistiam algum tempo na escola com recrutas, rapazes de 18 ou 19 anos, pouco abonados de dinheiro. Viam aquelas coisas e, de vez em quando, lá havia um que não resistia e roubava um rádio. Para evitar este tipo de situação, eu tinha uma regra de ouro: quem fosse apanhado a roubar qualquer coisa, levava 30 dias de prisão, o que lhes dava logo direito a ir para o Forte de Elvas. Parava-se o que se estivesse a fazer, os dois mil homens formavam na parada e o tipo que tinha sido apanhado já ia com o cabelo rapado, como era próprio do regulamento da prisão. Punha-se em cima de um banco e lia-se a punição. Nas quatro ou cinco vezes que isto sucedeu correu tudo bem. Quem era roubado via que havia uma actuação rápida e quem tinha tentações pensava três vezes antes de o fazer. E mantinha-se o equilíbrio disciplinar.
Um dia, quando o Nelson Trindade lá estava, sucedeu uma coisa destas. Procedemos da mesma maneira e ele fez uma participação contra mim, por utilizar «métodos do século XVIII», «com exposições no pelourinho». Mas enganou-se, ao pensar que a Escola de Fuzileiros estava integrada no grupo n.° 2 de escolas. Mas como era geograficamente afastada, estava integrada nas instalações navais de Vale do Zebro, de que eu era comandante e director de instrução da Escola de Fuzileiros que, escolarmente, dependia do grupo n.° 2 de escolas. Quando fez a participação contra mim, pensou que a tinha que mandar para o comandante do grupo n.° 2 de escolas. Mas não. Houve um auto de averiguações e puni-o com seis dias de prisão disciplinar agravada. Ele reclamou e eu confirmei, ele recorreu para o chefe do Estado-Maior, que me mandou levantar um auto, pelo Silva Horta. Ele foi cumprir a pena, foi para a Mariazinha, a prisão. Depois vieram as cunhas. Acabei por ser chamado ao ministro da Marinha, que era o almirante Manuel Pereira Crespo, um tipo muito porreiro, mas eu disse-lhe que não tirava a pena. Ele lembrou mesmo o facto de a mulher do Nelson Trindade estar à espera de uma criança e eu até fui um pouco inconveniente, o que levou o ministro a mandar-me sair do gabinete. Mas nada me fazia tirar a pena. Depois, houve uma sentença deste género: ele teve mais não sei quantos dias de prisão, e eu tive uma repreensão agravada, por ter dado publicidade exagerada a uma pena. Se há uma medalha que eu não tenho é a de comportamento exemplar. Portanto, fui castigado e segui para a Guiné. Deram-me a medalha de prata de serviços distintos pelo trabalho que tinha feito na Escola de Fuzileiros. Aconteceu tudo isto na mesma semana, o que deve ser único.
A partir da segunda comissão na Guiné, em 1969, Calvão tornou-se um operacional de missões especiais, a mais relevante das quais foi a invasão de Conakry. Um seu colega, Carlos Fabião, retratou-o como «um aventureiro ao estilo James Bond. Álvaro Pereira de Carvalho, então director de informações da PIDE-DGS, diz que Calvão gozava de «um estatuto especial». Spínola louvou a sua «serena energia debaixo de fogo». Participou em dezenas de acções arriscadas na Guiné.
