segunda-feira, 16 de março de 2009

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Histórias de vidas portuguesas num pobre paraíso

Chegaram há muitos anos e resistiram a todos os conflitos nesta antiga colónia portuguesa. Aconteça o que acontecer, nada os fará regressar a Portugal. Insurgem-se até contra a imagem exterior da terra que adoptaram. Para estes portugueses, a Guiné-Bissau, país entre os 10 mais pobres do Mundo, é um pedaço do paraíso na Terra.

São os reis das esplanadas de Bissau. No Kallistes, Baiana, Creoulo, ou na Padeira, restaurante onde se sentem confortados pela presença da dona Lurdes, uma ribatejana que decidiu trocar a vida pacata que tinha em Torres Vedras por uma aventura em Guiné-Bissau, as conversas dominantes são em português, com sotaques do Minho ao Algarve. O mesmo sucede no Maria do Rio, onde predomina a simpatia da proprietária, uma alentejana que emprestou o nome ao restaurante. Também aqui, os portugueses vivem na 'santa paz do Senhor' e apenas a instabilidade política que tarda em largar o país de Amílcar Cabral vai criando sobressaltos nesta pequena comunidade de 2500 pessoas.

A maioria chegou atraída por projectos do Governo português e, sobretudo, das Nações Unidas ou de organizações não governamentais (ONG), que se comprometeram a levar por diante o desenvolvimento de um país que não consegue libertar-se sozinho de vários constrangimentos sociais e económicos. Mas, se este grupo de novos emigrantes ainda está em fase de adaptação a uma nova mentalidade – a guineense – outros, chegados há décadas, estão integrados. Não há nada que os faça pensar no regresso.

Francelina Nunes, 64 anos, deixou Góis, em Coimbra, em 1964, com apenas 19 anos, para juntar-se ao marido, repetindo um trajecto iniciado pelo sogro, Gentil Nunes, e o irmão, Artur, nos primeiros anos do século XX. Em 1920, depois de trabalharem na mais famosa empresa do País naqueles anos, a Casa Gouveia, conseguiram juntar um pé-de--meia que lhes permitisse criar uma empresa. Assim nasceu a Nunes & Irmão, uma imagem de marca da Guiné com rosto luso. A residencial Coimbra é a face mais visível deste projecto empresarial, com 86 anos de vida. "Somos a terceira geração da família à frente dos negócios", diz Francelina Nunes, muito longe de se arrepender de, há 44 anos, ter deixado Portugal. "Foi fácil gostar da Guiné porque, quando cheguei, Bissau era uma cidade viva e o clima era óptimo. Nestes anos todos, a única tragédia foi a guerra de 1998, entre Nino Vieira e Ansumane Mané. A guerra colonial era feita longe daqui, no campo, esta aconteceu mesmo na cidade. E foi horrível."

Francelina surpreendeu-se com a sua própria coragem, entre os escombros de Bissau, quando empreendeu acções merecedoras da condecoração do então Presidente da República, Jorge Sampaio: "Tivemos muita gente refugiada em nossa casa e, talvez por isso, o Presidente tenha decidido condecorar-me. Se nunca passámos fome foi porque tivemos ajuda humanitária. As organizações sabiam que havia muita gente aqui e ajudavam-nos."

Habituada a ver portugueses chegarem a Bissau, Francelina garante que há uma excelente relação entre os nacionais e os forasteiros. "Quase todos os portugueses que vêm para cá, fazem-no no âmbito de projectos e chegam com vontade de ajudar este povo. Converso com muitos, que se hospedam no nosso hotel, e nunca vi nenhum muito contrariado por aqui estar. A verdade é que também não se metem na vida política local."

Francelina diz que a imagem que a comunidade internacional tem da Guiné-Bissau é distorcida: "Sabemos que isto não é um mar de rosas, mas passam imagens tristes do país. Mesmo na Europa, a vida não está fácil. Se um europeu não tiver um bom ordenado e uma vidinha organizada, também passa por dificuldades. Bissau enfrenta problemas com a luz e a água, mas em matéria de alimentação, móveis e bens de primeira necessidade, não falta nada. Não se formam filas em lado nenhum, tudo pode ser comprado. A Guiné não é um país pobre. Pobres são aqueles que nem uma folhinha verde têm."

Francelina não pára o novelo cor-de--rosa que desenrola sobre o país de adopção. "Pode haver um ou outro roubo de telemóvel, mas aqui não acontece nada de especial. O problema aqui é a instabilidade política. Há sempre um golpe ou outro problema parecido e isso contribui para que os brancos sintam medo."

O amor de Francelina Nunes pela Guiné é secundado por Alexandre 'Xia' Nunes, 40 anos, um dos dois filhos de Francelina e extremamente popular na cidade. Tanto ele como o irmão, Miguel, 44 anos, nasceram na Guiné-Bissau, embora os estudos tenham sido feitos em Portugal. Em 1990 optaram pelo país de origem. "Estudei em Coimbra até ao 2.º ano de Informática, mas decidi regressar. Durante 12 anos de escolaridade, estudei sempre com a ideia de voltar à Guiné e não estou nada arrependido. A vida na Europa é muito cansativa, há demasiado stress. Tenho lá muitos amigos e percebo que a vida deles não é nada fácil." 'Xia' defende que a Guiné é um país de oportunidades, à espera da estabilidade política.

"Em Portugal pensam que isto é o fim do mundo, é uma ideia transmitida às pessoas que não corresponde à realidade. Não devem ser as coisas fúteis, como cinemas e centros comerciais, motivos de escolha de uma terra."

Na opinião deste luso-descendente, os guineenses são os mais hospitaleiros entre todos os naturais dos países africanos de expressão portuguesa. Só a instabilidade política trava o arranque definitivo do desenvolvimento do país. "Cada vez que há uma situação como esta, que redundou nos assassínios de Nino Vieira e Tagmé na Waié [no início deste mês], os investimentos estrangeiros deixam de ser feitos e volta tudo à estaca zero. É chato um governo estabelecer contratos com a Guiné-Bissau e de repente cair tudo por terra porque houve uma mudança de dirigentes, em apenas três ou quatro meses. Assim é difícil, mas acredito que a Guiné-Bissau tem condições para evoluir."

'Xia' Nunes reconhece, no entanto, que há dois pólos de desenvolvimento que devem merecer atenção especial, para atrair estrangeiros: "O principal problema é a falta de escolas e hospitais. Qualquer pessoa que venha trabalhar para aqui quer ter os filhos consigo. Tem de haver escolas e serem complementadas com uma boa política de saúde. Não há necessidade de, por tudo e por nada, às vezes coisas mínimas, se ter de transportar um doente para Dakar ou Lisboa. Por que razão hei-de estar aqui e ter os filhos em Coimbra?"

A história de Vítor Seabra, 68 anos, que deixou a Anadia há 46 anos rumo à Guiné, então colónia portuguesa, não é muito diferente da da família Nunes. Chegou e foi ficando. "Nunca me arrependi, mas sou uma das pessoas mais prejudicadas com o conflito militar de 1998." Vítor Seabra sabe do que fala. Empresário na área da limpeza, era encarregado do saneamento de quase toda a cidade de Bissau, instalações das Nações Unidas e hotéis. Durante a guerra roubaram-lhe camiões e, depois do conflito, os governos anteriores ao de Carlos Gomes Júnior nunca acertaram contas com ele. Mas não desanima: "À excepção dos anos que se seguiram ao conflito de 1998, vivi sempre em situação de paz e tranquilidade." Vítor Seabra jura que "se não fossem estes conflitos, a Guiné-Bissau seria um paraíso".





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