quarta-feira, 15 de julho de 2009

DEPOIMENTOS

O Vietname português



A Guiné havia de ser a província onde as tropas portuguesas passariam mais provações. Foi o mais severo dos nossos teatros de guerra em África. Não só pela grande capacidade da guerrilha, muito bem armada e servida por bases para lá das fronteiras com a Guiné-Conacri e o Senegal, mas também pelas condições físicas do terreno, exíguo, entrecortado por rios, grandes manchas alagadas, pejado de bolanhas e tarrafos. A Guiné foi um verdadeiro atoleiro para as nossas tropas - comparável, na história militar, ao que o Vietname representou para os norte-americanos.
A 20 de Janeiro de 1963, a guerrilha do PAIGC, movimento nacionalista fundado por Amílcar Cabral, tinha lançado um vigoroso ataque ao aquartelamento português em Tite, na margem esquerda do rio Geba, escassos quilómetros a sul de Bissau. Começava assim a guerra na Guiné. Os guerrilheiros contavam com poderoso apoio da vizinha Guiné-Conacri, onde tinham as suas principais bases. Começaram a tomar posições no Sul da província. A seguir ao ataque a Tite, ocuparam a região de Caiar, Como e Catungo, no extremo Sudoeste.

Na semana do Natal de 1963, o quartel-general em Bissau fervilhava de actividade. O comandante-chefe, brigadeiro Louro de Sousa, tinha decidido atacar a fim de libertar as ilhas de Caiar, Como e Catunco.
A região, farta em arroz e cabeças de gado, era para a guerrilha um importante ponto de apoio para as suas linhas de reabastecimento - e uma base de onde flagelava o Sudoeste da província e causava dificuldades à navegação na costa Sul. A vila de Catió, a segunda mais populosa da Guiné, era abastecida por mar: as lanchas partiam de Bissau, desciam para Sul, até Tombali - onde entravam no estreito rio de Caiar ate Catió. A navegação ao longo desse pequeno canal, que separa o continente das ilhas ocupadas, era cada vez mais difícil e inseguro: as lanchas eram flageladas pelo fogo da guerrilha.
A ocupação, sem a mais pequena resistência, dava aos grupos armados do PAIGC um inestimável alento moral. Os guerrilheiros chamavam às ilhas a Republica Independente do Como. A população, de etnia papel e balanta, colaborava com os nacionalistas.
A tropa portuguesa respondeu e, a 15 Janeiro de 1964, lançou a Operação Tridente, com 1.100 homens, sob o comando do tenente-coronel Fernando Cavaleiro. Objectivo: recuperar o controlo das ilhas de modo a garantir a segurança dos abastecimentos marítimos na costa sul da Guiné - e cortar à guerrilha tão importante base de apoio. Os combates prolongaram-se por 71 dias.