Quando desembarquei em Bissau, em Fevereiro de 1969, encontrei-me, por acaso, com o general Spínola no aeroporto. Fomos apresentados, ele recebeu-me muito bem e disse-me que esperava que nos déssemos bem. Respondi-lhe que não sabia, porque eu tinha três defeitos muito grandes: era da Marinha, não era de Cavalaria e não era do Colégio Militar. Ele riu-se muito e perguntou-me quando é que podia entrar em funções. «Já!», respondi eu. Fui comandar um grupo com lanchas de desembarque, dois patrulhas e dois destacamentos de fuzileiros que estavam em Bolama e comecei a fazer acções à minha vontade, no rio Grande de Buba. Foi aí que conheci o meu grande amigo Carlos Azeredo, com quem tive, aliás, uma pega desgraçada. Eu era mais antigo que o Carlos Azeredo e o Spínola mandou-me levantar-lhe um auto. Foi uma daquelas casmurrices entre dois oficiais voluntariosos e de um certo mau génio. Levantei-lhe o auto, depois foi arquivado por proposta minha e ficámos amigos desde aí. Depois nunca mais parei, fui pau para toda a obra. Fui comandante do COP 3, comandei forças do Exército, da Marinha. Eu só sabia comandar dando o exemplo. Já tinha uma experiência muito grande de mato, e era uma das coisas que eu gostava de ensinar à malta nova. Eu tinha um grupinho que andava sempre comigo. Era capaz de dizer a um segundo-tenente para escolher três tipos e era capaz de ir com esse grupo em botes de borracha e enfiar-me no mato, para ensinar. Eu tinha uma teoria: tínhamos que andar com pouca gente no mato, porque era difícil andar no mato, podíamos perder-nos com facilidade. Eu queria entusiasmar os rapazes novos e por isso levava-os comigo. Em noites escuras, saíamos do navio em botes de borracha, metíamo-nos pelos rios e afluentes: «Isto é com carta, bússola, e bom senso.» Aproximávamo-nos dos acampamentos. Era aquele treino: «Ninguém se mexe, não há cigarro, não há nada!» Depois, esperávamos o cantar do primeiro galo, aí pelas três da manhã. Quando cantava o segundo, aos primeiros alvores, atacávamos.
Com o Patríce Lumumba, cheguei a estar oito dias sentado num bote de borracha. O Patrice Lumumba era um navio que apanhei na República da Guiné. Afundei-o. Mas eu sempre gostei de ir, para mostrar, para encorajar, para entusiasmar. Havia determinados serviços que eu gostava de fazer, de estar no terreno. Na Guiné, chove durante metade do ano, e não se pode intervir. Como é que então se faziam operações? Como é que se faziam apoios de fogo? Era preciso ter grande confiança na artilharia, nos morteiros. Então tinha de se ir para se dar o exemplo: «Isto é seguro porque eu estou cá!» Mandava fazer fogo a cinco ou seis quilómetros de distância. Era preciso dar confiança a quem estava no terreno. E à noite como é que era? Tínhamos de ter as coisas bestialmente bem treinadas. Eu, muitas vezes, embarcava com uma secção, com um morteiro 81, preparava tudo, mas às vezes via-me aflito, porque o inimigo atacava-me a mim. Mas, principalmente, o que eu gostava era de ensinar e dizer: «Podes fazer!» Era uma maneira de estar.
Também podia haver discussões, porque eu estava preparado. Na Guiné, com o general Spínola, todos os dias às seis e meia da tarde havia um briefing, sete dias por semana. Não havia férias para ninguém. Quando eu vinha do mato ia ao briefing e tinha discussões com os homens das informações. Lembro-me de que, uma vez, o chefe das informações disse: «Notícia A-I - era do mais alto grau - diz que há dois dias numa "cambança" (uma passagem) trinta homens passaram.» O general Spínola perguntou: «Está aí o comandante do COP 3? O que é que o senhor tem a dizer disto?» «É mentira!», respondi eu. O major das informações, o Pereira da Costa, perguntou: «Está a dizer que é mentira?» Eu disse: «Estou a dizer que o senhor major não esteve lá e eu estive! Passei por lá a pé e não vi cambança nenhuma.» O major Pereira da Costa era o «Astérix» e o homem da PIDE, o Matos Rodrigues, que pesava para aí cento e vinte quilos, era o «Obvie». Eles detestavam-se de morte.
Eu procurava integrar-me nas directivas. Aconteceu, por exemplo, ter de reforçar a acção no CAOP, perto de Teixeira Pinto. Disseram-me: «Você tem que fazer uma série de acções, durante três semanas, na Caboiana.» Determinavam o meu território e eu ia. Eu ia, tinha a força naval que transportava os homens da minha base de Ganturé para a Cabotina - eram umas seis horas de rio - e depois estava ali três semanas em que não parava. A Operação Gata Pequena, por exemplo, foram três semanas de actuação constante. Sempre tive a percepção de que tínhamos que interceptar os apoios inimigos, os meios de abastecimento, os meios de comunicação, e tinha esta ideia desde o tempo do Shultz, mas nunca me deixaram fazer isso. Quando fui propor isso ao Spínola, uns diziam «mata» e outros «esfola», mas ele disse-me: «Faça o que quiser.» Havia lá um organismo, a CHERETT, que fazia a intercepção de comunicações e que funcionava bem. Nós tínhamos autênticos génios a furar códigos. Havia lá um homem de Cavalaria com uma habilidade enorme para furar códigos. A primeira vez que fiz uns reconhecimentos no rio Inxanxe, na fronteira com a Guiné-Conakry, descobri lá um ilhéu, Calebe. Achei que podia ali ficar. Fui buscar informações por ali a um pescador, que me disse que eles estavam em Kadigne - aquela população não tinha nada a ver com a guerra, estava no outro lado. Fiquei com esta ideia: eles desciam o rio, entravam em Kadigne e, à noite, transportavam as coisas, em cambava, de Kadigne para Canefaque, do nosso lado. Comecei a pensar e resolvi interceptar o navio, o Patrice Lumumba, que era da Guiné-Conakry. Assim foi. Fui com quatro botes de borracha e levava dezasseis homens. O Rebordão de Brito ia comigo. Navegámos de noite, até chegarmos ao tal ilhéu Calebe. Levávamos uns panos de tenda, umas catanas, abrimos uma «garagem» no tarafe (mangais localizados principalmente nas margens dos rios) e ficámos lá oito dias. Levava uns sacos de ração de combate. Ia preparado para estar quinze dias. Nós para fazermos isto tivemos que ir com a maré cheia: iam quatro homens em cada bote, os sacos, as rações. Como chegámos de noite, com a maré cheia, pendurámos os sacos das rações nos ramos das árvores. De manhã, a maré estava vazia e os sacos estavam a cinco metros de altura.
Vivíamos nos botes de borracha. A minha primeira ideia foi acampar em terra mas, se passasse alguém, levava quase uma hora a chegar ao bote. Também não podíamos fazer barulho porque eles passavam ali perto, em canoas. Depois chovia, havia os mosquitos. O tempo passava-se a conversar baixinho, a contar uma história, a dormir, a limpar as armas. Quando chovia e havia trovões punham-se os motores a funcionar para secar a humidade. De dia podia-se fumar, à noite não. O Diogo Neto, de vez em quando, passava lá por cima e perguntava se estava tudo bem. Eu levava comigo um tipo que tinha sido feito prisioneiro, o Abou Camará, que era sosso, uma etnia do Sul da Guiné, e não falava outra coisa que não fosse sosso. Por isso, tive que levar um homem das oficinas que falava sosso. No meu bote estava eu, o «Setúbal», o Abou Camará. Éramos quatro ao todo. Esse Abou Camará tinha trabalhado no Patrice Lumumba, que transportava sempre carga e gente do PAIGC, para cima e para baixo, e por isso conhecia o barco. Ouvimos o barulho de um motor, e apareceu o barco, que tinha o tamanho de um cacilheiro pequeno. O barco aproximou-se, pusemo-nos em posição de tirar os ramos que ocultavam a «garagem», ligámos os motores e lançámo-nos para cima dele. O motor do meu bote, que era o que estava à saída, pegou, arrancou e largou, mas os outros não largaram. Os motores não pegaram logo. Fui sozinho, com o tipo que era um ex-turra, com o mecânico, que ia cheio de medo, e com o «Setúbal», o Guerreiro Tristão. Eu, que estava convencido que a minha malta vinha toda atrás, quando disse «atacar»... estava sozinho. Os outros estavam muito lá para trás. Claro que os gajos do Patrice Lumumba aceleraram, fomos atrás deles, começaram a abrir fogo sobre nós. Tinham umas armas ligeiras, nós tínhamos as C-3.