Guerrilha ganha terreno
A reocupação das ilhas do Como, Caiar e Catunco pelas forças portuguesas não quebrou a iniciativa militar do PAIGC. A partir de meados de 1964, os guerrilheiros passaram a dominar no Sul da Guiné. A guerra sofre claramente um sério agravamento.
O brigadeiro Louro de Sousa é substituído como comandante-chefe pelo brigadeiro Arnaldo Schultz - que já exercera o comando de um sector operacional no Norte de Angola sem grande historia. Schultz é promovido a general em 1965. Apesar de ter recebido consideráveis reforços, é incapaz de travar a progressão da guerrilha. As tropas portuguesas deixam de jogar ao ataque: perdem a iniciativa da guerra e não levantam a cabeça das posições defensivas. A situação é francamente desesperada.
O Governo, perante o risco de uma derrota militar, reage: manda regressar a Lisboa o general Arnaldo Schultz e faz avançar o brigadeiro António de Spinola. Nomeado governador e comandante-chefe, chega a Bissau em Maio de 1968. Nada na Guiné continuou como dantes.
Spinola estava consciente de que a guerra de África era de natureza política e, como todas as guerras subversivas, não tinha solução militar. Esta consciência leva-o a fazer profundas mudanças: como governador, mudou a politica; como comandante-chefe, mudou a estratégia.
O monóculo encravado no olho direito, o camuflado e a presença nas matas, fiel ao principio de que um chefe militar está onde estão os seus homens - era a sua imagem de marca. Tal como MacArthur, com os óculos RayBan e o cachimbo de maçaroca de milho, Rommel, com a viseira de tanquista ao pescoço, Moshe Dayan, com a pala no olho à pirata, Patton, com o capacete e os revólveres à cintura - também Spinola cultivou como poucos a imagem de valente cabo de guerra. Tornou-se num mito.
Montou em Bissau uma poderosa máquina de propaganda. Jornais e revistas estrangeiras dedicaram-lhe manchetes encomiásticas como a nenhum outro português. Mas não se tratava apenas de fogo-de-vista. Spínola soube rodear-se da nata da oficialidade para, ao mesmo tempo, fazer a sua politica e travar a guerra: Firmino Miguel, Pedro Cardoso, Almeida Bruno, Manuel Monge, António Ramos, Carlos Azeredo, Sanches Osório, Pereira da Silva, Passos Ramos, Magalhães Osório, Alpoim Calvão, Carlos Fabião - alguns dos magníficos que o serviram.
Num primeiro momento, Spínola altera o dispositivo militar e tenta ganhar a iniciativa da guerra. Com êxito. São criadas "zonas de intervenção do comando-chefe", em áreas de forte domínio da guerrilha do PAIGC, onde apenas as unidades especiais passam a realizar operações de curta duração e de grande violência, com o apoio da aviação e da artilharia, sempre sob o comando directo do "Velho", como os combatentes carinhosamente chamavam a Spinola. Serviam estas operações para destruir ou causar instabilidade nas forças inimigas - mas, sobretudo, para demonstrar a superioridade militar portuguesa às populações.
A par da demonstração de força, Spinola pôs em marcha um ousado projecto político de conquista das populações - plano traduzido no slogan "Uma Guiné Melhor" e que consistia em ouvir os guineenses e dar-lhes condições de vida. Nasceram os Congressos do Povo, verdadeira manifestação de democracia directa numa colónia de um Regime sem liberdade.

A morte dos majores
O brigadeiro Spinola conseguiu uma reviravolta nos confrontos travados na Guiné. Os militares portugueses, que nem respiravam debaixo do poder de fogo da guerrilha, passaram a ganhar duras batalhas. A sorte da guerra, nos finais de 1969, era-nos francamente favorável.
Mas o velho cabo-de-guerra sabia que não tinha tempo a perder: teria de encontrar quanto antes uma solução política para o conflito. Iniciou conversações com Leopold Senghor, presidente do Senegal, o respeitadíssimo líder africano pro-ocidental. Spinola queria chegar a Amílcar Cabral. O governador e comandante-chefe estava convencido de que importantes quadros do PAIGC podiam abandonar o partido e aderir a nova política de "Uma Guiné Melhor" - meio caminho andado para forçar Cabral a negociar o fim da guerra.
Três majores (Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório - todos com sobejas provas dadas em combate) acreditaram que era possível fazer a paz. Montaram uma rede de informações e conseguiram chegar a fala com dirigentes do PAIGC. Reuniram-se com eles pelo menos duas dezenas de vezes. No dia 20 de Abril de 1970 partiram desarmados para mais um encontro, em Jolmete. Spinola estava para ir - mas, por uma qualquer razão providencial, acabou por ficar em Bissau.
Os três majores foram ao encontro da morte. Uma facção do PAIGC não perdoou esta manobra de levar homens seus à deserção: esperou traiçoeiramente os militares portugueses e matou-os à catanada. Os corpos de Passos Ramos, Pereira da Silva, Magalhães Osório e de dois acompanhantes foram encontrados horrivelmente mutilados.
A execução dos três majores revela a insegurança de pelo menos parte da cúpula dirigente do PAIGC perante a política de Spinola. De outro modo, os oficiais portugueses teriam sido feito prisioneiros e exibidos como troféus.
Spinola, já com as estrelas de general nos ombros, não desiste de encontrar uma solução para a guerra. Em Maio de 1972, encontra-se em Cap Skining, em pleno Senegal, com Leopold Senghor, que aceitara o papel de intermediário com o PAIGC.