Lancei-me atrás do navio. O que queria era apanhar o navio e o seu pessoal, não queria matar ninguém. Levava granadas de gás lacrimogéneo. Estávamos eu e o «Setúbal» praticamente sozinhos, atirei a fateixa de abordagem, ele lançou duas granadas de gás lacrimogéneo para a parte de baixo e entrou atrás das granadas, mas estava um sacana de um gajo com uma Simonov apontada para mim. Disparou cinco tiros contra mim, a uns três metros de distância, mas falhou todos. Quando ele acabou o carregador eu subi para o barco, mas não levei arma e despachei o gajo com dois murros. Depois tive também um corpo-a-corpo rápido com o homem do leme e, entretanto, chegou a outra malta e então capturámos o navio com trinta homens lá dentro. Apanhámos o navio e seguimos com ele para o nosso lado. Ele já estava quase a entrar em Kadigne. Saímos dali em grande velocidade para nos irmos encontrar com o nosso navio de apoio, que estava fora. Apanhámos trinta homens, alguns não tinham nada a ver com a história, mas outros eram do PAIGC e foram entregues aos homens das informações. Nessa altura, o Spínola estava em Portugal, na Curia. Trouxemos o Patrice Lumumba de braço dado com o navio de apoio. Só que, depois, começou a meter água, talvez por causa dos tiros, dos choques, deve ter batido em alguns bancos de areia, e deixámo-lo ir ao fundo por altura do Tombali. Houve protestos e eu fui ao briefing a Bissau. Nessa altura, o comandante-chefe interino era o comodoro Luciano Bastos, pessoa que me apoiava muito. Apareceu o «Astérix», que disse: «Interceptaram umas mensagens - movimentos das tropas de Conakry para a fronteira.» Eu perguntei-lhe: «Senhor major, quantos grupos do Exército tem Conakry, quantos corpos, quantas divisões? Afinal, o que é que foi deslocado para a fronteira?» Ele respondeu: «Dois pelotões.» «Então foi a deslocação de dois pelotões para a fronteira?», perguntei. «Se a deslocação de dois pelotões para a fronteira lança esse pânico todo, não sei como vai ser.» Resultado: mais uma guerra do «Astérix» comigo. Como o Spínola estava em Portugal, mandaram-me cá para lhe contar o que é que se tinha passado. Ele achou muito bem. Fiz outras acções fora da fronteira. A Operação Gata Brava foi feita dentro de Kadigne. Foi uma intercepção de um barco, em que ia um agente do PAIGC, com o nome de código «Marcel». Ia dentro do barco e eu só tive uma solução - matá-lo. É que, tanto do lado da República da Guiné, como do lado do PAIGC, em Canefaque, onde também puseram uma série de metralhadoras pesadas, houve grande tiroteio para cima de nós. Quando apanhei o tipo nem se imagina o «fogaréu» que vinha das margens. Vínhamos nos botes de borracha e os tiros passavam a três ou quatro metros de distância. Fiz várias incursões, também, no território do Senegal. Fui lá uma vez incendiar uma aldeia do outro lado. Eram aquelas retaliações que o Spínola mandava fazer, contra todas as directivas.
A Operação Mar Verde foi proposta por mim. A minha proposta era limitada à destruição dos navios e à libertação dos prisioneiros. Eu pertencia ao quartel-general do comandante-chefe, era comandante do Centro de Operações Especiais do comandante-chefe. Mas não sabia que havia uma organização chamada Front Natural de Libération de Ia Guinée (FNLG), que estava em ligação connosco. Eram os oposicionistas a Sekou Touré. Eu procurava saber desesperadamente onde é que estavam os nossos prisioneiros, chateava o homem da DGS, o Matos Rodrigues, mas a DGS sabia muito pouco. É interessante saber que o Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca permitiu que a polícia penetrasse dentro das embaixadas e dos consulados, o que foi péssimo, porque eles, além de serem uma Polícia judiciária para os crimes políticos, eram também um serviço de informações. Não tínhamos ninguém para dar informações, embora tivéssemos gente em toda a África. Havia só uns carolas, uns comerciantes. O treino dos oposicionistas a Sekou Touré teve a ver comigo porque foi incluído na minha operação. Quando fui propor a operação, o meu objectivo era afundar as vedetas, os meios de transporte do PAIGC e, ao mesmo tempo, fazer um golpe de mão para libertar os prisioneiros. Depois disseram-me que eu tinha que combinar isto e mais aquilo. Perguntei como. Disseram-me que tentaria ajudar o grupo de oposicionistas a fazer um golpe de Estado. Em relação ao Amílcar Cabral, a nossa ideia era prendê-lo. Mas mandámos umas bazucadas para a casa que se presumia ser dele. A ideia era capturá-lo, apesar de, em minha consciência, e se fosse necessário... Os meus homens perguntavam: «E se chegarmos lá e eles atirarem?» Eu disse: «Aí, é tiro contra tiro.»
A oposição mais séria que houve à nossa acção foi exactamente na zona das casas do PAIGC. Os oposicionistas a Sekou Touré iam todos connosco. Libertámos os que estavam na prisão da Guarda Republicana, que eram cerca de quatrocentos, um dos quais, o célebre capitão Abou Soumah, que era oposicionista do Sekou Touré, que eu libertei naquela altura. O objectivo estratégico falhou, não há dúvida nenhuma. A FNLG não foi capaz de derrubar o governo de Sekou Touré. Mas esta não era a minha função, a minha função era dar-lhes o impulso inicial. Nós tínhamos um problema muito grande, que era a nossa aviação, que não chegava lá. Havia a célebre questão dos MiG que não estavam em Conakry. Eu só vim a saber que dos MiG só voava um e mal, depois de ter o Lobato a bordo, às nove e meia da manhã. Como, no meu íntimo, o que me interessava era trazer os prisioneiros, os tipos da FNLG que se aguentassem. Eles ainda aguentaram a luta oito dias e depois foram apanhados e foi uma repressão tremenda. Até o arcebispo de Conakry foi dentro. O Sekou Touré aproveitou para matar uma data de pessoas, que nem sabiam que aquilo ia acontecer. Houve uma pessoa que morreu no meio disto, e era um inocente, um cidadão da República Federal Alemã, apanhado em fogo cruzado. O que sucedeu, de facto, foi que, às nove da manhã, estavam multidões nas ruas aclamando os nossos homens, que regressaram aos navios. Eu tive um problema grande com as forças africanas a trazerem lembranças - havia quem até trouxesse os trombones da Guarda Republicana, pessoas que traziam vinte armas às costas, iam carregados de tudo e mais alguma coisa.
Eu estava sentado à espera, a ver quando é que me caíam os MiG em cima, mas não queria deixar lá ninguém, excepto o Januário, que desertou, com medo entregou-se. O Januário era um tenente dos comandos, era africano. Era um tipo que o Marcelino da Mata não gramava nem com molho de tomate. Esse tipo entregou-se e os homens que iam com ele foram apanhados.
Eram uns quinze e foram apanhados por causa dele. De facto, psicologicamente, se os homens da FNLG estivessem melhor coordenados com a oposição, caso ela existisse em terra, como garantiram, aquilo seria para eles pão com manteiga. Os tipos traziam tantas coisas às costas, com gente da população a dizer «tome lá uma cerveja», «leve uma caixa». Então, os tipos que fizeram o ataque à Guarda Republicana, ao palácio presidencial, deitaram mão ao que puderam. Tive um grande problema, dizia-lhes para deixarem tudo em terra mas, mesmo assim, houve um que trouxe vinte pistolas. No meio disto, houve tipos que se distraíram, houve um que se distraiu de tal maneira que quando deu por ela já os navios se iam embora, um Francisco qualquer coisa, que era balanta. Ele sentiu-se sozinho, deitou-se à água e começou a nadar para a América. Nadou e, a três milhas da costa, foi recolhido por um navio holandês. Desembarcaram-no em Monróvia, na Libéria, onde pediu asilo político. Ninguém percebia nada do que ele dizia, mas havia lá um barco onde estava um brasileiro, ele falava português e foi trabalhar com o brasileiro. Havia uma lei na Libéria, que determinava que durante um ano os asilados políticos não podiam sair. Ele esteve lá um ano a trabalhar com o brasileiro, para juntar dinheiro para vir para Lisboa. Ao fim de um ano, foi dali para as Canárias. Nas Canárias tomou um avião para Espanha e de Espanha veio para Lisboa. Isto em princípios de 1972. Eu era comandante da Polícia Marítima, telefonaram-me do aeroporto, a DGS, a dizer que tinham lá uma pessoa que queria falar comigo, que não tinha documentos mas dizia que era português, que tinha estado na Guiné comigo. Lá fui e lá o recebi. Ele depois voltou para os comandos da Guiné.