Mas os oficiais mais próximos do comandante-chefe da Guiné, ainda com a morte dos três majores fresca na memória, receiam pelo seu "Velho". Desconfiam de infiltrações da linha radical do PAIGC em sectores das tropas senegalesas. Spinola iria sozinho ao encontro com Senghor, boa ocasião para uma armadilha fatal. Resolvem montar uma secreta e arriscada operação militar, para o que desse e viesse.
Companhias de pára-quedistas tomam posição em redor do local da reunião - enquanto helicópteros, equipados com canhões, sobrevoam a zona a grande altitude. O comandante da operação é Carlos Fabião. As ordens são claras: ao mínimo sinal de perigo, toda a área seria bombardeada do ar. Depois avançavam os pára-quedistas para recolher os corpos, Spínola não podia ser apanhado pelo PAIGC: nem vivo, nem morto.
O encontro decorre, porém sem incidentes, Spínola e Senghor discutem uma solução de compromisso: cessar fogo por um período de transição de 10 anos, após o qual seria sufragada uma solução para a Guiné - independência total ou integração numa federação.
O general mete-se no avião e vem a Lisboa. Traz um plano sério para acabar com a guerra. É recebido peso Presidente do Conselho, na última semana de Maio de 1972. Marcello Caetano, cegamente, rejeita sem apelo nem agravo o plano de paz, com o argumento de que era preferível uma derrota militar com honra a um acordo negociado com terroristas. O cabo-de-guerra volta amargurado e ofendido a Bissau. Perdera as últimas ilusões sobre a abertura marcelista. Resolve passar a livro a solução que amadurecera para o problema das colónias. E pede ao Governo que dê por terminada a sua comissão na Guiné.
Leopoldo Senhor, irritado com a recusa de Marcello Caetano, passa a apoiar o PAIGC na guerra: abre as fronteiras do Senegal à instalação de bases dos guerrilheiros. O movimento de guerrilha aproveita estas facilidades e põe, a Guiné a ferro e fogo. Em Maio de 1973, um ano depois do encontro de Spinola com o presidente senegalês, a tropa portuguesa estava outra vez em grandes dificuldades, apertada numa invencivel tenaz com uma garra em Guidage, no Norte, e outra em Guilege, no Sul. Para mais, o PAIGC tinha recebido armamento moderno, como os misseis terra-ar, que bloquearam o campo de manobra da aviação.
Spinola estava de partida. Mas não queria regressar a Lisboa com o; pesado fardo de general vencido. Fez das fraquezas forças e laçou-se na reocupação da península de Cantanhez, onde há anos só as tropas especiais executavam temerárias operações de curta duração. Ganhou a batalha-a última. Foi substituído na Guiné pelo general Bettencourt Rodrigues, que já tinha dado provas na guerra em Angola.

Machadada no Regime
De regresso à metrópole, no Verão de 1973, Spinola goza um merecido período de férias no Luso. E, em Janeiro de 1974, toma posse como vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, cargo criado especialmente à medida do seu prestígio. Está decidido a publicar um livro explosivo: "Portugal e o Futuro". Pediu contributos a alguns dos melhores oficiais que o serviram na Guiné. O jornalista António Valdemar foi chamado a fazer a revisão dos textos - em longas sessões de trabalho na casa de Spinola, numa quinta em Massamá, arredores de Sinta.
Estava tudo pronto. Só faltava o autor receber autorização para publicar o livro, como mandavam os regulamentos militares. Spinola aceita submeter a obra ao, seu superior hierárquico, Costa Gomes, chefe do Estado-Maior-General das Forcas Armadas.
O general Costa Gomes, de partida para uma visita de trabalho a Moçambique, leva uma prova do livro na bagagem. No regresso, dá parecer favorável à publicação. O ministro da Defesa, Silva Cunha, inclina-se para a proibição - mas e contrariado pelo Presidente do Conselho, Marcello Caetano, que não quer afrontar dois dos seus mais prestigiados generais. Nem um nem outro tinham lido o livro.
Quando Marcello Caetano leu a obra, na madrugada de 20 de Fevereiro, já era tarde: daí a dois dias o livro estava à venda. Costa Gomes e António de Spinola foram demitidos. Mas "Portugal e o Futuro" cumpriu os objectivos: anunciou ao mundo que a guerra travada por Portugal em África não tinha solução militar e provocou uma irreparável brecha no Regime.


BIBLIOGRAFIA
OS ANOS DA GUERRA COLONIAL (1961-1974)
Manuel Catarino - Jornal 24 Horas

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