Vim para Lisboa um mês depois. Acabei a comissão. Devia fazer vinte e quatro meses e fiz só vinte e dois. Vim em Dezembro de 1970. Depois, o almirante Malheiro do Vale entusiasmou-me para eu ir para a Polícia Marítima e inscrevi-me. A Polícia Marítima estava na capitania do porto de Lisboa. Mandaram-me para a capitania e, passados uns quinze dias, chamaram-me e disseram-me que não podia ficar... eu era demasiado conhecido por causa do caso de Conakry para estar na Polícia Marítima... E eu disse: «Senhor ministro, o senhor é que me disse que eu ia para comandante da Polícia Marítima!» Disse-me que eu ia para segundo-comandante da força dos fuzileiros, cujo comandante era o Pinheiro de Azevedo, ou para o estado-maior do Comando Naval do Continente. Eu preferi ir para o estado-maior do Comando Naval do Continente. Disse-lhe que ele é que tinha dito que eu ia para comandante da Polícia Marítima e ele disse-me para eu lá ir daí a um ano. Passei um ano no Comando Naval, era sub-chefe do estado-maior e chefe das operações e, no dia 15 de Janeiro de 1972 pedi para ser recebido pelo ministro. Ele cumpriu a promessa e fui comandar a Polícia Marítima, onde estive dois anos, até Maio ou Junho de 1974. Mas nunca esqueci a guerra de África e comecei a pensar como é que podia participar. Apercebi-me que a Marinha Mercante ia a toda a parte e tinha pessoas de todas as naturalidades - eu podia fazer uma rede de informações. Então, fiz um memorando para o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Deslandes. Fui falar com ele e contei-lhe a minha ideia. Ele achou muita piada. Pedi-lhe que, na Marinha, só o ministro soubesse. Passei a depender do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas para um serviço de informações que fui montando, primeiro através dos navios - havia navios nossos que levavam portugueses a Dakar, andavam por ali...
Aí começaram as minhas operações Dragão Marinho e Furão Curioso. Comecei a movimentar-me nesse aspecto. Por exemplo, pedi para me arranjarem as listas telefónicas de Dakar. Para quê? Porque as listas telefónicas dão noventa por cento da organização de qualquer organismo do Estado! Lá consegui as listas. Rapidamente, através das listas, tínhamos a organização do Estado, a organização do Exército, onde é que estava o PAIGC, as moradas deles todos. Comecei a arranjar passaportes de várias nacionalidades. Havia uns tipos no Cais do Sodré que os roubavam porque sabiam que eu pagava quinhentos escudos por cada passaporte. Cheguei a ter bastantes passaportes de diversas nacionalidades. Esse serviço funcionou bem e, mais tarde, até foi muito elogiado pelo general Costa Gomes. Mas tudo foi feito sem directivas. A primeira directiva terá sido a do Costa Gomes, que era uma anedota: «Os resultados, embora interessantes, não eram directamente úteis à defesa nacional.» Evidentemente, eu contactava com os casos mais diversos tinha tipos que se introduziam na Organização dos Estados Africanos, recebia as actas dos Conselhos de Ministros da OUA. Pode ser que não tivesse efeito directo para a defesa nacional, mas tinha interesse geral para o País. Nessa directiva, ele defendia «maiores preocupações tácticas». Era eu, em Lisboa, que ia ter informações tácticas sobre o que se passava directamente nos teatros de operações! Isso não era comigo! Depois, tive de dizer isto e arranjei um inimigo para o resto da vida. Mas há mais: «Reitera-se a sugestão do estudo da hipótese da criação de uma linha de vigilantes» - é a ignorância completa a falar - «no interior dos países inimigos, linhas de acesso às nossas fronteiras, em condições de informarem com oportunidade, de preferência com ligação rádio com as nossas forças de fronteira que nos permitisse fazer a intercepção das infiltrações.» Eu fiz-lhe notar que ele sabia como era uma fronteira africana. E acrescentei: «Na mata, eu ponho um homem em cima de cada árvore com o walkie-tplkie... está a brincar!» Como é que uma pessoa em Lisboa ia arranjar um serviço de informações tácticas? Tácticas é no terreno!
Nessa altura, o capitão Abou Soumah quis saber quem é que o tinha tirado da prisão - ele tinha sido protegido do Sekou Touré e depois tinha caído em desgraça e tinha estado oito anos na cadeia, sem ver a luz do dia. Veio ter comigo, eu arranjei-lhe aqui um apartamento. Com esta intenção de arranjar informações tácticas. Nessa altura comecei a ficar mesmo chateado com o Costa Gomes e a certa altura disse que não queria mais. Depois, o Silva Cunha foi para ministro da Defesa e mandou chamar-me, e eu passei a contactar directamente com o ministro da Defesa. Foi nessa altura que comecei a editar um jornal em França, o La Guinée Lebre, de que o tal Abou Soumah era o director. O Silva Cunha queria mais, queria uma informação mais ao nível estratégico. Agora, havia essa ponta de lança junto da comunidade guineense, que era o jornal. Assim é que se começam a fazer as coisas, eu nunca deixei de fazer coisas. Lembro-me que uma vez recebi uns documentos do Conselho de Ministros da OUA, que era em Adis-Abeba, e achei que eram informações importantes sob o ponto de vista técnico. Mais tarde, na Liga dos Combatentes, encontrei-me com Marcello Caetano, que me falou de um zunzum de que eu tinha uma coisa destas. Mostrei-me muito admirado por ele não conhecer essas informações e aconselhei-o mesmo a saber as razões junto do chefe do Estado-Maior. Era o tal saco de gatos que Marcello Caetano nunca conseguiu controlar. Passa pela cabeça de alguém que um ministro da Defesa tem que curto-circuitar o chefe do Estado-Maior, em vez de lhe dizer: «isto é para andar para a frente!»?
Por essa altura, deu-se o célebre caso do Esperanza II, o tal navio que veio para aí carregado de armas. Uma parte ficava cá em Portugal, na Norte Importadora, e a outra parte era para Dar es-Salaam, segundo o manifesto de carga. Na altura, recebi uma informação da DGS, que me disse que aquilo era para a Frelimo. Eu disse que não tinha nada com isso, a única preocupação que eu tinha era que não rebentasse debaixo dos pilares da ponte - eram umas 500 toneladas de munições. Depois, telefonou-me o Silva Pais e eu disse-lhe que ia falar com o ministro da Defesa, que me disse que estava muito preocupado e que tinha a certeza absoluta de que aquilo ia para a Frelimo. Então, propus mandar descarregar o navio, por causa do perigo que ele representava para a navegação do Tejo. «Temos que pôr isto em paióis militares e posso garantir-lhe que os estivadores nunca mais carregam isto», disse eu ao ministro. A minha ideia era descarregar o navio, porque depois os estivadores recusavam-se a carregar. O ministro da Marinha chamou-me e disse-me para não descarregar. O ministro da Defesa ficou aflito e eu disse-lhe: «Eu vou fazer isto. » Foi em Fevereiro de 1974. A operação foi muito bem montada e executada. Pusemos uns petardos dentro do navio, transportados em duas malas. Supostamente, houve um alarme de bomba a bordo e fomos fazer uma revista. Os que entraram levaram aquilo, deixaram uma mala com uns quilos de trotil russo, com um relógio eléctrico e com um sistema de accionamento de fora. Depois, não posso dizer que foi a bomba que rebentou, o navio é que desapareceu. O navio saiu da barra e desapareceu... não sei se foi a bomba que rebentou. Era o Esperanza II, que tinha bandeira panamiana. Eu já tinha, anteriormente, em 1972, apanhado uma série de coisas do MPLA a bordo de outro navio, o Bretagne, de bandeira dinamarquesa. O material que tinha não eram armas, era material de instrução. Substituímos esse material, nos caixotes, por areia.
Fui convidado para participar num esquema, mais tarde conhecido como a revolução do 25 de Abril. Fui almoçar à força de fuzileiros com o Pinheiro de Azevedo e com o segundo-comandante da força, o Augusto Teixeira Machado, que me sugeriram a participação. Eu disse ao Pinheiro de Azevedo: «Tudo o que seja para melhorar eu estou de acordo. Mas o problema do Ultramar?» Ele respondeu: «Isso é uma coisa que depois se resolve. » Eu disse: «Não, isso é que é para mim o problema.» Não aderi e pus-me completamente de parte. Fiz de conta que não sabia de nada.
BIBLIOGRAFIA
A GUERRA DE ÁFRICA (1961-1974)
José Freire Antunes Ciclo dos Leitores - VOL I
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